sábado, 15 de fevereiro de 2014

João Paulo - Trinta anos do MST‏

Trinta anos do MST 
 
Crianças de famílias do MST se manifestam em frente ao Ministério da Educação em Brasília: o futuro em ação 
 
João Paulo
Estado de Minas: 15/02/2014


 (Beto Barata/AFP    )


O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST, está completando 30 anos. Ontem, foi encerrado em Brasília o 6º Congresso Nacional da entidade, com o tema “Lutar, construir reforma agrária popular”, com mais de 15 mil pessoas de 23 estados brasileiros, entre elas mil crianças, unidas em torno das ações dedicadas aos “sem-terrinha”. Você, provavelmente, não sabia que o movimento estava completando 30 anos, nem que reuniu tanta gente esta semana em Brasília. E não é por acaso.

A estratégia de silenciamento, quando não de demonização, dos movimentos populares no Brasil tem no MST o mais destacado alvo. As razões são muitas, todas elas ligadas a interesses no campo político, econômico e ideológico, mas o que mais chama a atenção é o acúmulo em torno do esforço de encobrimento da verdade. Não se trata de combater ideias divergentes, mas de desqualificar sua presença na arena pública. A relação com os movimentos sociais no Brasil, neste sentido, há muito deixou de ser política para ser policial.

O caso da terra é o mais exemplar. A posse da terra no Brasil parece ir além da defesa da propriedade privada para ser um dos esteios da constituição do nosso modelo de país, quase de caráter (ou falta dele), marcado em sua origem pela concentração das propriedades nas mãos de poucos. Talvez por isso os vergonhosos índices de desigualdade social pareçam tão naturais à elite, ela é a continuidade de um processo de dominação política que foi traduzida em diferenças naturais de origem. A sentença de Jean-Paul Sartre sobre o burguês (que dizia que era possível tirar tudo dele, menos a condição de burguês) pode ser reescrita no Brasil pelo apego atávico às grandes glebas rurais.

Não é também por um acaso que as reformas liberais, que perpassam a história de todos os países do mundo ocidental a partir do século 18, nunca vingaram por aqui, exatamente pela incapacidade de aceitação da reforma agrária. O grande proprietário brasileiro nunca foi capaz de se imaginar perdendo terras. Perdeu escravos, perdeu poder, perdeu prestígio, mas defende a terra à bala, como mostra a triste contabilidade que vem sendo registrada no país.

Esse “instinto de propriedade” não pode ser traduzido como defesa do modelo capitalista liberal, já que, até por questões de racionalidade econômica, historicamente jogou contra ele em vários momentos de nossa trajetória. Mesmo o golpe militar de 1964, que está completando 50 anos, tem um de seus pilares na condenação das reformas de base pretendidas por João Goulart, especialmente a reforma agrária. Ditadura e concentração de propriedade são irmãs siamesas cinquentonas.

Se o passado parece acorrentar as perspectivas de mudanças, a trajetória do MST, no entanto, vem demonstrando capacidade de articulação e reação que reafirmam os propósitos do movimento de luta pela terra, pela reforma agrária e pela justiça social. Além disso, num momento de crise das estruturas clássicas de representação e descrédito da política tradicional, o movimento traz elementos próprios de organização interna e participação social que irrigam o campo da política.

O mais respeitado e consequente movimento social brasileiro, com reconhecimento inclusive internacional entre entidades supranacionais e intelectuais de todo o mundo, precisa ser mais bem conhecido e sair do círculo de desinformação que se formou em torno dele. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra é patrimônio do povo brasileiro. E como tal merece ser considerado, mesmo entre os que dele discordam em termos de ideias, visões de mundo e estratégias. O primeiro terreno do embate político deve ser sempre a verdade.

1) Um novo ator
A primeira característica distintiva do movimento é sua base, o trabalhador rural sem terra. A expressão designa sua origem no processo de produção (trabalhador rural) e sua posição de exclusão no sistema de propriedade. Sob esse perfil estão diversas experiências de vida, quase sempre marcadas pelo mesmo sentido de não pertencimento em termos de direito e acesso à propriedade. Durante os anos 1990, o movimento recuperou a categoria de camponês, com sua semântica mais internacionalista e de reafirmação de valores ligados à preservação ambiental e cultural de defesa de novos modelos de produção.

2) Outra organização
Num cultura política como a brasileira, marcada pela centralização e tendência ao presidencialismo em todas as esferas (há sempre a valorização do chefe, do dono, do cabeça), o MST inaugura um novo modelo. Não há instrumentos de filiação (o militante se faz no trabalho diário) ou hierarquia a ser galgada. O movimento se identifica por suas bandeiras, adaptadas às lutas locais. A organização parte sempre da base, em processo continuado de alianças e ampliações, com comando local e sem subordinação automática a lideranças predeterminadas. O sutil equilíbrio entre bandeiras gerais e protagonismo local é mantido com a valorização das instâncias de participação. Quem procurar o “dono” do MST vai encontrar uma teia múltipla de militantes.

3) O que quer o MST
A primeira identidade do movimento é com a redistribuição da terra. No entanto, com o tempo e a incorporação do capitalismo industrial ao campo, a simples posse da propriedade rural não é capaz de mudar o panorama de desigualdade social do país. O movimento, neste sentido, ampliou seus objetivos em torno da chamada reforma agrária popular, que incorpora, além do campo, todos os problemas estruturais da sociedade brasileira. Dentro do projeto está a mudança da concepção de produção de commodities em direção à produção de alimentos; transformação da matriz energética; condenação do uso extensivo de venenos na agricultura; defesa e preservação da biodiversidade. Não se trata de devolver “pobres” ao campo (essa desfaçatez dos que apóiam uma reforma agrária higienista), mas de distribuir riqueza sustentável.

4) Mais que terra
Uma das características mais importantes do movimento tem sido seu investimento em educação. Como se trata de luta continuada, o esforço para educar crianças e jovens não pode ser pensado em etapas estanques. É preciso educar a todo momento, inclusive nos acampamentos. A história do MST registra números impressionantes: foram alfabetizados pelo movimento cerca de 50 mil trabalhadores e formados 8 mil educadores. Cerca de 200 mil crianças estudam em escolas ligadas ao movimento, em assentamentos e acampamentos. A prática educativa tem ainda experiências de incentivo ao estudo e formação política (algo que sempre fracassa nos partidos políticos) e até de construção de uma escola para formação de militantes, com programas de pós-graduação. O movimento tem ainda convênios com universidades e editoras, ampliando seus programas educativos.

5) Força da mística
Quem já participou de uma reunião ou evento do MST certamente ficou conhecendo o que os militantes chamam de mística. Trata-se de uma manifestação que sempre abre as reuniões, de modo a convocar a emoção e o sentido de fé, independentemente da religião. Pode ser uma dinâmica, uma canção, uma peça de teatro, uma oração. O que caracteriza a mística (que certamente traz a origem dos ritos católicos dos seguidores da teologia da libertação, presentes nas primeiras horas do movimento) é o alargamento da participação além da pura racionalidade, com o fortalecimento da identidade básica com as bandeiras do MST. Durante a mística, a realidade é transfigurada em símbolos. Além disso, as místicas contribuem na narração de uma história que não tenha como ponto de partida apenas a versão dos vencedores.

6) Soberania alimentar
Se o conceito de segurança alimentar foi incorporado por parte da sociedade brasileira, que não aceita conviver com a fome de seus semelhantes, o MST tem avançado para o modelo de soberania alimentar. Não se trata apenas da produção, mas do tipo de alimentos produzidos no país. O modelo hegemônico, do agronegócio, prioriza poucos produtos, voltados para necessidades externas, que se tornam quase fetiches: não são plantas e grãos, mas commodities, uma espécie de tradução financeira dos produtos. A produção de commodities canibalizou as áreas que deveriam estar voltadas para o plantio de alimentos condizentes com nossas necessidades e cultura, no sentido amplo da palavra. De 1990 para cá, as áreas destinadas ao plantio de arroz e feijão, por exemplo, encolheram em mais de 30% em favor da soja e outros produtos que alimentam porcos e carneiros na Europa, EUA e China.

