domingo, 14 de setembro de 2014

Ajuste fiscal e ações sociais virão juntos, diz Marina - Daniela Chiaretti


Valor Econômico

Daniela Chiaretti | De São Paulo
Marina Silva está sob ataque, cansada de se defender do que chama de "bombardeio" dos adversários e frustrada por não conseguir debater suas propostas. A candidata à Presidência pelo PSB perdeu a dianteira que tinha no segundo turno das eleições, segundo as últimas pesquisas, mas não se sente acuada. Finaliza a entrevista exclusiva que deu ao Valor Pro, serviço de informação em tempo real do Valor, no flat que ocupa em São Paulo, mencionando a passagem bíblica de Davi e Golias. Davi tinha cinco pedrinhas no embornal e derrotou o gigante. Menos metafórica, ela ataca a presidente Dilma Rousseff dizendo que em seu governo "as coisas estão chegando ao fundo do poço" e que a crise energética do país é responsabilidade da adversária.
Na pequena sala de estar, sobre a estante, uma única foto - de Eduardo Campos - e vários livros, um deles sobre mulheres negras. Marina tem o cabelo preso em coque com um enfeite de capim dourado. Fala com desenvoltura sobre o quanto entraria de recursos na economia com a redução da taxa Selic, corrige o economista Eduardo Giannetti dizendo que ajuste econômico e ações sociais serão simultâneos em seu governo, se eleita. Diz que o agronegócio "não tem o que temer". A entrevista é interrompida com a chegada da sorridente deputada Luiza Erundina, sua coordenadora de campanha, para iniciar a intensa agenda do dia. A seguir, os principais trechos:
Valor: Se eleita, qual será a primeira medida de seu governo?
Marina Silva: Se eu ganhar, a primeira medida já terá sido feita pela sociedade brasileira: renovar os procedimentos na política e contribuir para renovar a política. E a parte mais importante, quebrar a polarização PT e PSDB para instituir um governo com base em um programa e não em um cheque em branco, que depois buscará governabilidade com base na distribuição de pedaços do Estado. Este governo programático tem a visão de manter as conquistas já alcançadas pela sociedade brasileira. Uma conquista importante são os 10% para a educação, que vamos implementar sem desvios de recursos e antecipando a meta para 4 anos, de universalizar a educação de tempo integral. Vamos mandar, no primeiro mês do governo, uma proposta de reforma tributária para o Congresso com base no princípio da justiça tributária, transparência e simplificação.
Valor: Os compromissos que a senhora assumiu implicam gastos de R$ 140 bi nas contas do PT e R$ 157 bi nas do PSDB. Quais são as contas de seu partido e como pretende custeá-los? E eles virão, como disse ao Valor o economista Eduardo Giannetti, apenas depois do ajuste?
Marina: Com certeza o que Giannetti estava dizendo é que essas coisas acontecerão juntas. Mas há uma conta que precisa ser feita antes e que PT e PSDB não estão fazendo: é a conta negativa de não fazer as escolhas de investir na saúde, educação, segurança, transporte digno, qualidade de vida e serviços que os brasileiros estão cobrando. Essa conta negativa que eles apresentam, de que nada disso será possível fazer, a sociedade tem que começar a perceber. Como é que alguém reivindica governar para deixar tudo como está? Nós estamos fazendo uma escolha.
Valor: Quais são estas escolhas?
Marina: A redução de um ponto percentual nos juros, na taxa Selic, significa cerca de R$ 25 bilhões. Este dinheiro circulando na economia alimenta o processo que nos ajuda a ir criando o espaço fiscal para os investimentos. O combate à corrupção que hoje grassa neste governo nos ajudará a ter o espaço fiscal para priorizar o que interessa. A eficiência do gasto público, evitando projetos que começam com R$ 6 bilhões ou R$ 7 bilhões e depois chegam a R$ 15 bilhões ou R$ 20 bilhões, nos ajudará a ter recursos para investir nas escolhas que fizermos. O PT e o PSDB fazem a conta de deixar tudo como está e reivindicam ganhar a Presidência da República. Nós estabelecemos prioridades e vamos trabalhar a partir dos pré-requisitos que mencionei para estimular o país, que ganhará nova credibilidade para investimentos e para que volte a crescer. Com o crescimento teremos ampliação do orçamento para que possamos fazer os investimentos.
