segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Línguas - Eduardo Almeida Reis

Dele se dizia que nunca dormiu desacompanhado e achava muito importante, antes de mais nada, dar prazer à parceira


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 20/10/2014


Capitão Sir Richard Francis Burton, KCMG, FRGS (1821-1890). Recomendo ao leitor que tome nota desse nome e procure ler sua biografia escrita por Edward Rice, se você quiser saber da vida de uma das mais extraordinárias figuras do século 19, escritor, tradutor, linguista, geógrafo, poeta, antropólogo, orientalista, erudito, espadachim, explorador, agente secreto e diplomata britânico.

Burton falava 29 idiomas e 50 dialetos, mas falava bem, tanto assim que traduziu Os Lusíadas para o inglês, viajou a pé à cidade de Meca, peregrinação mortalmente proibida aos não muçulmanos, e visitou Harar, capital da Somália, de onde nenhum homem branco havia saído com vida. Traduziu As Mil e Uma Noites e o Kama Sutra. Melhor que isso: percorreu Minas Gerais a cavalo e nos deixou dois livros notáveis sobre suas andanças mineiras. Ao morrer, em Trieste, trabalhava simultaneamente em 12 livros utilizando 12 mesas diferentes, com as tintas, os papéis, as canetas e os dicionários respectivos. Dele se dizia que nunca dormiu desacompanhado e achava muito importante, antes de mais nada, dar prazer à parceira.

Casou-se aos 40 com Isabel, namorada de infância, e com ela viveu até morrer. Foi cônsul inglês em Santos, SP, muitos anos antes de Pelé, Robinho e Neymar Jr. Resta explicar por que Burton pintou em Tiro e Queda neste 2014. Seguinte: escrevi sobre a fundação da Academia Mexicana de Línguas e disse que nenhum leitor se interessaria pela instituição datada de 1835. O México é hoje o maior país de língua espanhola, com seus 118 milhões de habitantes, e tem uma porção de idiomas locais. Recebi amável e-mail de um leitor explicando que naquele país são faladas diversas línguas. Lembrei-me da biografia de Richard F. Burton e fui ao Google para descobrir que há 1.697.000 mexicanos (meio Uruguai!) falando náhuatl, 1.695.000 (meio Uruguai!) falando maia, 596 mil fluentes em otopame e 531 mil em zapoteca. E o negócio vai por aí.

Se o leitor, mineiro de Belo Horizonte, fala totonaca, vai encontrar no México 272.500 fluentes em totonaca para conversar sobre pão de queijo, aguardente de cana e comida di buteco. E vai descobrir que só existem 300 falantes em algonquina, a terça parte dos moradores em Serra da Saudade, MG. Tendo sorte, vai provar com os mexicanos cerca de 237 insetos comestíveis. Deve ser uma delícia o papo em náhuatl mastigando insetos torradinhos. Boa viagem!

O mundo é uma bola
20 de outubro de 1097: os cavaleiros da Primeira Cruzada chegam à cidade de Antioquia, na Síria. Em 1349, o papa Clemente VI proíbe a flagelação, prática de atos punitivos, mortificantes ou de sacrifício que pode ter origem em escolha voluntária ou não. Em alguns países muçulmanos, a flagelação pode ser usada como castigo por violação da sharia, pelo consumo de álcool e, prestem atenção os meus amigos belo-horizontinos, pelo sexo fora do casamento. No sado-masoquismo, também existe a flagelação, mas por motivos eróticos ou sexuais.

Em 1798, fundação da Vila de Paracatu do Príncipe, atual Paracatu, em Minas Gerais, Brasil, região conhecida pelos europeus desde 1586, terra natal de Joaquim Benedito Barbosa Gomes, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, que fez renascer nos brasileiros dignos a esperança de que esta choldra possa tomar jeito. Em 1926, foi registrada a passagem de um dos piores furacões da história de Cuba. Em 1570, morreu João de Barros, o Tito Lívio português, geralmente considerado o primeiro grande historiador de Portugal. Em 1991, Ayrton Senna vence em Suzuka, no Japão, o seu terceiro campeonato mundial de Fórmula 1.

Hoje é o Dia do Poeta, do Arquivista, o Dia Mundial do Controlador de Tráfego Aéreo, da Osteoporose e da Estatística.

Ruminanças
“O estilo é apenas a ordem e o movimento que colocamos em nossas ideias” (Buffon, 1707-1788). 

O equílibrio dos pobres - Renato Janine Ribeiro

Valor Econômico 20/10/2014

O resultado do segundo turno será que a grande disputa política continuará sendo entre PT e PSDB, o chamado Fla-Flu

Já afirmei que a campanha presidencial está tão agressiva porque quem perder perderá muito, talvez tudo. Será que o PSDB aguenta quatro derrotas sucessivas de seu projeto de nação? Será que o PT sobrevive de volta à oposição, depois que seu DNA se acostumou ao governo? Mas os resultados de primeiro turno, somados aos que teremos domingo, me fizeram mudar de opinião. Desde 2002 o eleitorado brasileiro, de maneira sistemática, escolhe candidatos de partidos opostos para cargos importantes. Em bom português, ele se recusa a deixar todos os ovos na mesma cesta. Em teoria política, isso se chama: Montesquieu; explicarei a seguir. De duas uma: ou os eleitores são loucos de manter vivo o confronto PT-PSDB, vitaminando ambos ma non troppo, ou seguem um padrão consistente e coerente. Vamos ver.