7) Sem veneno
Uma das bandeiras mais presentes nas ações do MST tem sido o combate à produção com uso intensivo de agrotóxicos. O volume de veneno na mesa (e no corpo) dos brasileiros tem crescido em escala assustadora. O Brasil é o campeão no uso de agrotóxicos em todo o mundo, consumindo em torno de 20% de todo o veneno produzido no planeta. Para quem gosta de saber o que está comendo e bebendo, pode anotar: cada brasileiro consome 5,12 litros por ano. Além da saúde, o país paga caro em grana pelo envenenamento voluntário: US$ 8,5 bilhões. O uso de defensivos não é uma opção apenas técnica, ele se articula economicamente com as indústrias químicas internacionais, muitas delas detentoras de grandes propriedades rurais e institutos de pesquisa de transgênicos. Sem falar da contaminação do solo, dos lençóis freáticos e dos danos à biodiversidade.

8) Relação tensa
Outra característica do movimento tem sido sua independência em relação ao Estado, o que não significa a ausência de reconhecimento do papel do setor público. O MST estabeleceu uma relação sempre tensionada, quase no limite, de modo a ampliar a gama de direitos que vêm sendo historicamente negados a grande parte dos brasileiros. Nesse processo, a estratégia mais conhecida tem sido as ocupações de terras aptas à reforma agrária. O movimento tem mostrado que a semântica também é política: invasão é apropriação indébita de terra para proveito próprio, como se fez historicamente no Brasil com terras indígenas e de pequenos produtores familiares; ocupação é mobilização legítima em torno de terras que não cumprem a determinação constitucional de valor social, de modo a pressionar para sua desapropriação para fins de reforma agrária. A pressão pela terra se estende também à mobilização por conquista de políticas públicas populares.

9) Disputa ideológica
O movimento dos sem-terra não se dá no vazio. Há um embate de ideias que foi estabelecendo lados, posições, visões de mundo. O MST tem tido seus propósitos completamente deturpados, o que obrigou a profissionalizar sua própria comunicação, gerando um debate ancorado por publicações e participações em eventos em todo o país e em fóruns internacionais. Os adversários da reforma agrária, além da hegemonia dos meios de comunicação, se articulam em organizações suprapartidárias e frentes parlamentares. Só a chamada bancada ruralista conta com mais de 160 deputados e 11 senadores, que patrocinam demandas que vão muito além do combate à reforma agrária, com bandeiras como o bombardeamento do Código Florestal, o questionamento permanente da demarcação de áreas indígenas e a liberação de transgênicos, entre outros.

10) Solidariedade internacional
Se a globalização está na raiz de vários problemas vividos hoje em todo o mundo, com os países ricos cada vez mais próximos de posturas protecionistas e chauvinistas, talvez a saída também passe por valores transnacionais. Em termos de articulação política à esquerda, o MST tem demonstrado a mais fértil das iniciativas. São ações com movimentos como a Via Campesina, entre outras organizações, que demonstram a possibilidade de mudanças de teor planetário em torno da defesa do meio ambiente, da preservação das culturas locais, de novos modelos de produção e distribuição. O internacionalismo e as novas alianças, ao contrário do que querem fazer parecer os adversários da reforma agrária, têm se mostrado caminho importante para ações que demandam mobilização mundial.

O MST completa 30 anos com conquistas e desafios. Próprios de sua natureza, os desafios estão sempre em primeiro lugar. Ainda há muito a ser feito.

ENTREVISTA/ÁLVARO ALVES DE FARIA » "Não há espaço para poetas de verdade"‏

ENTREVISTA/ÁLVARO ALVES DE FARIA » "Não há espaço para poetas de verdade" 
 
Escritor paulista está desiludido com o Brasil e assume identidade literária portuguesa 
 
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 15/02/2014


 (Escrituras/Reprodução)


Poeta contestador, considerado um dos mais importantes da sua geração, que ficou nacionalmente conhecida nos anos 1960, a partir de São Paulo, Álvaro Alves de Faria, hoje aos 72 anos, continua na ativa. Voltado para a poesia portuguesa, por considerar a produção contemporânea do Brasil uma decepção, ele acaba de lançar O uso do punhal pela Editora Escrituras. A publicação coincide com o lançamento na Espanha de Cartas de abril para Júlia, segundo ele uma novela escrita com a linguagem portuguesa, mas que em alguns momentos entra na linguagem literária de Cervantes. Também sociólogo e jornalista, profissão que continua exercendo em São Paulo, onde nasceu, Álvaro Faria já publicou mais de 50 livros. Sem perder jamais a marca política de sua geração. “Sempre fui um poeta contestador”, reforça Álvaro Faria em entrevista ao Pensar.


Como era fazer poesia nos anos 1960, com recitais nas ruas de São Paulo, prisão pelos agentes da repressão, contestação ao governo? O poeta era mais participativo?

Os anos 1960 foram de efervescência cultural em São Paulo. Todos tínhamos 20 anos. Éramos um grupo de jovens poetas saídos da adolescência que se reuniu em torno do editor Massao Ohno, que publicou a famosa Antologia dos novíssimos, em 1961, da qual faço parte. Dos nomes reunidos nessa antologia, restaram poucos que levaram a poesia adiante. No que diz respeito à poesia de contestação, eu, particularmente, sempre escrevi nesse tom, até porque comecei a participar de grupos clandestinos que se formaram depois de 1964. Em 1965 lancei O sermão do viaduto, que nem sei quantas edições tem. O livro foi lançado em pleno Viaduto do Chá, então cartão-postal de São Paulo. Foi o início do movimento de recitais públicos. O evento reuniu praticamente todos os jovens poetas da época. Depois fiz nove recitais sozinho no viaduto e fui preso cinco vezes pelo Dops, como subversivo. Em 1966, os recitais foram proibidos definitivamente. Voltei a ser preso em 1969, por desenhar os cartazes do então clandestino Partido Socialista Brasileiro. A produção dos anos 60 teve, sim, um papel relevante na poesia brasileira. Pelo menos contrastou com essa inutilidade da chamada poesia concreta, que estava em moda na época. Todo imbecil era poeta concreto. Eu e Carlos Felipe Moisés organizamos uma antologia sobre a Geração 60, em 2000, comemorando os 40 anos dessa época. Muitos livros têm saído sobre os poetas daquela geração. Eu destaco o recente Anos 60, de Pedro Lyra, lançado em 2011.

Além de poeta, você é sociólogo e jornalista. Como foi conciliar essas profissões durante esse tempo?

Comecei no jornalismo aos 16 anos, como contínuo do extinto Correio Paulistano. Com 17 já estava escrevendo. Foi quando conheci vários poetas que escreviam para o jornal. Trabalhava e estudava. Primeiro ciências sociais, depois literatura e língua portuguesa e, bem mais tarde, fiz mestrado em comunicação social. Ocupei vários cargos nos jornais pelos quais passei. Mas sempre me dediquei à área cultural, especialmente em defesa do livro e autores brasileiros, trabalho reconhecido com dois Jabutis, em 1976 e 1983, e três prêmios especiais da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 1981, 1988 e 1989. Não era fácil conciliar tudo isso, porque tinha ainda a vida clandestina, a subversão e seus perigos o tempo todo. Não era fácil, mas era preciso.

Você sempre foi um poeta combativo, avesso às regras. Existe espaço atualmente para escritores como você, que ainda pensam em mudar a realidade?
Acredito que não existe espaço para poeta nenhum. Quer dizer, poeta mesmo, de verdade. Os medíocres, não. Esses estão sempre amparados por uma mídia cultural que não tem compromisso com nada. Sempre fui, sim, contestador, até porque vivia isso, na vida dupla. Seja como for, é preciso arrancar esse espaço de algum lugar. Peço licença para citar meu novo livro, O uso do punhal. Basta ler os poemas para sentir a grande decepção com tudo. Hoje, diante de meu espelho, olhando bem para mim, me pergunto: “Então, foi para isto?”. Com toda a sinceridade, sem jamais ser arrogante, considero-me um caso à parte. Mas sempre houve amigos poetas mais diletos com quem se podia conversar seriamente, sem pensar em manobras que sempre existiram e hoje existem de maneira vergonhosa. No Brasil existe manobra para tudo, até na área da poesia.

