sábado, 29 de novembro de 2014

ENTREVISTA/AUGUSTO DE CAMPOS » Entre coisas e anjos

Poeta, crítico e tradutor fala de suas transcriações de Rilke a anuncia versões da poesia de Maiakóvski


Carlos Ávila
Estado de Minas: 29/11/2014



 (Globo News/reprodução)
O alemão é um idioma que poucos dominam no Brasil. Por isso mesmo, são sempre bem-vindas as traduções em português de grandes autores que escreveram nessa língua (como Goethe, Nietzsche, Thomas Mann etc.). O poeta nascido em Praga (República Tcheca) Rainer Maria Rilke (1875-1926), um dos mais importantes do século 20, é um desses autores de língua alemã dos quais já contamos com diversas traduções no Brasil: Dora Ferreira da Silva, Geir Campos e José Paulo Paes já se aventuraram por sua poesia; Cecília Meireles, Paulo Rónai e outros mais traduziram sua prosa – cartas, diários e ensaios.

No ano passado, Augusto de Campos lançou Coisas e anjos de Rilke, com 130 poemas traduzidos (Editora Perspectiva). A seleção de Augusto visou à parte da obra de Rilke influenciada pelo pintor Cézanne e pelo escultor Rodin (o poeta foi seu secretário, tendo vivido muitos anos em Paris); inclui textos dos Novos poemas, do Livro de imagens, dos Sonetos a Orfeu e mais alguns poemas esparsos e pouco divulgados.

Poeta, ensaísta e tradutor, Augusto já recriou em português desde as canções dos trovadores provençais (com destaque para Arnaut Daniel) até as obras de vanguarda de Pound, Maiakóvski, Joyce, Gertrude Stein e John Cage, no século 20 – passando pelos poetas metafísicos (John Donne e Hopkins), pelos românticos ingleses (Byron e Keats) e pelos simbolistas franceses (Mallarmé, Rimbaud, Corbière etc.). Incluindo ainda Emily Dickinson (1830-1886) e Paul Valéry (1871-1945).

O trabalho de Augusto sobre os originais alemães de Rilke traz a sua marca pessoal, ou seja, a da tradução-arte ou recriação (ou ainda “transcriação”, como preferia definir seu irmão Haroldo de Campos, também poeta e tradutor). Não são meras traduções literais ou informais, que se guiam apenas pela fidelidade semântica ao texto. Procuram dar conta de todo o arcabouço sonoro-sintático e formal do poema original, tentando dessa maneira chegar à alma-âmago do mesmo, sem destoar de seu tom e de sua marca própria.
Em entrevista ao Pensar, Augusto não fala sobre as traduções anteriores de Rilke (“por uma questão de ética”; das que ele conhece, destaca apenas as de Manuel Bandeira – “Torso de Apolo” – e de Décio Pignatari – “Abisag”). Mas fala sobre vários aspectos da obra e da importância de Rilke para a poesia contemporânea. Aborda também a língua alemã e anuncia suas novas traduções de Maiakóvski, diretas do russo (uma delas reproduzida nesta página), ainda inéditas em livro. Vamos ao papo com Augusto sobre Rilke.