A agressividade tem razão de ser. Um dos dois grandes partidos vai chorar domingo à noite. Hoje, a seis dias da eleição, não se tem ideia de quem vencerá. Nem dá para confiar nas pesquisas, depois que erraram tanto na votação de Aécio Neves.

Suponhamos que o PT perca. Em 12 anos no poder, ele mudou de natureza. Aprendeu a governar. Isso tem um lado bom. Em 1989, quando esteve a um passo de vencer, o PT entrou discretamente em pânico: não teria quadros para dirigir o país. Hoje tem. Milhares de pessoas de esquerda aprenderam a lidar com a administração. Até poucos anos, entre os quadros habituados à gestão pública, predominava a formação à direita. Hoje, qualquer grande partido que ganhe uma eleição sabe governar.

Nem PT nem PSDB sairá arrasado das eleições

Mas o partido com mais raízes no povo se afastou dos representados. Nossa política tem uma lógica perversa: qualquer cargo no Executivo vale mais do que a liderança no Legislativo ou no partido. Ora, parlamentares e líderes partidários são quem faz o meio de campo com o eleitor. Num partido popular como o PT, separar a política do poder real e deixá-la para os coadjuvantes é perigoso. Pior do que seria no PSDB, que sempre se concentrou na elite. É por isso que a oposição de esquerda acusa o PT de despolitizar a sociedade.

O PT, na oposição, sofrerá mais do que pré-2002. A mídia não o hostilizava como hoje. Não terá a simpatia da mídia, do patronato e da classe média. Estará reduzido a governar poucos Estados. Precisará recriar um perfil de oposição. O que talvez seja bom, para ele e para o Brasil. A oposição que tivemos estes anos viveu mais de ódio que de propostas.

Suponhamos que o PSDB perca. Será a quarta derrota seguida em eleições presidenciais. Talvez, finalmente, ele descubra que não dá mais para ter um perfil tão elitista - tão elitista que o partido nem percebe a dimensão ou gravidade disso! Talvez possa se retemperar se aproximando ou até se fundindo com setores que apoiaram Marina. Talvez se abra mais ao mundo atual, especialmente nos costumes e valores. Mas pode deixar de ser a oposição, para se tornar uma das oposições. Precisará pensar se em 2018 oferece mais do mesmo, ou algo novo. Há uma enorme quantidade de propostas que poderia ter assumido, mas não o fez. Quem sabe.

Agora, o outro lado. Perdendo, o PSDB ainda assim governará dois Estados importantes, São Paulo e Paraná. Perdendo, o PT ainda assim governará dois Estados importantes, Minas Gerais e Bahia. Nenhum deles sai arrasado.

Havia um cenário de horror para o PSDB, um mês atrás: Aécio perder no Brasil e em Minas Gerais; pior, ficar em terceiro na eleição federal. Ele perdeu na vitrine mineira. Mas teve uma boa votação para a Presidência. Mostrou uma firmeza que muitos lhe desconheciam, mostrou coragem ante a adversidade. Se mesmo assim perder, terá apagado a imagem de playboy que seus adversários lhe colam. Manterá popularidade. E o PSDB terá bases políticas, além das midiáticas e empresariais, para continuar lutando.

Se Dilma perder, o PT viverá tempos difíceis, até porque terá menos financiamento privado, mas pode compensar isso com sua capacidade de fazer oposição. Bater-se contra o governo em condições adversas, o PT soube fazer. É difícil saber como o PT fará isso agora, mas ele ainda terá apoio em parte significativa da sociedade.

Com tudo isso, é provável continuarmos com esse par de irmãos inimigos. Por quê? Porque, quando um deles está quase liquidado, o povo brasileiro lhe dá uma sobrevida. Nas eleições de 1994 e 1998, as primeiras em que o presidente foi eleito junto com o Congresso e os governadores, o povo deu tudo ao PSDB e aliados. Levaram Presidência, maioria no Congresso, governadores. Desde 2002, o povo mudou. Deu a Presidência ao PT, no que foi uma verdadeira revolução - a primeira vez que a esquerda assumia o Poder Executivo federal - mas manteve a oposição nos Estados. Daí em diante o PT aumentou suas prefeituras, mas nunca mais houve "o primeiro colocado leva tudo". Esse padrão se repetirá agora, qualquer que seja o resultado do segundo turno. É constante demais para ser mera coincidência - ou para expressar alguma inconsistência do voto, tipo "o povo não sabe votar".

O eleitorado brasileiro optou por Montesquieu. Ele quer o equilíbrio entre os Poderes, que acontece quando um contém o outro para que ele não seja forte demais. Os anos 1994-2002 bastaram, em termos de concentração do poder. Agora, o povo deseja que ninguém possa tudo. Leva a sério, mesmo não a conhecendo, a máxima de Lorde Acton: "O poder tende a corromper. O poder absoluto corrompe absolutamente". Não dá poder absoluto a ninguém. Num país politicamente rachado, ele vota em ambos os lados. Não quer confiar seu destino a um só. Não quer resolver o racha. Parece até exigir que os dois lados se entendam.


Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. E-mail: rjanine@usp.br