É por isso que há 15 anos você se dedica à poesia portuguesa? A poesia brasileira decepciona você?
A poesia brasileira atual é uma grande decepção. Será sempre necessário dizer que não generalizo. O Brasil tem excelentes poetas, mesmo entre os novos. Mas os rumos impostos pela mídia chamada “cultural” são lamentáveis. Essa mídia enaltece uma “poesia” sem consistência nenhuma, um amontoado de coisas inúteis que tem coragem de chamar de poesia. É de uma irresponsabilidade espantosa. Chega a ser inacreditável, mesmo num país medíocre e vagabundo como este em que estamos todos metidos, que se notabilizou mais profundamente nos últimos anos. Fugi para Portugal. E isso ocorreu depois que fui representar o Brasil no 3º Congresso Internacional de Poetas, na Universidade de Coimbra. Fui o poeta que mais se destacou no evento, dizendo poemas para dezenas de poetas de várias partes do mundo que não entendiam uma única palavra em português, mas que aplaudiram de pé por causa do ritmo do poema, da melodia do poema. Não estou fazendo discurso em causa própria. Isso está escrito no prefácio de Graça Capinha para o primeiro livro que publiquei em Portugal, 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra. Senti que minha vida estava lá, estava lá a minha poesia, a poesia por que eu tanto ansiava. Sou filho de portugueses. Toda a minha família é de Portugal. Sou o único brasileiro da família. Já são 13 livros publicados lá, 12 de poesia e uma novela, fora os eventos dos quais participo. Lá sou chamado de poeta luso-brasileiro. Foi a melhor coisa que fiz em minha vida em favor de minha poesia. Em favor da minha vida.

Você está seguindo para a Espanha, onde lançará Cartas de abril para Júlia. É também um livro recente?
Ele foi publicado pela primeira vez em Portugal, em duas edições, em 2001. Também saiu no Brasil, e agora será na Espanha, com tradução da poeta Montserrat Villar Gonzáles. É uma novela com a linguagem da literatura portuguesa, mas que, em muitos momentos, entra naquela paisagem literária dos tempos de Cervantes. Em 2007, fui convidado para participar do 10º Encontro de Poetas Ibero-americanos, em Salamanca, dedicado ao Brasil. Fui o poeta homenageado. Recebi a chave da cidade e tive publicada uma antologia de 370 páginas, com tradução do poeta Alfredo Perez Alencart, da Universidade de Salamanca. Ele também traduziu Alma afligida, de  2013, também publicado na Espanha, livro que saiu no mesmo ano em Portugal com o título Almaflita.

Afinal de contas, você se sente mais brasileiro ou português?
Diante do que vejo atualmente no Brasil, não apenas na poesia, mas em quase tudo, me considero um poeta português, o que, cá entre nós, não tem significado nenhum, importância absolutamente nenhuma. Sinto orgulho do que escreveu sobre mim o poeta Affonso Romano de Sant’Anna: “Álvaro Alves de Faria, pelo seu lirismo, talvez seja o mais português dos poetas brasileiros”.

Orelha

Orelha 
 
Estado de Minas: 15/02/2014


O escritor Antoine de Saint-Exupéry morreu antes da edição francesa de seu livro mais conhecido (Agir/Reprodução)
O escritor Antoine de Saint-Exupéry morreu antes da edição francesa de seu livro mais conhecido


Clássico aos 70

Um dos livros mais traduzidos do mundo, O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, ganha nova edição de luxo, em cores e com capa dura, comemorativa de sete décadas de lançamento. Com tradução do poeta Ferreira Gullar,  A bela história do pequeno príncipe, da Editora Agir, reúne vasto material inédito, como fotos, desenhos, esboços e aquarelas do autor, além de textos históricos, depoimentos e ensaios de interpretação da obra. Entre os textos que integram a nova edição estão o artigo “Nascido nos Estados Unidos – Pequena história editorial do Pequeno príncipe” – o livro saiu nos EUA em 1943 e só chegou à França em 1946, depois da morte do autor –, um capítulo inédito da obra e depoimentos de amigos do autor. O livro traz ainda um dossiê crítico, com ensaios de Delphine Lacroix (que analisa o simbolismo das personagens), de Virgil Tanase (sobre os temas do livro) e de Olivier Odaert (sobre o mito do pequeno príncipe). Fábula infantil, conto filosófico para adultos ou favorito das misses, O pequeno príncipe recebe merecido tratamento de clássico.


Rio e República

Com quase 1,5 mil páginas, a Editora FGV está lançando o Dicionário da política republicana do Rio de Janeiro. Composta de mais de 2 mil verbetes, oferece um panorama sobre a história política, econômica e cultural do estado e da cidade do Rio de Janeiro desde a Proclamação da República, em 1889, até os dias de hoje. O volume traz ainda fotos, charges e caricaturas.


Bergoglio nas telas

Lançado recentemente no Brasil pelas Edições Loyola, o livro A lista de Bergoglio, do jornalista italiano Nello Scavo, vai ganhar adaptação para o cinema, em filme que será dirigido por Liliana Cavani, com roteiro de Umberto Contarello. O livro-reportagem cobre o drama dos desaparecidos durante a ditadura argentina, por meio de relatos de dissidentes, sindicalistas, sacerdotes, estudantes e intelectuais. Scavo destaca a história de pessoas salvas pelo então sacerdote jesuíta Jorge Mario Bergoglio quando ele vivia em Buenos Aires.


Mais Cecília


Depois de muitos anos fora das livrarias, a obra de Cecília Meireles (1901-1964) vem sendo reeditada pela Global, que recentemente publicou edição comemorativa dos 60 anos de Romanceiro da Inconfidência. Dois novos títulos da escritora foram relançados esta semana, Doze noturnos da Holanda e O aeronauta, ambos de 1952. A apresentação é de Ivo Barroso.


Para o mundo

Bruna Vieira tinha 15 anos quando decidiu criar o blog www.depoisdosquinze.com. De lá para cá foram mais de 10 milhões de acesso e dois livros, que se tornaram best-sellers: Depois dos quinze (crônicas) e De volta aos quinze (romance). Agora, aos 20 anos, ela lança seu terceiro título, A menina que colecionava borboletas, pela Editora Gutenberg. Fenômeno no disputado campo da literatura adolescente, Bruna é mineira de Leopoldina e já estuda lançamento de seus livros no mercado internacional.


Geração Complemento

Lúcia Helena Monteiro Machado, a Duda, está lançando a segunda edição revista e aumentada de seu livro A filha da Paciência – Na época da Geração Complemento, que ganha novo capítulo e caderno de fotos. Homens e mulheres ligados ao cinema, à dança, ao teatro, à música e à literatura são personagens de um livro que recupera a memória de uma das gerações mais atuantes da cultura mineira.

Livros para ouvir

A trilogia Cinquenta tons de cinza, de E. L. James, foi o título de livro falado mais solicitado à Biblioteca Circulante da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Em levantamento feito pela instituição com leitores com deficiência visual, foram identificados os livros em áudio mais pedidos durante 2013. Os títulos que se seguem na lista são Um amor para recordar, Nicholas Sparks; Ágape, do padre Marcelo Rossi; A cabana, de William P. Young; Anjos e demônios, de Dan Brown; Nunca desista de seus sonhos, de Augusto Cury; A fantástica fábrica de chocolate, de Roald Dahl; …E eu venci assim mesmo, de Dorina de Gouvea Nowill; Ninguém é de ninguém, de Zibia de Gasparetto; e Refúgio, de Harlan Coben. Para utilizar o serviço de empréstimos da biblioteca é preciso preencher ficha de cadastro. O envio e devolução dos livros em áudio são feitos gratuitamente. Informações: (11) 5087-0991 e 5087-0990.

É duro ser criança - Ângela Faria

É duro ser criança 
 
O poeta Fabrício Carpinejar lança suas memórias da infância em dois volumes de crônicas. Série autobiográfica ganhará mais quatro livros 

Ângela Faria
Estado de Minas: 15/02/2014


O performático Carpinejar brilha no texto e no contato direto com o público, com seu senso de humor singular (Camila Rodrigues/Divulgação)
O performático Carpinejar brilha no texto e no contato direto com o público, com seu senso de humor singular

‘‘Viver exigia legendar o mundo”, escreve o mineiro Bartolomeu Campos de Queirós em sua obra-prima, o romance Vermelho amargo, narrado por um garoto às voltas com os mistérios da infância. “Nascer é muito comprido”, decreta Murilo Mendes no poema “Reflexão nº 1”. Agora, Fabrício Carpinejar, de 41 anos, reinventa seus dias de menino para nos ajudar a saltar o abismo do tempo.