Valor: E o Conselho de Responsabilidade Fiscal?
Marina: É para fazermos tudo com responsabilidade, para que as coisas aconteçam sem descontrole. Quando a inflação volta, o crescimento baixa e o país perde credibilidade. Isso prejudica até as conquistas já alcançadas.
Valor: Qual é a conta de vocês?
Marina: Estamos fazendo os cálculos, vamos concluir esse processo na transição. A conta negativa, de continuar fazendo as coisas do mesmo jeito, é o que precisa ser entendido neste subtexto que o tempo todo cobra de onde virá o dinheiro para a saúde, educação, segurança, moradia, mobilidade. Eles querem continuar colocando R$ 500 bilhões no BNDES para dar para meia dúzia de ungidos que são escolhidos pelo governo para serem os campeões. O próprio presidente Lula disse que nunca os bancos ganharam tanto como no atual governo. Citou vários países para dizer que o Brasil é campeão em dar lucro aos bancos.
"A autonomia do BC hoje é para recuperar credibilidade, para que o país volte a ter investimentos, volte a crescer"
Valor: Uma crítica que se faz à sua proposta de independência ao Banco Central é que seria dar todo poder ao mercado. Por que a opção?
Marina: O presidente Lula, quando ganhou o governo, quis dar um sinal forte para a sociedade brasileira de que os instrumentos da política macroeconômica seriam preservados. Fez isso com uma Carta aos Brasileiros, convidando Meirelles [Henrique Meirelles, ex-presidente do BC], e durante seu primeiro governo tivemos o cumprimento dessas metas. No seu segundo governo, as coisas já foram se depreciando. No governo da presidente Dilma estão chegando ao fundo do poço. E a autonomia de fato que o Banco Central conquistou, agora está completamente desacreditada. Diante deste descrédito, o baixo investimento no nosso país faz com que tenhamos o crescimento pífio que o governo ostenta. Quando as demais economias do mundo começam a se recuperar do tsunami com que foram assoladas - e que o governo dizia que era apenas uma marolinha -, o Brasil vive o tsunami de não ter feito o dever de casa. Estão pagando o preço da arrogância de quem não reconhece os problemas. A autonomia do Banco Central hoje é para recuperar credibilidade, para que o país volte a ter investimentos, volte a crescer. Foi tão depreciada no atual governo, que Eduardo Campos anunciou que iria buscar formas de institucionalização dessa autonomia.
Valor: Qual o melhor formato do BC independente? Cuidaria só da meta de inflação ou também de uma meta de emprego?
Marina: Estamos pesquisando qual a melhor forma. Este modelo a que você se refere é o americano. Um Banco Central autônomo é para que não aconteça com ele o que aconteceu com a Petrobras. Em vez de ficar a serviço da sociedade para ajudar a controlar a inflação, preservar o emprego e investimentos, seja colocado na lógica do poder pelo poder. O Banco Central autônomo ajudará o País a recuperar sua credibilidade. Nada disso seria necessário se não fosse a degradação que passa a política econômica. A inflação alta prejudica o salário dos trabalhadores. Um país que não cresce prejudica o emprego. Um país que coloca o futuro dos seus filhos a serviço de um grupo político que parece não encontrar limites na disputa do poder faz com que, no médio e longo prazo, até aquilo que se conquistou possa ser perdido, como é o caso das políticas sociais e dos ganhos econômicos. O que estamos fazendo é debatendo o Brasil. Não vamos pela lógica de ganhar a qualquer custo e qualquer preço.
Valor: Como pretende elevar o superávit primário? Com aumento de juros ou corte de despesas?
