domingo, 30 de novembro de 2014

Uísque - Eduardo Almeida Reis

Bebedores daquele tempo, no Rio, dependiam do excelente contrabandista Jacob, esquematizado nas embaixadas que importavam sem pagar impostos


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 30/11/2014




Do inglês whisky ou whiskey, do irlandês uisce beathadh e escocês uisge beatha, literalmente, “água da vida”, cuidemos do uísque mais comum neste país grande e bobo: o escocês blended, dito de oito ou 12 anos, o que absolutamente não quer dizer que tenha oito ou 12 anos de envelhecimento. Blended whiskey é uísque feito com a mistura de dois ou mais whiskeys.

Às voltas com o líquido desde rapazola, ainda me lembro de uma funcionária doméstica, com um mês de casa, que me pediu o enfeite de um litro de White Horse: pequena escultura plástica representando um cavalinho branco. A jovem brasileira disse que estava colecionando cavalinhos e já tinha 11. Assustei-me com a notícia. Só em casa seria o 12º litro do mês, fora os chopes e os uísques tomados na rua.

Bebedores daquele tempo, no Rio, dependiam do excelente contrabandista Jacob, esquematizado nas embaixadas que importavam sem pagar impostos. Jacob tinha um fusca bege e nos levava as caixas em domicílio pedindo que não deixássemos de quebrar os litros vazios para evitar falsificações. Realmente, litros vazios tinham algum valor comprados pelos vidraceiros, que passavam com seus burros sem rabo recolhendo garrafas vazias para revender.

Nos bares, uma dose de uísque legítimo custava bom dinheiro, o que levou um amigo nosso a dizer que não entendia como era possível alguém, que não bebesse, queixar-se das finanças. O produto falsificado também custava uma nota e dava cada ressaca que vou te contar. Jantando no Iate Clube em mesa de muitos amigos, estranhei o gosto do Black Label, mas vi que todos estavam bebendo e fui em frente. Passei mal à beça. Duas aspirinas, duas colheres de sopa de mel, muita água mineral e cama, receita do médico Sérgio de Paula Santos.

A partir de 1977, morando em Juiz de Fora, inventei um clube de bêbados onde nos fosse possível uiscar a preços razoáveis, com direito a garçom, cozinheiro, sinuca e outras conveniências: Clube do Bolinha, 40 sócios. Existe até hoje. Nosso fornecedor era esquematizado no Aeroporto do Galeão, comprava os uísques dos tripulantes das empresas aéreas e nos trazia de ônibus em valises de bom tamanho.

Certa noite, foi preso pela polícia numa blitz rodoviária e nos telefonou no dia seguinte: “Não entreguei ninguém”. Dipsomaníaco, frequentava as reuniões dos alcoólicos anônimos. Um sócio do clube, que brincou com ele, ouviu a seguinte lição: “Os senhores são empresários vitoriosos, médicos, advogados, bebem por prazer, não conhecem o alcoolismo. Eu vivia bêbado nas ruas, dormindo na sarjeta”. Temos 417 palavras. Amanhã falo do uísque em Belo Horizonte.

Desserviço
Homossexualismo nunca foi nem é doença mental, mas há fatos que contribuem para desservir o movimento gay em sua luta pela igualdade de direitos e obrigações. Terça-feira, 28 de outubro de 2014, Suzane von Richthofen, condenada a 39 anos de cadeia pela morte de seus pais, disputou com a senhora Rousseff, reeleita presidente de um país grande e bobo, o destaque na imprensa do acampamento que tem bandeira, hino e constituição.

Desserviço por quê? Ora, porque Suzane é evidentemente criminosa no mais alto grau e vem de se casar com uma senhora, também presa por crime hediondo, que se divorciou de outra doida de hospício, Elize Matsunaga, presa pela morte a tiros seguida de esquartejamento do corpo do marido.

No Brasil e no Cazaquistão, em qualquer país, filha que mata os pais é notícia. Mulher que mata o marido e serra o corpo do finado em pedaços, também é. Se as duas assassinas disputam o amor de uma terceira, condenada por crime hediondo, a história ultrapassa os limites do imaginável e acaba por desservir criaturas que só querem amar e ser amadas por pessoas do mesmo sexo.

E o pacientíssimo leitor fica devendo ao seu philosopho o fato de não ter escrito “países do mundo”, pois o conceito de país, ainda que grande e bobo, está limitado ao mundo em que vivemos, isto é, ao planeta Terra.