Em dois pequenos livros de crônicas – Não atravesso a rua sozinho e Te pego na saída –, o gaúcho revisita sua meninice no interior do Rio Grande do Sul. Tempos saudáveis, aqueles: nada de grades e portões eletrônicos, bastava bater palmas para alguém abrir a porta de casa. Diversão não era sinônimo de shopping center e muito menos de rolezinho. A rua era o mundo – de todos.

Carpinejar diz que sua biografia é rascunho para um romance. Será? De crônica em crônica (são 50, em 197 páginas), temos a impressão de já ler o romance protagonizado pelo gauchinho alto-astral que se sentia “um menino iraniano no Brasil” – de tão diferente dos outros. Feinho, o pequeno herói acreditava ter sido trocado no hospital. Não adiantou a mãe exibir a foto do avô, um o focinho do outro. “Coitado, ele também foi trocado”, conclui.

Também pudera! Depois de operar as adenoides, Fabrício teve de chupar bico até os 10 anos. Era assim o tratamento da fonoaudióloga para expandir o céu da boca do pequeno paciente, obrigado a conviver com o desvio de septo e muitos exames. Brindado com implacáveis apelidos pela gurizada, nosso protagonista fez do bom humor um cúmplice – sem dramas, ao que parece. “Não me sentia humilhado. Me antecipava às piadas sobre minha feiura e elas ficavam velhas na boca dos outros”, confessa.

O personagem de Não atravesso a rua sozinho lembra um pequeno mineiro: o alto-astral Odnanref de O menino no espelho (1982), romance de Fernando Sabino. O gaúcho e o belo-horizontino souberam legendar o mundo, como disse Bartolomeu Queirós. Crianças atentas ao imenso universo à sua volta, vasculharam infinitezas que cabem dentro do quintal, de uma sala de aula ou do lar, doce lar. “Eu apenas me interessava por fatos que ninguém conseguia explicar. A desistência da explicação é o início do poema”, resume Carpinejar. Simples assim.

Se Fernando – digo, Odnanref – voou pelos céus de Belo Horizonte, salvou uma galinha e fez dela sua fiel “Sancho Pança” –, nosso pequeno “iraniano” também tem suas histórias com poedeiras. Pois não é que mandaram a penosa de estimação do avô para a mesa no almoço de Domingo de Ramos? “Marlene, Marlene, perdoa, eles não sabem o que fazem!”, bradou o nonno. Ecologista, a dupla. Quando o patriarca decidiu fotografar seus bichos queridos – vaca, cavalo e a outra penosa, a Lurdes –, coube ao neto segurar os modelos, além de maquiar Lurdes. Na parede da sala, a Arca de Noé: em 22 pequenos três por quatro. Com um nonno assim, para que amigos imaginários?

Picolé No mundo fabriciano, eletrodoméstico é quase ser humano. Aberta, a geladeira funcionava como luminária e ar-condicionado para o voraz leitorzinho noturno. Certa vez, o menino esqueceu livros lá dentro. Eram de Gonçalves Dias – as obras completas, coitadas, encolheram, vítima de hipotermia. Veterana nas lides domésticas, a máquina de lavar da mãe, comprada em 1974, não parece: é quase uma tia solteirona: “Com seu uniforme de enfermeira, os cabelos grisalhos, a cintura de bisavó e o perfume azul de sabão em pó”. Homem feito, Carpinejar confessa: leva a trouxa de roupa suja para a casa da mãe quando bate a neura de abandonar a literatura. E fica ali, observando a velha senhora tossir, resmungar, roncar e suportar estoicamente as empregadas, quase assassinas, girarem seu botão no sentido anti-horário.

Ser criança nunca foi fácil – que o digam Bartolomeu Queirós, Murilo Mendes, Fernando Sabino, Fabrício Carpinejar e os meninos de hoje, às voltas com o bulliyng. Há algo comum entre eles: todo mundo quer ser invisível quando pequeno, arranja briga na escola e teme atravessar a rua sozinho.

Como tantas crianças no século 21 (entupidas de ritalina, a droga das salas de aula), Fabrício Carpinejar não se dava bem com as letras. O ditado o aterrorizava. Ele ouviu a professora avisar: “O menino não tem conserto. Não vai se alfabetizar”. A mãe reagiu, “braba de esperança”: arrumou um quebra-cabeças com sílabas, subiu ao telhado – refúgio de seu menino – e, pacientemente, inventou palavras com ele. Foi assim que o futuro escritor se apaixonou pelo ofício. E ele ainda garante: “Escrevia mais no tempo em que era analfabeto...”.


COLEÇÃO VIDA EM PEDAÇOS
De Fabrício Carpinejar
Ilustrações: Eloar Guazzelli

. NÃO ATRAVESSO A RUA SOZINHO
Editora Edelbra,
112 páginas, R$ 25

. TE PEGO NA SAÍDA
Editora Edelbra,
96 páginas, R$ 25


. Estão previstos mais quatro volumes da autobiografia do escritor, em que ele abordará o relacionamento com os filhos, Mariana, de 20 anos, e Vicente, de 11.

Moralidade libertina

Moralidade libertina 

Filme do cineasta dinamarquês Lars von Trier, Ninfomaníaca mergulha no tema do amor e do prazer com referências que o aproximam da investigação de Sigmund Freud sobre a sexualidade feminina
Izabel Haddad Marques Massara e Guilherme Massara Rocha

Estado de Minas: 15/02/2014


Ninfomaníaca, de Lars von Trier, foi dividido em capítulos: ainda há muita surpresa e exasperação à espera do espectador na sequência que não tem data para estrear     (Christian Geisnaes/Divulgação)
Ninfomaníaca, de Lars von Trier, foi dividido em capítulos: ainda há muita surpresa e exasperação à espera do espectador na sequência que não tem data para estrear


Forget about love. Eis a expressão com que o cineasta dinamarquês Lars von Trier apresenta ao público seu novo filme, Ninfomaníaca. A personagem principal, Joe, vivida por Charlote Gainsbourg, é uma mulher atormentada por uma compulsão sexual e pela culpa aterradora de ser como ela diz “um ser humano ruim”. O filme tem como primeira cena um beco gélido e escuro, em que se avista o corpo da moça machucada e desacordada no chão. Depois de ser resgatada desse lugar inóspito por um senhor que havia saído à rua para fazer suas compras na mercearia da esquina, Joe aparece já na casa de Seligman, seu benfeitor, deitada numa cama, com uma xícara de chá com leite nas mãos. É nesse cenário que ela permanece todo o filme, relatando ao velho seus sintomas ninfomaníacos e os encontros sexuais com toda espécie de homens.

No pôster de propaganda do filme, Von Trier lança mão de um símbolo, dois parênteses em oposição, para fazer uma analogia à arquitetura do órgão sexual feminino. Não por acaso, a fim de abordar a vida sexual de uma mulher, ele inventa para as primeiras palavras da protagonista a seguinte expressão: “Aos dois anos descobri minha boceta”. A sexualidade feminina é abordada de uma forma desconcertante pela tela da fantasia de Joe. Durante seus relatos, que parecem às vezes fantasiosos, recolhemos os signos de um flerte com as descobertas de um outro senhor que também alarmou seus contemporâneos com suas investigações sobre a sexualidade, Sigmund Freud. Muitas das alegorias que entremeiam o relato de Joe e as respostas de Seligman a seus prazeres e sofrimentos contumazes remetem a uma relação direta e indisfarçável com a psicanálise, mais especificamente a fragmentos de um caso atendido pelo dr. Freud e por ele publicado em 1905.