Num inusitado livro em que estuda Rilke, Pound e Neruda juntos, o ensaísta chileno José Miguel Ibáñez Langlois observa que “de um ponto de vista formal, Rilke foi em seus dias mais um anacrônico que um precursor. No fundo um poeta do romantismo alemão plantado na época de Apollinaire, de Dada e do surrealismo nascente”. O que pensa sobre isso?
É parcialmente verdade, embora a comparação me pareça, ela mesma, ressentir-se de algum anacronismo. Dez anos separam o nascimento de Rilke (1875) do de Pound, em 1885. E se é verdade que Rilke nunca foi um “modernista”, é verdade também que os textos poéticos dos Neue Gedichte (Novos poemas), que Rilke publicou entre 1907/1908, sob a influência de Cézanne e de Rodin, eram muito menos anacrônicos do que os que Pound publicou em A lume spento (1908). Rilke morreu prematuramente em 1926, com 50 anos, quando Pound havia apenas começado a publicar os seus Cantos definitivos, nos quais radicalizou o seu método ideogrâmico, de colagens e montagens, aos 40 anos. Sim, Rilke não foi um poeta “de vanguarda”. Mas os seus Novos poemas – os chamados “Ding-Gedichte” ou “poemas-coisa“ – privilegiados em Coisas e anjos de Rilke, a minha “re/visão” do poeta – apresentam aspectos relevantes para a modernidade da linguagem poética, além de ser grandes poemas. À luz de Cezanne, Rilke constrói textos, nem sempre em versos regulares, em que rompe com as constrições tradicionais ao abordar um tema-objeto, sob várias perspectivas e vários ângulos, atacando o verso em sucessivas fraturas e fissuras sintáticas e ao mesmo tempo alongando a frase por todo o texto, num audacioso jogo entre o espaço e o tempo escriturais. Vejam-se poemas, como o que traduzi do ciclo “Os tzares”, ainda do Livro das imagens, que precedeu os Novos poemas, mas escrito já por volta de 1907, contemporâneo destes. O texto, recortado por sucessivas imagens imprevistas, pareceria sugerir as famosas montagens eisenstenianas de Ivan, o Terrível, que também foi o inspirador do poema de Rilke.

Pode dar algum exemplo dessa operação? Que outras dimensões podemos perceber na poesia de Rilke?
Tome-se o poema “São Sebastião”, no qual inverte a direção das flechas e desdobra a posição do corpo da vítima. Ou “A pantera”, com a clivagem dos seus closes abruptos. Há, em embrião, nesses e muitos outros casos, algo do cubismo analítico e seu multiperspectivismo. Um protocubismo. Aliás, foram esses poemas que assinalaram a “reconciliação” de João Cabral com Rilke: “Preferir a pantera ao anjo/ condensar o vago em preciso,/ neste livro se inconfessou” (“Rilke nos Novos poemas”, em Museu de tudo). Em suma, de alguma forma, o poeta respondia, ainda que até certo ponto em formas menos disruptivas, às desconstruções cézannianas que levariam ao cubismo. Outra dimensão menos conhecida dos poemas de Rilke, e também apreciável, indutora do expressionismo, é a satírica, presente nos violentos retratos de deformidades e infelicidades que traduzi do Livro das imagens. Poucas vezes li versos tão contundentes como os do ciclo “As vozes”. A voz do Suicida frustrado: “Permitam-me que eu me vomite”. Ou a do Leproso repudiado: “Tento não assustar os animais”. Rasgos de humor negro atravessam os Novos poemas em “Morgue “ e “Lavagem dos cadáveres”, ou nos retratos grotescos dos reis leprosos e no belo-horrível da descrição protoexpressionista do "Nascimento de Vênus”: “O mar pariu.” E chega a ser um mistério, talvez tão grande como o de Rimbaud ao compor, adolescente, os versos perfeitos do “Barco bêbado”, a perfeição com que Rilke foi capaz de criar, em duas semanas, os textos impecáveis de Sonetos a Orfeu. A poesia do nobelizado Neruda, que nasceu em 1904, 20 anos depois de Rilke, encontrou, sem dúvida, uma linguagem própria, mas até certo ponto pronta, para os seus versos modernos. Mas ele nunca foi um inventor de formas e – para mim – não chega aos pés nem de Rilke nem de Pound. Uma comparação mais justa e adequada situaria a poesia de Rilke como precursora da linguagem moderna, ao lado da criação poética dos também grandes Aleksandr Blok e William Butler Yeats, que influenciaram e foram influenciados por Maiakóvski e Pound, respectivamente.

