sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O distritão - Maria Cristina Fernandes

           Valor Econômico - 20/02/2015

O Japão teve o mesmo sistema eleitoral por 69 anos. O país era dividido em distritos com uma média de cinco deputados. Elegiam-se os mais votados de cada distrito. Como as zonas rurais eram sobrerrepresentadas, seus deputados dominavam a Dieta, o Parlamento japonês. Os prefeitos, submetidos a um governo de forte centralização fiscal, recorriam a esses parlamentares para liberar recursos e obras. 

Muitos deputados tornaram-se donos de poderosas máquinas locais de intermediação de poder e voto. Um partido (LPD) surfou nas regras eleitorais e deu ao Japão a condição de única potência industrial do pós-guerra com 38 anos sem alternância de poder.

Seu mais famoso representante foi Kakuei Tanaka, um filho de agricultores que fez fortuna na construção civil associando-se à burocracia japonesa na compra de áreas que, posteriormente, seriam valorizadas por investimentos públicos. A ascensão de Tanaka ao cargo de primeiro-ministro e seu envolvimento na propinagem da fabricante americana de aviões Lockheed marcaram o fosso da degeneração da política japonesa.

A birra não parece ser com o sistema mas com o eleitor

Esta foi a experiência mais longeva do sistema eleitoral que o PMDB quer implantar no Brasil por nome de distritão. No Japão, sucumbiu em 1994. Uma reforma política não consertou todos os seus vícios que, lá e cá, extrapolam os limites da engenharia eleitoral.

A economia japonesa bombou nas décadas em que o clientelismo e a corrupção se entranharam em sua política. Foi sob a crise dos anos 1990 que o sistema eleitoral acabou reformado.

No Brasil, o vozerio de reforma política voltou com a soma de petrolão e pibinho. O avesso da coincidência acaba aqui.

A proposta que ganhou força com o poder redobrado do PMDB no Congresso muda uma das normas mais permanentes da política brasileira, uma Câmara dos Deputados eleita pelo voto proporcional em contraposição a um Executivo escolhido pela maioria.

Se a proposta do vice-presidente Michel Temer vingar, o Brasil vai acrescentar uma jabuticabeira em seu pomar. Publicação do Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral (www.idea.int/publications/esd/) mostra que dos 27 países que promoveram reformas eleitorais nos últimos 20 anos quase todos o fizeram no sentido de dar mais proporcionalidade a sistemas majoritários. A única exceção é Madagascar, que saiu de sistema proporcional para um misto.

O modelo brasileiro tem 70 anos. Foi criado às vésperas da Constituição de 1946 para se contrapor ao comando de ferro dos governantes da República Velha sobre seus distritos eleitorais.

A proposta do PMDB corre o risco de pegar porque é simples de explicar. Os partidos lançam seus candidatos e ganham os mais votados.

Acaba a regra em vigor que soma os votos de todos os candidatos, além daqueles dados à legenda, e divide-se por um quociente eleitoral para se chegar ao número de vagas a serem ocupadas pelo partido.

Pelo atual sistema entram os mais votados no partido. Pelo distritão, entram os mais votados no Estado.

A professora Argelina Figueiredo, do Iesp, estuda esses sistemas há quatro décadas. Não gosta de tudo que vê no modelo brasileiro, como o dinheiro que jorra das empresas nas eleições, mas custa a acreditar que a proposta do PMDB vá melhorá-lo.

A primeira pergunta que se faz é sobre quem vai formar a lista de candidatos. Em 2014, os 32 partidos lançaram 6.175 candidatos às 513 cadeiras da Câmara, uma média de 12 por vaga, mais do que os 11 que disputaram a Presidência.

Pelas normas em vigor, teriam direito esse número por quatro. Não o fizeram porque custa dinheiro recrutar, montar candidaturas e subsidiar campanhas. É um mercado no qual abocanham a maior fatia do bolo os partidos que montam as melhores estratégias.

Ainda não está claro como se daria essa escolha de candidatos no distritão. Como já não valeria mais a soma de votos obtida pelos candidatos, cresceria a competição dentro das legendas por uma vaga. Como a maioria dos partidos funciona sem eleição de seus dirigentes, é grande a chance de aumentar o caciquismo na arbitragem dessa disputa.

Argelina tem a convicção de que, se o eleitor hoje custa a reconhecer coesão programática nos partidos, não é no distritão que a encontrará. Cresceria o apelo para que os partidos lancem celebridades e candidatos cujas pautas encontram abrigo em programas de televisão de larga audiência e nas igrejas.

São Paulo elegeu uma bancada mais comprometida com a redução da maioridade penal depois de ter feito uma das maiores mobilizações de sua história, em 2013, em desagravo à violência policial. Os partidos falharam em canalizar essa indignação popular pelo atual sistema. O que aconteceria com o distritão? Daria voz ao desagravo ou à maioria conservadora que o assistiu pela televisão?

A atual legislatura dá algumas pistas. Apenas 35 parlamentares elegeram-se com seus próprios votos, dois terços dos quais ingressaram no mercado eleitoral como policiais, comunicadores, pastores e parentes de políticos.

Há maiores chances que os partidos consigam multiplicar candidaturas como a de Shéridan (primeira dama de Roraima, eleita pelo PSDB com a maior votação do seu Estado) e Feliciano (PSC-SP), do que as de Chico Alencar (PSOL-RJ) e Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), todos quatro pertencentes à seleta lista de puxadores de voto.

A votação de Tiririca, que puxou mais dois deputados para o PR explica muito do azedume com o atual sistema. É de se perguntar, no entanto, o que aconteceria se, em lugar de Tiririca, o candidato a puxar votos fosse o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.

Como atrairia facilmente mais de um milhão de eleitores sem sair de casa, Barbosa poderia ter formado uma bancada de togados para ilustrar os debates parlamentares. Difícil imaginar que pudessem vir a ter uma votação própria superior àquela de Miguel Lombardi, o vereador de Limeira (SP) de 32 mil votos que Tiririca levou para a Câmara.

A birra não parece ser com o sistema que está aí, mas com o eleitor e suas escolhas. A Câmara poderia ser bem melhor, mas os brasileiros que não se reconhecem nela talvez também se sintam estrangeiros num vagão lotado do metrô. Nada sugere que o distritão vá acabar com esse mal-estar.

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