“Ninfas visíveis ao fundo de um bosque denso.” É com essa alegoria que Dora, uma jovem vienense do século 19, descreveu, em sua análise pessoal, um de seus sonhos ao pai da psicanálise. A moça relata seus devaneios noturnos ao psicanalista, dizendo que se via entrando em uma floresta densa e escura, na qual avistava ninfas ao longe. O cenário pitoresco não deixou dúvidas a Freud: “Ali estava uma geografia simbólica do sexo!”. Além disso, as palavras ninfas e ninfeácea, que em alemão se traduzem ambas por nymphen, são usadas como termos médicos para descrever uma das estruturas da vulva feminina, os pequenos lábios. O uso desses termos pela paciente levou o psicanalista a suspeitar de que Dora os havia pesquisado nos livros de anatomia do pai, médico. Ela também havia descoberto o órgão sexual feminino em tenra idade, brincando. Trier roteiriza tais cenas, que reaparecem porventura em versões quase literais, com sua lancinante aptidão para capturar os traços, vastíssimos, das afecções sensíveis humanas. Traços que, liminarmente, convergem para os pormenores perversos e polimorfos da sexualidade humana, o enigma que nesse filme parece reunir, em torno de si, artista e psicanalista.

Ainda no sonho, o momento em que Dora adentra a floresta deflagra o ponto de maior angústia da narrativa. Ela hesita em prosseguir e parece imobilizada por um sentimento qualquer. Segundo Lacan, psicanalista que releu a obra de Freud, podemos reconhecer nisso o real de um ponto cego da sexualidade feminina, a busca por uma “feminilidade corporal”. Dora havia chegado até Freud atormentada por um cenário florido de sintomas histéricos e, entre suas inquietações, o psicanalista reconhecia a dificuldade de lidar com o próprio desejo sexual por um homem. Frau Dora, assim como Joe, a musa do filme de Trier, vive às voltas não só com questões sobre o amor, mas com curiosidades sobre o funcionamento sexual do próprio corpo.

Seria pura coincidência que a protagonista relate passagens sobre suas aventuras eróticas a Seligman? Esse personagem aparece em todo o filme no cenário de um quarto escuro, na companhia de Joe, que permanece deitada contando sua vida como se estivesse numa sessão de psicanálise. Ao escutá-la por horas a fio, ele interpõe à sua interlocutora cenários que parecem visar subverter algumas de suas impressões e convicções. Lança mão de vários elementos intertextuais, como a matemática, a música e a arte da pesca, para dar ordem ao caos que encontra na vida dessa mulher, atormentada por uma culpa aterradora. É interessante notar que embora a moça relate os mais lascivos episódios de ninfomania – momentos em que insiste na ideia de que é um ser humano ruim –, subitamente ela se transfigura numa donzela do século 19, num instante sedutoramente indiferente e blasé, e noutras assolada pelo mesmo complexo de culpa que conduzia ao divã as ditas histéricas de Freud.

Trier põe em questão a crença secular na debilidade moral do libertino. Joe é uma personagem que, desde a aurora da narrativa, insiste em torturar-se diante da constatação de uma conduta erótica errática, instrumentalizada e inimiga de quaisquer vestígios de sentimentalidade. Na juventude, torna-se signatária de uma sociedade feminina secreta que cultuava a exploração ilimitada da sensualidade erótica, todavia marcada por um ideal explícito de que tais atos fizessem signo da deploração do amor. “Mea vulva, mea maxima vulva”, eis o lema em que se pode ler, nas sombras da forma semântica de onde provém, o substrato de uma moralidade tirânica que resulta no paradoxo de uma compulsão ao gozo. Numa manobra de mestre, Von Trier nos apresenta a ninfomania como o equivalente empírico de um autoflagelo imaginário, que provém de um sinistro algoz interior.

Despida de sua aura mística de liberdade rara e contumaz dos interditos e pudores sobre os quais são fundados os vínculos sociais, a ninfomania é estabelecida como fenômeno subordinado a um ordenamento rígido e sistemático. Um golpe de dados que vislumbra produzir, para em seguida aboli-lo, o acaso. Errância e circularidade, como as entediantes caminhadas que Joe impõe a si própria, no interior do denso bosque de seu inconsciente. Vitimada de uma culpabilidade liminar pela renúncia ao desejo – ou quiçá diante da impossibilidade de acessá-lo – resta ao sujeito sucumbir às exortações ao gozo ilimitado, sob a regência de um supereu cruel. Somente o amor, lembrara Lacan, permite ao gozo condescender ao desejo. Quando, do interior mesmo de sua sociedade secreta, é sugerido a Joe que “o amor é o segredo do sexo”, eis onde algo se torna ilegível, criptografado, quiçá irremediavelmente.

Sexo e afeto


Assim como Dora, Joe estava também às voltas com inquietações a respeito do corpo feminino, principalmente sobre seu órgão sexual. Há no filme inegavelmente duas questões eletivas. A inquietação de uma mulher sobre como lidar com seu corpo que demanda a todo tempo um prazer absoluto e compulsivo, e a dificuldade atroz de lidar com o amor por um homem. Joe passa pela infância e a adolescência à procura de brincadeiras nas quais seu corpo comparece como objeto manipulado e excitado. Sua errância amorosa é entrecortada no filme por cenas onde ela se lembra da relação com o pai, um homem sedutor, que aparece lhe ensinando sobre o corpo das árvores num bosque denso de uma floresta. O testemunho da vida que surge nos brotos negros da árvore favorita do pai durante o inverno, o freixo, deixa entrever a maneira como Joe passa a lidar com esse desabrochar da sexualidade feminina. A pergunta que ela não cessa de dirigir ao pai seria, explícita ou silenciosamente, como pode ressurgir a vida de um corpo que parece mortificado. Do corpo das árvores – que deixam despidas suas almas no inverno – ao corpo de mulher, vai Joe se debatendo como pode entre a fidelidade ao pai e a relação difícil com uma mãe insensível e distante.

Ao longo de seu relato trágico, recorda que se socorria de muitos homens que, reunidos, produziam uma polifonia de vozes. Entretanto, somadas todas essas vozes que ela recolhe ao acaso em cada um de seus encontros resultava a imagem de um só amante, o pai. Em um determinado momento da trama, Joe conta que passou a classificar os homens em três tipos. O que lhe ofertava um prazer masturbatório, o que a subjugava como se fosse uma presa indefesa, e um terceiro espécime, que a amava. No momento do encontro com o objeto de amor, o caos em que vivia começa a esboçar contornos de uma superficial organização. A ordem provinha da constatação de uma repetição ditada pelas reminiscências dos traços físicos do pai que se misturam àqueles encontrados no derradeiro amante, Jerome. Em Jerome não há apenas inscrito seu próprio nome, Joe, mas todas as demais qualidades que ela venerava em um homem. Ao se consagrar a seus encontros fortuitos, eis que ela inadvertidamente tropeça nas dobras do amor. Tais signos, o diretor dinamarquês os recolhe em negativo, no encadeamento de imagens e sons que presentificam sua aura. Identificada ao pai, a jovem se defende recusando, do amor, seu efeito feminizante. Desdenha de gestos, sobretudo de seus amantes, em que a violência e a virilidade se dissolvem na delicadeza, no desamparo, no exílio leve e inútil do ato de comer um croissant usando um garfo.

Sabidamente em sua filmografia, as mulheres de Von Trier consubstanciam uma ficção do ilimitado, num espectro que atravessa, rumo à devastação, farta palheta de prazeres soberanos e amorais. Mas subitamente Joe se depara com uma frigidez sintomática. No decorrer de seu encontro amoroso com Jerome produz-se uma insensibilidade para o gozo sexual. Sintoma para o qual o reencontro traumático com os signos da presença paterna talvez não sejam indiferentes. A frase que a amiga de Joe sussurra em seus ouvidos na adolescência tem um efeito às avessas, pois para essa ninfomaníaca “o amor não era o melhor ingrediente do sexo”, mas sim seu maior impasse. A ideia de Freud sobre uma divisão na esfera do amor poderia explicar essa espécie de sintoma sexual. O amor e a fruição sexual são, nalguns seres humanos, mutuamente excludentes num mesmo objeto. Assim se passa com Joe, que separa com precisão, ao modo de uma posição masculina, os homens com quem se deita daquele que só pode amar.

A ninfomania advém sob as lentes de Von Trier na qualidade de uma redução do múltiplo à unidade, emoldurada pelo quadro mais banal e monótono de um certo caroço irredutível da fantasia erótica. Freud adivinhara a forma da perversão masculina na paixão pelo traço, pela adequação a uma certa imagem inerte a que se vê amalgamado, na fornalha da fantasia, o diverso das identidades dos objetos sexuais. Paixão de gozar de um fragmento eletivo do corpo, extraído da diversidade material e anímica em que se suporta. No campo do feminino, ao contrário, nos revela Von Trier, o corpo é o que se suporta do reencontro com um semblante redivivo – esse Eros da gramática freudiana – e que vibra como a sombra de um modo de repartir os cabelos, de um trejeito do olhar, de mãos que profanam a carne menos com sua força que com sua assinatura.