O ensaísta e tradutor mineiro Cristiano Martins, no seu pioneiro ensaio “Rilke – O poeta e a poesia”, de 1949, observa: “A sua originalidade, e profundamente original foi ele, não residia nos aspectos exteriores da forma, nem na novidade e no ineditismo dos temas, mas no próprio modo de ser, na maneira pessoalíssima com que sabia extrair das coisas e sentimentos suas virtualidades líricas”. Concorda com essa visão de Cristiano?
Respeitável como seja, Cristiano Martins não é um bom conselheiro para a poesia. Domina razoavelmente a métrica e o verso, mas sem maior brilho. Não é poeta. Ao contrário do que ele afirma, Rilke se preocupava profundamente com a forma de seus poemas. “Forma” não é “fôrma”, aspecto exterior, casca epidérmica. O “conteúdo” tem que se impregnar dela, densificar-se com ela. Sem forma, Rilke não seria o grande poeta que foi, e sim um pregador-confidente, o visionário abstrato e místico que, nos anos 40, quiseram nos impingir. E foi por não perceber a profundidade do sentido da “forma” em Dante, derivada do trovador Arnaut Daniel, considerado pelo criador da Divina Comédia como “o “maior artífice da língua materna’, é que Cristiano Martins a traduziu apenas medianamente. Meritória, pelo esforço louvável de traduzir toda a Comédia, sua tradução, vista de perto, exibe “terzinas” metrificadas e rimadas como casca, mas sem “corpus” literário suficientemente denso e, portanto, sem “anima” poética. A forma é essencial na Divina Comédia, que é uma catedral linguística de forma e alma, e não uma igreja literato-convencional com métrica penosa e rimas de ouropel.

Rilke escreveu parte de sua obra poética diretamente em francês. Como classifica os “poèmes français” dele? Estão à altura de seus versos em alemão?
Para mim, não guardam a mesma tensão e a mesma originalidade dos textos em língua alemã, e salvo um ou outro caso, me soam como um Rilke aguado.

Por que traduzir Rilke hoje? Ainda há lugar e espaço para uma poesia com o “tom” dele no mundo atual?
Sempre há lugar para a poesia de todos os tempos, quando o poeta chega às alturas a que chegou Rilke. Considero os “poemas-coisa”, que emergiram nos Novos poemas, uma experiência fundamental para que se compreenda a unidade matérica do aparente dualismo forma-conteúdo em poesia. O rigor, a concisão, “a precisão do indeciso” (como queria o melhor Verlaine), especialmente desses poemas, têm muito a ensinar sobre como fazer poesia e não apenas redigir versos.

Além de Rilhe, você está traduzindo ou pretende traduzir mais algum outro poeta de língua alemã? Considera o idioma alemão também sonoro como o francês e “plástico” como o inglês?
Sim, a nós, brasileiros, à primeira audição, o alemão parece soar cacofônico ou excessivamente consonantal. Mas, bem assimilado, o idioma tem grandes belezas e achados, apesar das dificuldades linguísticas e gramaticais que dele nos separam. Volto de vez em quando a ele, e se pudesse traduziria todos os Novos poemas, mas é empreendimento árduo e meu interesse poético é onívoro. Não gosto de me especializar e no meu horizonte não estão as “obras completas” de ninguém, porque duvido muito das incumbências por atacado e dos “trabalhos forçados” em tradução poética criativa. Nem tudo é bem traduzível. Prefiro traduzir, de cada poeta, só aqueles textos em que julgo ter encontrado “um poema” em português. Mas para não dizer que não falei de flores germânicas, dou aqui este dístico de Goethe:
Uns Wien der Mens. in seiner Quall verstummt,
Gab mir ein Got zu sagen wie ich leide.
E quando um ser que sofre cala o seu clamor,
Um deus me deu o dom de dizer minha dor.
O caso de Arnaut Daniel é uma exceção e só me foi possível traduzi-lo integralmente porque do trovador restaram apenas 18 poemas. Mas não tornei a me embrenhar em obras de autores de língua alemã. Voltei a estudar um pouco de russo, que é ainda mais difícil que o alemão. Minhas últimas traduções, publicadas na internet, no portal da revista eletrônica Zunai, porque não tenho mais espaço nos cadernos literários, são de poemas do jovem Maiakóvski, escritos por volta de 1913. Dedico-as a Décio Pignatari, vertendo o título de um dos textos maiakovskianos com o pignatariano “Tó pra vocês”.

