domingo, 5 de abril de 2015

Nanini inventa o cais

Ator fala sobre o centro cultural que fundou na zona portuária do Rio de Janeiro e, irônico, diz que foi bem acolhido pelos marginais


Carolina Braga

Estado de Minas: 05/04/2015



Marco Nanini em cena de Beije minha lápide. Apresentada no Festival de Curitiba, peça entra em cartaz em BH neste mês
 (HUMBERTO ARAUJO/DIVULGAÇÃO)
Marco Nanini em cena de Beije minha lápide. Apresentada no Festival de Curitiba, peça entra em cartaz em BH neste mês


Curitiba –
O engenheiro de segurança mandou subir o muro que cerca a residência de Marco Nanini no Rio de Janeiro. O ator obedeceu. Veio outra recomendação para aumentar ainda mais. Depois outra. Nanini deu um basta. “Mas vai subir esse muro até onde? É a Torre de Babel? Quero ir para um lugar onde eu abra a porta e tenha o problema para resolver”, conta. Foi assim que nasceu o Instituto Galpão Gamboa, endereço na zona portuária do Rio que se transformou em uma espécie de laboratório para Nanini.

“Fomos bem acolhidos pelos marginais. Não tive nenhum contato direto com eles”, brinca, sempre com ironia peculiar. É no Galpão Gamboa que nascem as montagens teatrais do intérprete do saudoso Lineu, da Grande Família. “Buscava uma sala de ensaio e descobri essa pequena fábrica. Era pequena para fábrica e muito grande para uma sala de ensaio. Resolvi ocupar”, conta.

De lá, saíram montagens como a recente Beije minha lápide. A peça foi um dos destaques do Festival de Teatro de Curitiba que termina hoje e tem apresentações marcadas para Belo Horizonte nos próximos dias 18 e 19, no Teatro Sesiminas.

O local, que surgiu com o objetivo de atender demanda específica do ator consagrado, oferece hoje atividades esportivas e de saúde, além das culturais. Quando começa a falar sobre o projeto, em andamento desde 2008, Nanini não segura a empolgação. “Todos os dias, há senhoras de 80 anos subindo escadas enormes para fazer aulas de teatro, de ioga. Achei que ninguém iria lá”, afirma. O Galpão Gamboa virou ponto de encontro de pessoas de distintas gerações. Se os mais velhos fazem de lá um espaço de convivência artística e social, jovens atores dão vazão às suas novas criações. De olho nisso, Nanini se contaminou.

“Falei: não posso ficar afastado dessa gente. Se for assim, vou ficar ilhado em uma torre, sem conviver com pessoas mais jovens, criativas, boas”, conta. Com essa disposição, juntou-se à Cia. dos Atores para fazer a adaptação de O bem amado. Também foi assim na premiada Pterodátilos (2010), com direção de Felipe Hirsh. Em Beije minha lápide, dirigida por Bel Garcia, divide a cena com a Cia. de Teatro Independente, do jovem dramaturgo Jô Bilac.

O próximo trabalho será montagem do texto francês Ubu rei, com a Cia Atores de Laura, do diretor Daniel Herz. Com exceção da Cia. dos Atores, já mais veteranos, os outros dois grupos são representantes da nova geração do teatro carioca.

“Cada um tem seu frescor à sua medida, seja em que idade esteja. Essa gente me traz muita informação de todos os tipos – dos trabalhos que fizeram, a disciplina que têm, o carinho, o amor pelo oficio, tudo isso fico observando com prazer.” No caso de Beije minha lápide, há também surpresas de conteúdo a partir da obra de Oscar Wilde.

Nanini, que está com 66 anos, nutre interesse por Oscar Wilde desde que conheceu sua obra, na escola de teatro. Em 1968, chegou a fazer Salomé, publicado pelo irlandês em 1894, sob a direção de Martim Gonçalves. Ainda assim, apesar da admiração e dessa aproximação no início de sua carreira, nunca quis interpretar o escritor e poeta irlandês, nem encenar alguma de suas obras. Até que Jô Bilac apresentou-lhe o argumento de Beije minha lápide: Nanini viveria Bala, um escritor preso em Paris por violar o túmulo de Wilde.

Para proteger a lápide do autor no famoso – e turístico – cemitério Père Lachaise, em Paris, dos beijos dos fãs, a sepultura foi coberta por um vidro. Foco da ira de Bala. Criou-se então toda uma camada de ficção para que Nanini compartilhasse com o público algumas ideias de Wilde, mas também reproduzisse posturas do escritor consideradas absurdas na época em que viveu. Tudo com um texto ágil, debochado e engraçado.

Para artista, país vive ‘tragédia’


“Acho que é uma tragédia o que está acontecendo”, afirma Marco Nanini. O ator não esconde sua descrença em relação ao Brasil de hoje. “Essa desfaçatez, essa falta de respeito com a população, com o Brasil, esse jogo de interesses cada vez mais evidente, mais claro, mais sem pudor. Tudo isso traz uma certa depressão. Um país tão rico, em todas as áreas, estar atolado nesse buraco é muito triste”, dispara.

Marco Nanini nasceu no Recife, em 1948. Foi na Escola de Teatro do Conservatório Nacional, entre 1966 e 1968, que formou-se ator. Era justo a época em que o Brasil vivia a dura fase da ditadura. Ainda que sejam tempos incomparáveis, para o ator o que sucede hoje o faz lembrar do passado. “Esse momento, à parte do golpe, que foi outra coisa pavorosa que eu vivi, tem sido muito difícil de atravessar”, diz.

Com sua sempre aguda dose de ironia, afirma que, atualmente, antes de abrir um jornal para ler as notícias do dia, é preciso tomar calmante. “Você perde a confiabilidade nas pessoas, sempre duvida de qualquer política. É esse o ponto a que nós chegamos.”

. A repórter viajou a convite do Festival de Teatro de Curitiba

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