Nessa que é ainda a primeira parte do filme, Jerome, a quem Joe pede que “preencha todos os seus buracos”, produz um ponto de basta na errância do gozo ninfomaníaco. Talvez seja possível arriscar o palpite de que embora o lema “forget about love” anuncie o que se narra em Ninfomaníaca, eis que se pode encontrar nos confins de um trajeto errático e aparentemente irreconciliador um certo élan romântico. No sentido vienense da palavra. Mas em se tratando inapelavelmente de um dos mais surpreendentes diretores contemporâneos, aguardemos o porvir – e certamente as surpresas e reviravoltas – da sequência prometida do filme.

. Izabel Haddad Marques Massara é psicanalista e doutoranda em psicologia. Guilherme Massara Rocha é psicanalista e professor da UFMG. 

Destinos cruzados [ Gonçalo M. Tavares ]

Destinos cruzados 
 
O escritor português Gonçalo M. Tavares lança o romance Matteo perdeu o emprego, que mostra o desencanto de personagens de um tempo marcado pela ausência de horizontes 

 
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 15/02/2014


Em seu novo livro, Gonçalo M. Tavares monta um jogo em que os personagens passam para a frente cacos de um futuro sem esperança (Leandro Couri/EM/D.A Press)
Em seu novo livro, Gonçalo M. Tavares monta um jogo em que os personagens passam para a frente cacos de um futuro sem esperança

Uma das mais celebradas vozes da literatura contemporânea, traduzido para mais de 30 línguas e vencedor de prêmios importantes como o Portugal Telecom e o José Saramago, o escritor Gonçalo M. Tavares está lançando o intrigante Mateeo perdeu o emprego. A exemplo de romances anteriores, a trama desenvolvida é um convite à reflexão, um nó bem dado na cabeça do leitor, que tem de prestar atenção para não se perder nas fantásticas histórias vividas pelos personagens. Trata-se, na realidade, de um instigante e bem urdido quebra-cabeças, que foi montado pelo gênio criador de Tavares. Na primeira parte de Matteo perdeu o emprego, são oferecidas ao leitor 25 histórias curtas, com uma se ligando à outra, e com cada personagem passando ao seguinte uma espécie de testemunho dos seus feitos, que quase sempre beiram o fantástico.

Um pequeno elo, aparentemente simples, mas apenas aparente, liga um fato ao outro, num encadeamento perfeito cujo sentido só se revela ao fim. Os personagens têm nomes judaicos, Aaronson, Cohen, Gottlieb, Greenberg, retirados de um ensaio fotográfico feito por Daniel Blaufuks. Já a segunda parte é na realidade um posfácio em forma de pequenos ensaios, também escrito por Gonçalo Tavares, que volta aos temas iniciais, em forma circular, cuidadosamente ordenado.

 Nascido em Luanda, em Angola, em 1970, Gonçalo M. Tavares, em depoimento ao Estado de Minas, diz que suas histórias podem vir de notas feitas em viagens ou de imagens que ficaram em sua cabeça. No caso de Matteo perdeu o emprego, não foi diferente: “A ideia surgiu a partir da imagem de alguém que está tão desesperado por estar desempregado, que aceita fazer um trabalho que implica certa humilhação, além de uma certa perversidade sexual”, revela o romancista. Leia a seguir os principais momentos da conversa com o romancista.


Arte e vida


“A literatura, a meu ver, é muito diferente do mundo real. Não me atrai uma reprodução exata da realidade através da literatura. Não é estimulante ler um diálogo que seja semelhante a um diálogo travado em um café por duas pessoas. A literatura deve nos dar alguma coisa sobre a realidade, mas não deve ser uma cópia da mesma, pois sempre será uma cópia pior. De qualquer maneira, a realidade, para mim, funciona como um ponto de partida. Dessa forma, estar num café, observar o que se passa por lá, conversar e depois transformar tudo isso em literatura, é uma coisa estimulante. A literatura serve ainda para muitas outras coisas, como contribuir para aumentar a lucidez no mundo. Na minha visão, sem ela, a lucidez do mundo seria menor. Não me agrada a literatura somente como um passatempo. Ler deve ser sempre um prazer, mas não deve ser um prazer superficial, mas de profundidade, que ajude as pessoas a refletir de forma mais lúcida, a melhorar a si próprias e também ao mundo que as rodeia.”


Ofício


“O escritor deve ter os pés no momento presente, um olho no passado e o outro em uma espécie de desejo, para poder fazer alguma coisa distinta. Tento sempre marcar uma certa distância em relação aos acontecimentos. Tenho uma tendência em não me deixar perturbar pelo que está acontecendo à minha volta, sobretudo as coisas negativas. Não é fácil, mas tento me proteger das coisas ruins. Para se conseguir escrever, é preciso uma espécie de paragem e movimento. Desta forma, ver o que se passa no mundo, estar atento às coisas que nos rodeiam, para depois transformá-las em palavras, é importante. Por outro lado, para conseguir criar alguma coisa que valha a pena, é preciso ter disciplina, levantar cedo, começar a trabalhar logo, seguir um método. Tento ficar sempre duas, três horas por dia isolado de tudo, só para me dedicar à literatura. Tenho uma casa onde não existe internet, televisão, telefone, quase nada que se refira ao mundo moderno, pois a imaginação não pode se desenvolver se estivermos ao mesmo tempo ligados a essas coisas todas. Quando estou nessa casa, é como se estivesse em algum lugar do século 18, com total tranquilidade para desenvolver minha literatura, poder imaginar as minhas histórias.”


As viagens

“A pessoa pode viajar com os pés e estar em muitos diferentes lugares, como costuma acontecer comigo. Mas também pode viajar com a imaginação, como também faço. Algumas das viagens que realizo mundo afora têm me marcado muito. Estive há algum tempo, por exemplo, na Cidade do México e fiquei fascinado com aquela mistura toda entre o arcaico e o moderno. Lembro-me que entrei em uma sorveteria e naquele pequeno espaço – além dos sorvetes e picolés – existia um oratório, uma espécie de pequena capela, cheia de imagens e velas acesas, onde duas velhas rezavam. Era uma espécie de mistura entre o tempo, as várias épocas: a sensação de estarmos no século 21, tomando sorvete, e ao mesmo tempo, no século 10, vendo aquela cena das duas senhoras orando. Tudo isso é muito marcante na Cidade do México, que é um lugar muito especial. Outra coisa que as viagens nos ensinam é que as condições, os locais onde as pessoas crescem, ajudam muito a definir o comportamento das mesmas, suas personalidades. O ser humano, na essência, é o mesmo em todas as partes, com seus medos e desejos, mas diferente em relação às circunstâncias e aos lugares onde foi criado e vive.”


O Brasil

“A minha relação com o Brasil tem a ver de imediato com a língua. O fato de falarmos o português faz com que o Brasil, para mim, seja um espaço familiar, pois a língua é uma espécie de canção maternal, que nos protege. Portanto, quando estou no Brasil é como se estivesse em Portugal, na minha própria casa. Quando estou em um lugar onde a língua me é estranha, como em algum país do Oriente, por exemplo, a sensação de salvação é, muitas vezes, ouvir alguém falar alguma coisa em português. Algo que nos seja familiar. Dá uma sensação de alívio, funciona como uma âncora, de salvação material. Portanto, a minha relação com o Brasil tem tudo a ver com isso. Em abril ou maio estarei aí novamente.”


Matteo, o romance

“É difícil dizer como surgem as minhas histórias. Às vezes elas costumam nascer de uma mistura entre a imaginação e a realidade. Cada livro que escrevo é muito diferente um do outro, e ainda bem. Às vezes a história surge a partir de algumas notas que faço, muitas delas em viagens. Outras vezes a partir de imagens, das coisas que observo e penso. Matteo perdeu o emprego, por exemplo, surgiu da imagem de alguém que está tão desesperado por estar desempregado há tanto tempo, que aceita fazer um trabalho que, se por um lado implica alguma humilhação, por outro implica também uma certa perversidade sexual. O trabalho de Matteo, no livro, é conduzir, abrir as portas, levar o guarda-chuvas de uma mulher que não tem os braços. De certa forma, ele se oferece para ser os braços dessa mulher. Depois, a história cresce para uma lógica mais perversa. Mas o ponto de partida foi essa imagem.”