Carlos Ávila é poeta e jornalista. Publicou, entre outros, Bissexto sentido e Área de risco (poesia) e Poesia pensada (crítica). Foi, por quatro anos, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais.



Amor
Maiakóvski, tradução de Augusto de Campos
A moça entrou no brejo com cuidado, as rãs amplificaram seus tristes estribilhos, um vulto ruivacento bamboleou nos trilhos e os trens curvetearam com ar de enfado.
No véu das nuvens, por entre o sol-carvão, se infiltraram as mazurcas de um vento louco, e eu estou aqui – trottoir do verão onde mulheres atiram beijos-tocos.
Pobres idiotas, deixem suas casas! Venham, nus, ao sol, sem preconceitos, versar vinhos vorazes em odres-peitos e chuva-beijos em faces-brasas.
1913

HQ é o que há - João Paulo

Novos álbuns em quadrinhos mostram a força da arte sequencial, com adaptações de clássicos, romance de guerra e até mesmo a breve história do golpe civil-militar de 1964


João Paulo
Estado de Minas : 29/11/2014



As histórias em quadrinhos têm história. Das revistas infantis às adaptações de clássicos, passando por obras feitas especialmente para a linguagem sequencial de texto e desenhos, hoje se constituem num setor de destaque da indústria editorial. Não se trata mais de um artifício ou de uma possibilidade, mas de um território próprio, cada vez mais autônomo, criativo e original. A nova safra de produções nacionais e internacionais que acaba de chegar às livrarias é um bom exemplo deste movimento.

O primeiro destaque fica para a Barricada, segmento ligado à Editora Boitempo dedicado especialmente aos quadrinhos. Com conselho editorial formado por Luís Gê, Ronaldo Bressane, Rafael Campos e Gilberto Maringoni, o selo, como o nome indica, está voltado para títulos que tenham conteúdo libertário. Um bom exemplo desse projeto (que segue a própria linha da editora-mãe, responsável pela melhor edição das obras de Karl Marx no Brasil) é o álbum Último aviso, da feminista alemã Franziska Becker, lançado este ano.

O mais recente título da Barricada é o parrudo álbum Cânone gráfico – Clássicos da literatura universal em quadrinhos, organizado por Russ Kick. Trata-se, na verdade, do primeiro volume de uma trilogia, cobrindo o período que vai da Epopeia de Gilgamesh, uma das mais antigas obras literárias da humanidade, às Ligações perigosas, de Chordelos de Laclos, romance epistolar do século 18. Entre uma obra e outra, o antologista percorreu séculos, formas literárias, estilos e continentes.

O livro reúne 51 obras que ganharam tratamento em quadrinhos por alguns dos mais conhecidos nomes do gênero, como Robert Crumb, Will Eisner, Hunt Emerson, Peter Kuper e Seymour Chwat, entre outros. Há um pouco de tudo: poemas (entre eles dois sonetos de Shakespeare), epopeias, peças de teatro, romances, livros religiosos, tragédias, comédias, contos, textos filosóficos, diários e histórias infantis. A variedade de formas é um estímulo a mais para os quadrinistas e o resultado traz uma pletora de soluções gráficas originais.

Entre as obras clássicas adaptadas por quadrinistas selecionados por Russ Kick estão Ilíada, de Homero, por Kate Dixon; Medeia, de Eurípides, em adaptação de Tori McKenna; Tao te ching, de Lao-tsé, por Fred van Lente e Ryan Dunlavey; Apocalipse, por Rick Geary; Poemas, de Rumi, por Michael Green; A divina comédia, de Dante, por Seymour Chwast; o livro sagrado quiche Popol Vuh, por Roberta Gregory; Rei Lear, de Shakespeare, por Ian Pollock; Dom Quixote, de Cervantes, por Will Eisner; e Diário londrino, de James Boswell, por Robert Crumb.