Marina: São várias políticas combinadas. A eficiência do gasto público - tem que se verificar o desperdício que está sendo feito em obras como a transposição do São Francisco, por exemplo. Maior eficiência, integração e planejamento dos projetos levará a uma grande economia. Fazendo uma política de redução de juros cria-se um processo virtuoso na economia. Ter a atitude de evitar o inchamento da máquina pública. É possível fazer uma gestão competente valorizando os quadros do funcionalismo público e fazendo uma combinação com os que estão na iniciativa privada, na academia. Queremos estimular um novo modelo de gestão. A redução de ministérios será feita a partir de critérios altamente rigorosos, sem prejuízo dos serviços e daquilo que a sociedade espera do Estado.
Valor: A senhora não está numa sinuca de bico quanto à governabilidade, se for eleita? Se não fizer alianças tradicionais ficará na minoria e corre o risco de crises constantes. Se formar maioria, não abandona a promessa de nova política e decepcionará eleitores?
Marina: Quem está numa sinuca de bico é a visão que acha que o Brasil deve continuar infinitamente com uma governabilidade baseada na distribuição de pedaços de Estado, que já nos levou a 39 ministérios e só não se chega aos 40 por constrangimento. Não consigo imaginar como é que a República inteira, cientistas políticos, partidos, se conformam com a ideia de que a única forma de governar o Brasil é com base na degradação política que assistimos. Temos que sair do terreno da opção para o da escolha. Na opção pega-se o que já existe e o que é mais vantajoso para você. No outro, escolhe-se o que ainda não existe e você trabalha para construir. A presidente Dilma tem 400 parlamentares em sua base, e toda vez que vai votar um projeto importante, é chantageada em todas as suas formas. É obrigada a ceder em coisas que ela já tinha dito que não ia fazer. Uma sinuca de bico é entregar o país para continuar do jeito que está. O Brasil tem que andar pra frente.
Valor: Mas o PT é um partido grande, e mesmo assim tem que fazer alianças ruins.
Marina: Quem foi que disse que alianças só se fazem com base na contrariedade do interesse público? Este Paulo Roberto Costa (ex-diretor da Petrobras que tem apontado possíveis beneficiários de um esquema de corrupção na estatal) está há 12 anos como funcionário de confiança do governo dos presidentes Lula e Dilma, indicado por um dos partidos do condomínio, fazendo um verdadeiro assalto na Petrobras. Não tem ninguém do bem para ser escalado?
Valor: Como avalia a mudança no modelo de exploração do petróleo, de concessão para partilha?
Marina: O que foi feito está feito, foi aprovada uma lei no Congresso e a lei deve ser implementada. O PT está fazendo uma mentira em relação ao pré-sal. Nós queremos explorar os recursos do pré-sal porque não existe tecnologia que possa prescindir aos recursos do petróleo em lugar nenhum do mundo. Mas o que o PT quer nos obrigar a dizer é que não se pode investir em tecnologia limpa, renovável e segura, que vamos desistir do etanol. Isso nós não vamos dizer. É possível fazer as duas coisas.
Valor: A presidente Dilma criticou sua proposta de energia. Disse que não é possível fazer esta mudança de matriz de forma rápida.
Marina: Quem disse que é pra fazer rápido? Dilma foi ministra de Minas e Energia, chefe da Casa Civil, presidente da República e diz que não dá para fazer com o argumento que não se faz da noite para o dia. Não se fará se nunca se começar. Não se fará se continuar deixando que o equivalente a 3 ou 4 Belo Montes continuem sem investimento no processo de cogeração do uso do bagaço e da palha da cana-de-açúcar. Não se fará se não se investir em energia solar e eólica. Não se fará sem os linhões para que a energia produzida possa ser integrada ao sistema. A responsabilidade da crise energética é dela. Ela está há 12 anos nesta agenda, nos cargos mais elevados da República. E continua dizendo que a única coisa que dá para fazer é o que já vem sendo feito.
Valor: A senhora fará hidrelétricas na Amazônia?