TeVê

TV paga


(Paramount/Divulgação )

Sessão pipoca pode
ser doce ou salgada

Comédia ou ação. Agora os gêneros são bem distintos, facilitando a escolha do assinante. A primeira novidade do pacotão de cinema de hoje é Amostras grátis, com Jess Weixler e Jesse Eisenberg, sobre uma garota que tenta descobrir o que quer fazer da vida. A alternativa é G.I. Joe: retaliação (foto), com Bruce Willis, Dwayne Johnson, Channing Tatum e outros mais. Os filmes serão exibidos respectivamente por HBO e Telecine Premium, ambos às 22h.

Outros temperos no
pacotão de cinema

O Telecine Touch continua com a seleção de filmes premiados ou indicados ao Oscar, hoje com Forrest Gump – O contador de histórias (15h) e Histórias cruzadas (17h30). No Megapix, a sessão especial reúne só personagens verdes: Shrek terceiro (18h20), Planeta 51 (20h10), O incrível Hulk (22h) e Abismo do medo 2 (0h10). Na faixa das 22h, mais oito opções: Separações, no Sony Spin; Até que a sorte nos separe, no Telecine Fun; Amor, no Telecine Cult; E se fosse verdade, no Universal; Sequestro no espaço, na HBO 2; Constantine, na Warner; Meu lindo país, no Max; e Guerra ao terror, na MGM. Outras atrações da programação: Em carne viva, às 21h, no AXN; Max Payne, às 22h30, no FX; e Onde andará Dulce Veiga?, às 23h, na Cultura.

Hannibal Lecter volta
a atacar no canal AXN

Preparando os assinantes para a segunda temporada de Hannibal, o canal AXN põe no ar uma programação especial hoje e nos dois sábados seguintes, com a reprise de todo o primeiro ano da série do psicopata Hannibal Lecter, personagem do filme Silêncio dos inocentes e de suas sequências. Serão quatro episódios em sequência a cada dia, a partir das 17h. A nova temporada estreia dia 10, às 23h.

Viva resgata o humor
de casal nada normal

Maratona também no canal Viva, com seis episódios da série Os normais, a partir das 18h30. Bacana é poder rever não apenas a parceria de Fernanda Torres e Luis Fernando Guimarães, mas as participações de Malu Mader, Selton Mello, Lúcio Mauro, Regina Dourado, Elaine Mickely, Christiane Torloni, Marcelo Várzea, Rodrigo Santoro, Paloma Duarte, Daniel Dantas e Ingrid Guimarães.

+Globosat exibe série
em defesa da natureza

O canal +Globosat estreia hoje, às 20h15, a série Florestabilidade, programa educativo apresentado por Sérgio Marone, que estimula ações sustentáveis em áreas florestais e mostra experiências em comunidades da Amazônia que preservam o meio ambiente para as gerações futuras. No Animal Planet, às 23h, estreia Os adoráveis bichos-preguiça, gravado em um santuário ecológico na Costa Rica.

Orquestra brasileira
toca reggae jamaicano

O grupo Ao Cubo é o convidado especial de hoje do programa Manos e minas, comandado por Max B.O. a partir das 17h, na Cultura. Mais tarde, às 18h, no Cultura livre, Roberta Martinelli recebe a Orquestra Brasileira de Música Jamaicana. Às 21h30, na série Clássicos, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo toca o Requiem, de Mozart, sob a regência de Nathalie Stutzmann. No canal Viva, também às 21h30, tem Diogo Nogueira na roda de samba do Viva o sucesso.


CARAS & BOCAS » Tá dominado!

Simone Castro


Galera do funk ostentação participa de quadro, canta e agita o Programa Raul Gil, no SBT/Alterosa (Rodrigo Belentani/SBT)
Galera do funk ostentação participa de quadro, canta e agita o Programa Raul Gil, no SBT/Alterosa

MC Léo da Baixada, Pikeno e Menor, MC Taz, MC Guimê, MC Lon e MC Gui, nomes representativos do funk ostentação, invadem o Programa Raul Gil, hoje, a partir das 14h15, no SBT/Alterosa. A galera participa do quadro “Jogo do banquinho” e agita a plateia com seus sucessos. No “Jovens dançarinos kids”, confira as apresentações de Dance Team, Ballet Ana Rennó e Hip Hop XStyle, que serão avaliados pelos jurados Ary Toledo, Caio Mesquita, Amanda Neves, Jamily e Regis Tadeu. Já no “Jovens talentos”, meninos e meninas entre 15 e 20 anos podem mostrar a que vieram. Neste sábado, participam Augusto César e Gustavo, Bianca Malfatti, Davi Lukato, Carol Cabrino, Elias Lima, Kathia Teodoro, Paolla, Alan Xavier, Natan e Karen Mattos. Mais: o quadro “Jovens talentos kids” com apresentações de Lara Castro, Alexandre Nunes, Lucas e Vítor, CBright, Silas Magalhães e Yasmin Yamashita.

TÉCNICO FELIPÃO ESTÁ NA
MIRA DE RAFINHA BASTOS

O humorista e apresentador Rafinha Bastos encasquetou que quer Luiz Felipe Scolari, o Felipão, técnico da Seleção Brasileira, em sua estreia no comando do Agora é tarde, da Band. Rafinha substitui Danilo Gentilli, que se mudou para o SBT/Alterosa, onde vai apresentar, no mesmo horário, o talk show The noite.

GLOBO HORIZONTE VOLTA
COM CANTORAS MINEIRAS

No ar, amanhã bem cedinho, o primeiro programa inédito do ano do Globo horizonte. A atração reúne as cantoras e compositoras Brisa Marques, Marina Machado, Lívia Itaborahy e Irene Bertachini para falar do Elas de Minas, um projeto que tem o objetivo de mostrar a nova música mineira e feminina para o mundo.

PNEUMONIA AFASTA LAILA
ZAID DA NOVELA DAS SETE

Laila Zaid, a Priscila de Além do horizonte (Globo), está afastada da novela. A atriz está com pneumonia e se encontra de licença médica. Como ficará afastada cerca de 20 dias das gravações, sua personagem na história, que é prima de Lili (Juliana Paiva) e namora o ex-noivo da moça, Marcelo (Igor Angelkorte), fará uma viagem repentina para encontrar a família nos Estados Unidos.

A DIFERENÇA DE IDADES
AFETA CARACTERIZAÇÕES

Em família (Globo) ainda gera polêmica por causa da escalação do elenco envolvendo diferença de idade entre os personagens e seus atores. É gritante, por exemplo, que Natália do Vale, aos 60 anos, no papel de Chica, seja mãe da Helena de Júlia Lemmertz, de 50. Vanessa Gerbelli, de 40, é tia de Helena. Já Ana Beatriz Nogueira, de 46 anos, que interpreta Selma, é mãe de Laerte, personagem de Gabriel Braga Nunes, de 41. Convenhamos, é difícil de engolir tais discrepâncias. Se ainda fosse no teatro, em que os personagens como que “escapam” a cada encenação, vá lá. Mas na TV, em que eles entram na casa das pessoas todos os dias, fica difícil para o telespectador encontrar identidade e verdade nas caracterizações e, por consequência, até na própria história.

(Sexy Hot/Divulgação)


COMIDA AFRODISÍACA

Estreia no programa Penetra, neste sábado, às 20h, no canal Sexy Hot (TV paga), o quadro “Guia do sexo”, num bate-papo com a escritora Lasciva. A apresentadora Bianca Jahara ainda sobe o Morro do Vidigal para provar a comida afrodisíaca oferecida pela anfitriã, do restaurante light da Tia Léa. Sucesso na região, já teve como clientes o rapper Snoop Dog e até mesmo um príncipe da Arábia Saudita.

VIVA
Vanessa Gerbelli já botou para fora o enorme talento em cena emocionante de Juliana no capítulo de anteontem de Em família.


VAIA
O seriado Doce de mãe, com Fernanda Montenegro, bastante prejudicado pelo horário em que vai ao ar por causa do chato BBB 14.