O antologista escolheu um capítulo ou parte de cada livro adaptado, que ganha uma introdução com breve explicação da obra original. Geralmente, as versões em quadrinhos de obras literárias se destacam pela busca de tradução da história em outra técnica, com atenção sobretudo ao texto. No caso do Cânone gráfico, o cuidado maior é com o desenho. Não se trata de uma mera “transcriação” de um registro em outro (da literatura para os quadrinhos), mas de uma colaboração entre artistas de épocas e expressões distintas.

É um álbum que reúne criatividade espantosa para traduzir obras tão distintas. Há histórias em quadrinhos tradicionais, experimentos gráficos, pranchas coloridas, desenhos sem texto, estética underground, emulação da arte oriental clássica, abstrações, uso do humor, da paródia e de citações da história da arte. Um catálogo completo da arte dos quadrinhos a serviço de obras-primas da literatura.

Devastação

Outro lançamento recente no mercado de graphic novels é Kapputt, obra de Curzio Malaparte, com adaptação e arte de Guazzelli (WMF Martins Fontes). O ilustrador e quadrinista brasileiro tinha um desafio e tanto pela frente. A obra do jornalista e escritor italiano é um dos clássicos sobre a Segunda Guerra e a representação do nazismo e do fascismo. Malaparte é neorrealista, mas não como os diretores de cinema. É um tipo peculiar de escritor, que mescla realidade e ficção com técnicas de reportagem, com o interesse em flagrar o mal e a miséria, fazendo uso de um profundo senso metafórico. Kapputt é por isso um livro ao mesmo tempo real a simbólico.

Guazzelli captou bem o universo do escritor. Exacerbou a presença dos animais em sua obra, criando visões disformes e técnicas próprias para cada capítulo (todos têm nome de um bicho ou inseto). O resultado é devastador: ao mesmo tempo um retrato de época e um espelho da maldade humana, em que há muitos traços ainda hoje reconhecíveis. Não se trata do horror do nazifascismo, mas do pendor do homem ao mal. O tom dos desenhos é escuro, há poucas cores (aquarelas esmaecidas como memórias vagas) e o texto é quase uma legenda exata para a atmosfera destacada.

A violência ronda cada quadro. Os cenários são sempre lúgubres, as cidades parecem adormecidas, os sons mais ouvidos são de tiros. Um trem atravessa a paisagem. Sabe-se, ou intui-se, o que trazem em seus vagões de carga. Ao fim, um cadáver balança em um galho. Não é uma morte isolada, mas um alerta do que somos capazes de fazer e da indiferença que muitas vezes nos faz virar o rosto a outras violências, menos explícitas, mas igualmente próximas.
Outro clássico marcado pela proximidade com o horror, recentemente lançado em quadrinhos no Brasil, foi Coração das trevas, de Joseph Conrad, com desenhos de Catherine Anyango e roteiro de David Zane Mirowitz (Editora Veneta). O livro é mais conhecido por sua adaptação para o cinema, Apocalipse now, dirigida por Francis Ford Coppola. Aqui, também em função da atmosfera – de pesadelo e indistinção geográfica sobre onde seria de fato o “coração das trevas” – os desenhos são sombrios e os enquadramentos cinematográficos ora miram nos detalhes, ora se afastam da cena como se não a compreendesse.
O roteirista funde habilmente a narrativa com experiências do autor no Congo Belga, além de deixar aberta a trilha da imaginação para outras operações de rapina, que ainda hoje marcam o contato com o continente africano. Sem falar do racismo presente na narração conradiana, um traço de época, mas ainda vigente nas sombras da intolerância contemporânea. Sem falar da sedução algo inexplicável pelo personagem central um contrabandista de marfim. A história começa e termina nas trevas. O horror de ontem talvez não esteja tão distante do atual. Nem seus funcionários devotados menos cruéis – e admirados no cumprimento de suas metas. 

Ditadura

Lançamento recente que merece destaque é O golpe de 64, de Oscar Pillagallo e Rafael Campos Rocha (Editora Três Estrelas). Como se trata de conteúdo histórico, o maior mérito é a correção das informações. Com caráter quase didático – é um bom material de apoio para professores –, o livro se concentra mais no golpe. Dos seis capítulos, apenas o último é dedicado à ditadura e suas consequências, ainda assim de maneira mais sumária. O objetivo é traçar a gênese da quartelada de março de 1964.