Marina: As hidrelétricas que temos como potencial na Amazônia são uma fonte de geração estratégica. Quem foi que disse que pra fazer hidrelétrica só se faz se for desrespeitando terras dos índios, questões sociais, culturais e ambientais? Está se criando no Brasil uma cultura de gestão que não tem "senões". Faremos todas as hidrelétricas que respondam pela viabilidade econômica, social e ambiental. O que o atual governo reivindica é apenas a econômica.
Valor: Crise da água em São Paulo é fruto da má gestão do PSDB?
Marina: É crise de má gestão do PSDB e do PT. No governo do PT, todas as políticas de recursos hídricos foram desmontadas. Todo o trabalho que vinha sendo feito nos comitês de bacia foram negligenciados. Aqui em São Paulo, o PSDB, há 20 anos no poder, sabendo o que significa a escassez de água, não tomou nenhuma atitude. É preciso cada vez mais apostar em recuperação de nascentes, de mata ciliar, no tratamento de esgotos, para que reservatórios de água como a Billings possam ser utilizados.
"Não se pode reivindicar ser a potência agrícola do mundo com padrões de produção do início do séc. XX"
Valor: O agronegócio está inquieto com sua promessa de rever os indicadores de produtividade agrícola. Os presidentes Dilma e Lula não conseguiram. Como a senhora pretende fazer isso?
Marina: A presidente Dilma não só não conseguiu fazer, como está comprometida com a ideia de que o Brasil deve se manter em baixos índices de produtividade, mesmo quando já alcançamos índices elevadíssimos. Da década de 70 para cá tivemos um aumento de mais de 200%. Uma expansão de área de, no máximo, 31%. Isso é aumentar índice de produtividade, o setor não tem o que temer, já tem alta produtividade, já usa alta tecnologia. Não se pode reivindicar ser a potência agrícola do mundo com padrões de produção do início do século XX. Isso não é mau para o agronegócio. É colocar o agronegócio no lugar que ele merece e precisa. E onde já está, com seus próprios esforços.
Valor: Outro ponto de tensão é a demarcação das terras indígenas. A senhora pretende fortalecer a Funai. Como vai tourear o agronegócio que resiste à demarcação?
Marina: Não é tourear, é dialogar. Aliás toureados estão sendo hoje. Só que a boiada está estourando a cerca em todos os lugares. Assassinatos de trabalhadores, índios e agricultores porque o governo não se dispõe a dialogar. Pensa que pode negar a realidade. Eu não consigo imaginar que a gente, em um país de 8 milhões de km 2, faça um debate para ganhar a Presidência da República dizendo que vai fragilizar os direitos dos mais frágeis. O Estado não é para dizer que vai governar apenas para os fortes. É para governar com justiça para todos. É possível assegurar os direitos de propriedade dos agricultores, grandes e pequenos, mas é possível também assegurar o direito dos índios, dos quilombolas, dos ribeirinhos. Não consigo imaginar que alguém reivindique que para se ser presidente da República tenha que se abrir mão dos direitos dos índios. Mas é isso que todos são obrigados a dizer. Eu não posso dizer isso. Sonho com um país onde o agronegócio não é vocalizado pelos os que fazem este tipo de discurso, mas por aqueles que querem ver segurança jurídica, credibilidade, respeito aos seus direitos, tecnologia, inovação, infraestrutura, armazéns. Em todas as eleições é feita uma cortina de fumaça por um grupo que ganha muito politicamente reduzindo o problema do agronegócio à disputa com os índios, quando o verdadeiro problema do agronegócio é falta de infraestrutura logística e segurança jurídica.
Valor: Os críticos da sua proposta de eliminar subsídios, o crédito subsidiado do BNDES, dizem que a senhora vai quebrar a indústria. Como será feito este "desmame"?