O mundo é uma bola
30 de novembro de 1538: fundação da cidade de Sucre, no Equador, como se isso tivesse importância na história da humanidade. Em 1783, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha assinam o Tratado de Paris, pondo fim à guerra revolucionária norte-americana. Em 1803, fim da administração francesa no Território da Louisiana. É dos poucos estados estrangeiros que conheço razoavelmente: morei lá dois meses no ano de mil novecentos e antigamente, dirigia automóveis, tentei aprender inglês. Em 1807, o exército francês comandado pelo general Jean-Androches Junot, dos Hussardos, ocupa Lisboa e Junot assume o comando do Conselho de Governo.

Em 1935, na Alemanha de Hitler, é concedido o direito de divórcio no caso de um dos cônjuges não acreditar nos ideais nazistas. O que deve ter tido de gente abjurando o nazismo nunca esteve no gibi. Hoje é o Dia do Síndico, do Teólogo, do Estatuto da Terra, do Evangélico e da Amizade Brasil-Argentina.

Ruminanças
“O adesismo é uma falha de caráter” (Contardo Calligaris).

EM DIA COM A PSICANÁLISE » No jardim da solidão

EM DIA COM A PSICANÁLISE » No jardim da solidão

Regina Teixeira da Costa
reginacosta@uai.com.br

Estado de Minas : 30/11/2014


Outras vezes, tive a oportunidade e o prazer de apresentar a poeta e psicanalista Flávia Drummond Naves. Autora de Palavra cerzida (1ª edição de 2008, em tecido, e 2ª edição de 2009, em papel), Instantes (2012), Chuva branca (2010) e A última valsa (2011), 1º lugar no Concurso da OAP-UFMG. Flávia nasceu e vive em Belo Horizonte.

Agora, apresento Florarvore no jardim da solidão (Editora Cas’a’screver), título sugestivo de um trabalho, um brincar com a palavra que gerou um significante novo. Lindos desenhos de Julia Panadés ilustram o volume com delicadeza. Ilumina a composição Lúcia Castello Branco.

Como diz Janaina de Paula no prefácio, Flávia escreve um corpo só de poesias colhidas em um jardim distante, onde lembranças esquecidas anunciam um canto de solidão. Da solidão que se escreve. Desse solo germina a florarvore. Árvore, flor, mulher. Uma travessia.

Flávia faz um percurso em três tempos. Uma travessia muito particular na qual o ritmo começa no lirismo, no amor, alguma coisa do sujeito que vai se reduzindo progressivamente até o hai kai, surgido como um resto do qual pode se fazer alguma coisa pontual. Florarvora-se mulher.

Na solidão da casa, seus cômodos e objetos passeiam a poesia. A noiva do Jequitinhonha na cristaleira, frestas azuis das brancas janelas, um dia que não quer adormecer e a noite não amanhece em mim, pombos na louça inglesa sobrevoam o rio de onde acena a avó na terceira margem, copos vazios de cerveja na copa ao café e as bilhas.

Dali passa ao jardim. O musgo no muro, vagalumes, pássaros em voo, árvore broto e rebento de flor. No mergulho dos pássaros inventa voos de saída. Descansa na mais pequena morte o sonho vivo.

Manoel de Barros oferece a gravanha. Palavra colhida também por Guimarães. Flávia persegue a sonoridade e a estranheza da palavra criando inventices: gravanha/ grava/aranha/ A teia escreve.

Dali florarvora-se em cada vez menores versos. Florarvore testemunha a paisagem que o tempo incansável transforma em diversos cenários com sol, o vento, as marés, chuvas e rios. O olho da árvore é a mulher que começa.

Brincando com seu nome vai se reinventando em um nome próprio. De Flávia brota florarvore, palavra caída do ventre, parida. Significante que representa um resto, uma sobra, algo do feminino. Nesta obra um tom singular, pessoal e intransferível do atravessamento da autora que se deixa ver. Um corpo todo de árvore me fiz.

De um eu que cai um resto reduzido à brincadeira haicai. Nos verbetes Roland Barthes clareia: com o haicai estamos no soberano da escritura – e do mundo, pois do enigma da escritura, sua vida tenaz, seu caráter desejável, vem do fato de que nunca podemos separá-la do mundo. Um pouco de escritura separa do mundo, muita nos traz de volta a ele.

E nele o próprio sujeito não é mais o autor. A propriedade vacila, a autoria passa como no jogo de passar anel. O sujeito desdobra-se, é um folheado infinito. De Flávia ao florarvore-se:

Palavra-gesto

Palavra-nome

Palavra-inventada para livrar.