O interesse dos autores foi apresentar os fatos políticos que antecederam o golpe civil-militar, retrocedendo ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. A história segue com as tentativas de inviabilização do governo JK, com a pressão conservadora em torno de João Goulart, a resistência, o clima de conspiração na caserna e a atmosfera cultural do período. Pilagallo destaca os principais personagens e suas falas: as legendas e balões com dizeres são quase uma antologia de momentos marcantes do período, pela voz de seus atores mais importantes.

O golpe de 64 é quase um álbum paradidático, sobretudo pela costura sucinta dos fatos e correta seleção de interpretações mais canônicas. O desenho de Rafael Campos Rocha oferece um bom suporte para o roteiro, sobretudo pela visão sagazmente caricata das personagens, mas não chega conduzir a narrativa nem dá a ela uma dinâmica própria. A se destacar a inspiração ética que comanda a estética: a esquerda é sempre digna, os milicos uns brutamontes. Ponto para Rafael. A dupla deveria dar continuidade ao projeto, numa trilogia que abarcasse o período da ditadura e, ao fim, trouxesse a história da redemocratização do Brasil. Os leitores jovens merecem e os autores devem estar bem afiados depois do primeiro desafio. 

 CÂNONE GRÁFICO: CLÁSSICOS DA LITERATURA UNIVERSAL EM QUADRINHOS, VOL. 1
. Organizado por Russ Kirk
. Editrora Barricada, 456 páginas, R$ 118

KAPUTT
. De Curzio Malaparte, adaptação e arte de Guazzelli
. Editora WMF Martins Fontes, 184 páginas, R$ 59

CORAÇÃO DAS TREVAS
. De Joseph Conrad, adaptação de Catherine Anyango e David Zane Mairowitz
. Editora Veneta, 128 páginas, R$ 39,90

O GOLPE DE 64
. De Oscar Pilagallo e Rafael Campos Rocha
. Editora Três Estrelas, 120 páginas, R$ 34,90

Efeito Pearson - Eduardo Almeida Reis

O bandido que matou o chofer se vangloriou pelo celular. Não cometeu um crime e sim um ato infracional: menor, é inimputável


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 29/11/2014




Ainda que devagarinho, as últimas eleições acusaram o Efeito Pearson em diversas regiões deste país grande e bobo. A começar pelo médico Agnelo dos Santos Queiroz Filho, o radialista Anthony William Matheus de Oliveira, o ex-líder estudantil Luiz Lindbergh Farias Filho, o médico Alexandre Rocha Santos Padilha, o economista Eduardo Matarazzo Suplicy, a advogada Gleise Helena Hoffmann, o médico Cândido Elpídio de Souza Vaccarezza, o engenheiro e economista Edison Lobão Filho, a raiventa Luciana Krebs Genro, seu genitor, o advogado Tarso Fernando Herz Genro, o bispo Marcelo Crivella e vários outros brasileiros e brasileiras.

Como sabe o leitor, o Efeito Pearson resulta de uma fórmula que mistura cresóis e fenóis associados a hidrocarbonetos aromáticos na forma miscível, produzindo um tipo de emulsão essencialmente fina em diluição na água. Assegura o mais amplo espectro de ação bacteriana sobre os microorganismos Salmonella typhimurium, Pseudomonnas aeruginosa, Staphylococcus aureus, Listeria monocytogenes, Escherichia coli e sobre muitos políticos brasileiros. É a Creolina Pearson, que deve ser usada como desinfetante de instalações agropecuárias como pocilgas, galpões e estábulos, no tratamento das miíases (bicheiras) e nas urnas eletrônicas em soluções de 2% a 4% em água. Cuidado: não usar em felinos!