Marina: A indústria brasileira já está reduzida a pó no atual governo. Para perder a sua competitividade e ficar vivendo as agruras, é só votar na Dilma. A própria indústria reconhece que é preciso criar um ambiente em que investimentos possam acontecer em igualdade para todos. Não é criando um sistema em que, no caso a caso, se favorece um ou outro de forma errática. Tem que combinar políticas macroeconômicas que façam com que o Brasil possa crescer, que volte a ser próspero. Criar no espaço da política microeconômica um ambiente saudável para que a indústria possa se recuperar e que se tenham critérios e transparência. O atual governo favorece um pequeno grupo que escolheu para serem os campeões. Temos que criar os meios para que todos se candidatem nesse campeonato.
Valor: A senhora apoia o fim do fator previdenciário?
Marina: É uma discussão que está sendo feita em relação a como reparar as perdas que os aposentados estão vivendo. Estamos dizendo que vamos rever, buscar novos regramentos. Mas também não vamos nos conformar com a ideia de que os aposentados deverão ser punidos, como estão sendo, no atual governo. Queremos revisitar este tema para buscar novos caminhos, mas ainda não temos uma solução.
Valor: Qual o livro que mais marcou sua vida?
Marina: Um livro que me marcou muito é "A Cor Púrpura" [de Alice Walker].
Valor: Por quê?
Marina: Porque retrata a história de uma pessoa que estava condenada a não ter nenhum lugar ao sol. Existem pessoas que, por sua origem, aparência e história, mesmo quando conseguem uma fresta de Sol, logo são acionadas todas as nuvens e tempestades para mantê-las na sombra. Este é um livro secular. Eu sou uma mulher de fé e a Bíblia é um livro que marca profundamente a minha história. Sou movida a fé e a determinação.

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Pessoa, uma paixão - Ricardo Viel


Pessoa, uma paixão

O livreiro norueguês de um livro só
por Ricardo Viel
    Era uma quarta-feira do começo de julho. No ainda tímido verão de Lisboa, Ana Maria Calvas caminhava pelo Centro. Marcara um encontro às 11 horas ao lado da estátua de Fernando Pessoa, em frente ao café A Brasileira, no Chiado. Já estava bem perto, ia quase meia hora adiantada, e por isso se deteve na altura do número 11 da rua Anchieta, ao avistar uma pequena aglomeração em torno de um sujeito muito alto, louro, de costeletas e cabelos generosos. Perguntou o motivo das câmeras e microfones a uma moça, e de repente viu-se dentro da loja, cercada de livros e diante do homem que dava entrevistas. “Welcome”, disse-lhe o sujeito, que vestia uma túnica azulada espetada por um pin com a cara de Pessoa. Ana Maria avisou que não entendia inglês, mas alguém se dispôs a servir de intérprete.
“Você é minha primeira cliente”, prosseguiu, sempre sorridente, o balconista. “Aceita uma sugestão?”, e antes da resposta apontou para um dos cerca de 300 livros dispostos nas estantes, todos iguais, com uma capa branca que exibia um chapéu estilizado e o título: Livro do Desassossego. “Este aqui”, disse, arrancando risadas dos presentes. A cliente sorriu – uns segundos depois, diga-se de passagem, por culpa do atraso da tradução. “Pensando melhor, acho que recomendo este”, continuou o comerciante, e entregou-lhe outro exemplar, idêntico ao primeiro e a todos os demais.
Antes de ir embora, Ana Maria ainda posou com o livro, já devidamente assinado por Christian Kjelstrup (pronuncia-se “cheustrup”), o livreiro showman. Durante os cinco dias que passou em Lisboa, a rotina do editor e tradutor norueguês foi essa, a de receber de braços abertos e câmera na mão as centenas de visitantes da sua Livraria do Desassossego. Além de vender apenas um livro (e de uma só editora), Kjelstrup conversava com quem por ali passasse, contava histórias e fazia amigos.
Há cerca de quinze anos, o nórdico de 40 anos, hoje pai de três filhos, começou a desenvolver uma paixão pelo poeta falecido em 1935. Ainda estudante de literatura, deparou-se com o texto que mudaria sua vida. “O Livro do Desassossego não é um livro comum, com enredo, conflito e resolução. Fala de sensações, experiências, da vida como ela é, sem subterfúgios”, justifica. A partir daquele momento investiu-se da missão de tornar Pessoa conhecido na Noruega. Começou pelos amigos, depois criou um grupo de leitura, e anos mais tarde teve a ideia de levar o poeta a desconhecidos.