Crimes

Sempre que alguém queima um ônibus – em cinco dias, só em Santa Catarina, foram 17 – o telejornalismo fica preocupado com os motivos, como se houvesse motivo para botar fogo num ônibus. Virou moda no Brasil inteiro. Em São Paulo, dia desses, o fogo alcançou o motorista, que morreu dois dias depois. Em São Luís (MA), o pobre motorista teve queimaduras tão sérias que passou semanas numa UTI. O bandido que acabou matando o chofer paulista se vangloriou do homicídio em telefonema pelo celular. Não cometeu um crime e sim um ato infracional: menor, é inimputável. E tem por ele o papa Francisco recomendando que não se punam os menores, coitadinhos, o que não impede que sejam estuprados por alguns clérigos.
Duvido que a psiquiatria forense possa explicar certos crimes. Thiago, o vigilante goiano, autor confesso de 39 homicídios, assaltou dois rapazes que tomavam cerveja num bar. Chegou de moto com capacete, apontou o revólver, tomou o dinheiro e os celulares dos dois.

Em seguida, devolveu espontaneamente os celulares e o dinheiro antes de atirar num deles, que morreu. O sobrevivente contou, como vi na tevê, que Thiago estava de capacete, mas tem certeza de que foi ele, porque o reconheceu pelos olhos. Homessa! Foi exatamente pelo olhar que analisei o maluco e escrevi sobre o fato, considerando que não tem o tipo lombrosiano, mas o seu olhar de viés é indicativo do que lhe vai pelos miolos.

Coragem

Magro, bons dentes, cabelos brancos, o psicanalista Contardo Calligaris, de 68 anos, não tem medo de dizer o que pensa. Nascido na Itália, formado em letras, doutor em semiologia, doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provença, na França, casado desde 2011 com a atriz Mônica Torres, foi muito feliz no Manhattan Connection do dia 26 de outubro, logo depois das eleições.

Perguntado sobre a possibilidade de contar com a senhora Rousseff como sua paciente, explicou que seria complicado, porque ela teria que ouvir alguém. Trabalhando “diuturna e noturnamente” pelo bem do Brasil, a senhora Rousseff não dispõe de tempo para ouvir ninguém. Se dispusesse, saberia que “diuturna e noturnamente” não existe em português, considerando que o adjetivo diuturno significa “que se prolonga, prorroga ou protela no tempo; prolongado, longo; demorado, que subsiste por muito tempo”. Noturnamente não existe na consulta eletrônica ao Volp da Academia Brasileira de Letras, mas a senhora Rousseff pode falar com o seu inventor, o honoris causa da Silva, que assinou o Acordo Ortográfico e deve conhecer o sufixo -mente, do latim mens,mentis 'espírito, alma', na formação de advérbios com a noção de 'maneira, modo': fielmente, regularmente, mesmo porque mente muito.

O mundo é uma bola

Veja o pacientíssimo leitor como são perigosos certos ensinamentos da Wikipédia. Descubro que no dia 29 de novembro de 1643 dom João VI criou o Ministério da Justiça no Brasil. Providência difícil, porque dom João VI, aliás João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança, nasceu em 1767 e foi a óbito em 1826. Nomes reais são muito compridos, enquanto os plebeus podem ser deliciosos como o da garçonete que pesava minhas marmitas no Couve-Flor: Kerollay. É dos melhores nomes que tenho visto nestes últimos 50 anos. Ainda sonho ver o Brasil entupido de Kerollays e o Google já tem 30.000 entradas para Kerollay.

Em 1877, inauguração da primeira instalação telefônica do Brasil, no Rio de Janeiro, durante o governo do neto de dom João VI. Em 1888, o físico alemão Heinrich Rudolf Hertz prova a existência das ondas eletromagnéticas. Em 1929, isto é, ainda “outro dia”, o almirante norte-americano Richard Byrd foi a primeira pessoa a sobrevoar o Polo Sul. Em minha esplendorosa ignorância pensei que Byrd, em inglês, fosse passarinho, mas é bird, que na Inglaterra também significa "gatinha".

Ruminanças


“Mau caráter: um homem cujas qualidades, preparadas para mostrar como uma caixa de frutas no mercado – as boas para cima – foram abertas do lado errado. Um cavalheiro invertido” (Ambrose Bierce, 1842-1914).