No tempo livre entre suas traduções e críticas literárias, Kjelstrup era uma espécie de “Testemunha de Pessoa”. Batia de porta em porta, oferecendo trechos de sua leitura preferida. “Queria chacoalhar um pouco as coisas, mudar a maneira como a literatura chega às pessoas.” O resultado quase sempre era positivo. “Alguns achavam que eu estava louco, mas em geral as pessoas se mostravam receptivas”, conta. Lia um trecho e, se o interlocutor demonstrasse interesse, apresentava o autor. “Lembro em particular de uma sexta-feira. Fui recebido por um casal que estava abrindo umas cervejas, se preparando para ir à discoteca. Deixaram-me entrar e passamos a noite toda conversando sobre Pessoa e literatura.”
Num domingo, ao cruzar com torcedores caminhando em direção ao estádio, o norueguês teve uma epifania. Telefonou a um clube local e conseguiu o contato de um fabricante de cachecóis na Turquia. Encomendou 100 deles – em vez do nome de um time, a palavra PESSOA, gravada em grandes letras – e os vendeu com facilidade.
O passo seguinte foi a livraria efêmera. Um dia, passeando por Oslo, Kjelstrup viu uma placa de ALUGA-SE num pequeno estabelecimento. Telefonou e perguntou se podia ter o espaço por apenas uma semana. Entre 27 de março e 2 de abril de 2014, as portas da Livraria do Desassossego foram abertas para vender apenas um livro, a tradução norueguesa do Livro do Desassossego. No primeiro dia foram vendidos cinquenta exemplares. No segundo, com a ajuda dos jornais e da televisão, 250. No dia seguinte, recebeu a visita dos príncipes e despachou mais de 500 volumes. No total, espalhou pela cidade uns 1 500 exemplares da obra e fez dela um best-seller. Uma editora decidiu publicar mais 500 exemplares e destacou na capa: “O melhor livro do mundo.” O autor da frase? Christian Kjelstrup, editor.

Anotícia da atípica livraria chegou a Portugal, e a Casa Fernando Pessoa chamou o editor para contar sua experiência. Foi quando ele teve a ideia de procurar em Lisboa um local para abrir sua loja fugaz. “Cheguei a temer pela reação das pessoas e a me perguntar se tinha o direito de tentar promover a obra de Pessoa em sua própria terra, mas a resposta foi maravilhosa, todos foram muito calorosos comigo.”
Em termos comerciais, o projeto “alfacinha” ficou aquém do de Oslo. Foram cerca de 250 livros vendidos, mas a iniciativa teve impacto midiático e Kjelstrup, graças também a seu carisma, ficou conhecido na cidade. Durante a semana em que esteve em Lisboa, o norueguês conheceu a agitada noite da capital, foi à praia e fez a via-crúcis de Pessoa: visitou sua tumba, os bares e cafés que frequentava, os locais onde trabalhou e viveu, o bondinho que sempre pegava.
Estrela principal de uma homenagem organizada na Casa Pessoa, o livreiro norueguês atraiu cerca de 300 interessados, alguns deles especialistas na obra do poeta. E arrancou aplausos diversas vezes, como quando contou que um repórter quis saber o que perguntaria a Pessoa caso o encontrasse pelas ruas da cidade. “Acho que não perguntaria nada, eu apenas o convidaria para tomar um absinto no Martinho da Arcada.” O encontro no mítico café não aconteceu, mas o editor pode dizer que dormiu com o poeta, ou quase. Foi convidado para passar uma noite no quarto que reproduz a última casa em que ele morou. “Me lembro de fechar os olhos e aparecerem muitos rostos. Seriam os heterônimos? As pessoas que conheci em Portugal? Alucinações etílicas? Não sei”, contou.