Praia do Futuro, de Karin Aïnouz, não conquistou unanimidade, mas está no páreo‏

Ainda sem favoritos
 
Críticas à curadoria e experimentações em 3D marcam a reta final da 64ª Berlinale. Praia do Futuro, de Karin Aïnouz, não conquistou unanimidade, mas está no páreo 


Pablo Gonçalo
Especial para o EM
Estado de Minas: 15/02/2014


In order of disappearance, do diretor norueguês Hans Petter Moland: jornada em busca do pai (Fotos: Berlinale/Divulgação)
In order of disappearance, do diretor norueguês Hans Petter Moland: jornada em busca do pai



Berlim – Últimos dias de festivais de cinema costumam despertar apostas, boatos e burburinhos. Não está diferente nesta 64ª Berlinale. Na mídia alemã e internacional, o principal rumor é a saída de Dieter Kosslick, diretor-geral e responsável pela curadoria do festival até 2016. O motivo seria um questionamento da qualidade da seleção da mostra competitiva, que viria apresentando filmes irregulares, sem linha curatorial clara quando contrastada com outros festivais europeus. De fato, a competição está eclética englobando thrillers, dramas com crianças, melodramas, reconstruções de época, e, nesse cenário, os consensos não são tão frequentes.

No rol das apostas ainda é The Grand Budapest Hotel, de Wes Anderson, que, até agora, gerou mais entusiasmo, junto com 71, de Yann Demange, produção britânica que conta a história de um soldado inglês ingênuo durante os conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda de 1971. In order of disappearance, do norueguês Hans Petter Moland, também vem obtendo destaque ao narrar a busca de um pai para descobrir o motivo real da morte do filho. Ontem foi a premiére internacional de Boyhood, de Richard Linklater. O filme é uma crônica da vida de Mason (Ellar Coltrane), mostrando sua infância e adolescência. Filmado entre 2004 e 2013, Linklater consegue manter uma sutil coerência observando uma década ficcional na vida de uma família no Texas. O filme foi muito bem recebido. No campo das atuações, um dos poucos comentários recorrentes é a delicada interpretação de Jennifer Connelly em Aloft, primeira produção internacional da peruana Claudia Llosa, além da empolgação com os trejeitos cômicos de Ralph Fiennes, no papel de M. Gustave, na comédia de Wes Anderson.

Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, obteve recepções contraditórias e esquivas a qualquer unanimidade, seja apaixonada ou depreciativa. Revistas internacionais como Variety e The Hollywood Reporter salientaram a elegância da narrativa visual do cineasta brasileiro, mas criticaram os diálogos fracos e inconsistentes. Na seção Berlinale Special, Karim Aïnouz também lançou um curta em 3D, que faz parte da produção Cathedrals of culture, coordenada por Wim Wenders. A Filarmônica de Berlim, a Biblioteca Nacional da Rússia, uma prisão-modelo e uma casa de ópera na Noruega, o Salk Institute de San Diego e o Beaubourg de Paris compõem os seis filmes e documentários. É entre essas famosas construções arquitetônicas que Wenders busca, por meio do 3D, revelar a “alma” dos espaços ali criados.

Os roteiros ressaltam um ponto de vista pessoal e íntimo dos lugares construídos e frequentados. Pela perspectiva tridimensional instala-se um jogo de imersão mais contemplativo, característica rara à maioria das obras 3D. Ao filmar o Beaubourg, Aïnouz joga com os aspectos tridimensionais dos néons verdes e vermelhos do museu francês, mostra a montagem de uma obra de Ernesto Neto e salienta as engenharias mecânicas de produção cultural vindas da arquitetura de Renzo Piano e Richard Rogers.

O Forum, segmento mais alternativo da Berlinale, também abrigou experimentos em 3D. Radical e fascinante, o filme The guests, de Ken Jacobs, resgata uma filmagem dos irmãos Lumiéres, que registra a chegada dos convidados ao casamento da irmã deles. Ao partir desse material, histórico e bidimensional, Jacobs insere uma câmera lentíssima que, juntamente com a técnica 3D, cria uma perspectiva visual e espacial por meio de lapsos temporais internos ao quadro. Os poucos segundos dos irmãos Lumiéres transformam-se em uma hora de um filme ímpar, no qual convida-se a experimentar inusitadas formas de perspectiva, fenômeno esse que, para Jacobs, aconteceria apenas na mente do espectador.


Snowpiercer, de Bong joon-ho, foi apresentado na versão integral
Snowpiercer, de Bong joon-ho, foi apresentado na versão integral


Conversas com Chomsky

Juntamente com os atores Christoph Waltz e Tony Leung, o diretor francês Michel Gondry faz parte do júri oficial da competição desta Berlinale. O autor de Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004) conversou com o Estado de Minas sobre seu novo filme, Is the man who is tall happy?, que está na seção Panorama do festival. O longa apresenta diálogos com o linguista Noam Chomsky, mais conhecido como crítico da política externa norte-americana, enfatizando seu trabalho científico e suas teorias sobre o processo cognitivo. Gondry utilizou uma narrativa em primeira pessoa e, durante a entrevista, confessou que é obcecado pela complexa obra de Chomsky, assim como por revistas científicas que investigam o cérebro.

“Na minha narrativa em primeira pessoa me representei como uma pessoa ingênua, que tinha dificuldade de compreender as sofisticadas teorias de Chomsky. É uma estratégia para me aproximar do espectador”, disse. Feito com uma animação mais tradicional e mesclado com filmagens em super 8mm, Is the man who is tall happy? faz um contraponto ilustrativo e lúdico às formulações do cientista americano e valoriza os caminhos tortuosos da mente humana e as errâncias do processo cognitivo.

Ficção e sexo


Dois diretores mais renomados aproveitaram a Berlinale para apresentar o corte autoral das suas últimas obras. É o caso do aguardado Snowpiercer, de Bong joon-ho, que foi apresentado também no Forum na versão integral. Baseado numa história em quadrinhos homônima, de Jean-Marc Rochette, essa ficção científica pós-apocalíptica retrata os últimos sobreviventes de um catastrófico congelamento do mundo. Eles estão dentro do Snowpiercer, que é um trem que não para nunca, em fluxo contínuo, pois precisa desse ritmo intenso para suportar as baixas temperaturas. Há, dentro do trem, uma divisão por castas, privilégios e desigualdades. Com notórias interpretações de Chris Evans e Song Kang-ho, o filme mostra as consequências de uma sangrenta revolução que ocorre entre os passageiros e os vagões.

O segundo diretor é Lars von Trier, que voltou a pisar no tapete vermelho de Berlim para mostrar a versão “sem cortes” de Ninfomaníaca, com cerca de 30 minutos a mais do que a lançada mundialmente. Trata-se de mais uma estratégia comercial do filme. A equipe de Lars von Trier aproveitou o clima de burburinhos e apostas dessa reta final da Berlinale para obter mais divulgação da versão sem cortes e do segundo volume de Ninfomaníaca, que está em fase de pré-lançamento na Europa e no Brasil. 

ARNALDO VIANA » Bom dia, cavalo (3)‏

ARNALDO VIANA » Bom dia, cavalo (3)
Estado de Minas: 15/02/2014


 (Arnaldo Viana/divulgação)


Bom-dia! Olhe eu aqui de novo. Observando, observando, observando... Cara, que notícias vêm de vocês... Estão se autodestruindo. Normal! O que esperar de quem vive de arruinar o planeta? Em um momento, restará apenas um ao outro. E se não houver convivência... Então, dá para ver daqui que um humano quer se livrar do outro. “Saia da frente que quero ficar”. E fica. O próximo que se dane. Vai que vai! Já pensaram na confusão mental em que se meteram? Já não sabem o que é crime e o que não é. A distância entre gentileza e truculência. A diferença entre prudência e insensatez. Já não conseguem administrar discrepâncias. Estão confusos. Dinheiro, mano, compra desejos e conforto, mas não compra educação e muito menos um conjunto de formalidades de comportamento que se chama civilidade.

Já não sabem tomar a direção do que querem, do que precisam. E quando têm, não sabem como buscar. O que seria se todos os cavalos de carroceiros se unissem aos burrinhos do Parque Municipal e saíssem espalhando coices em latas de lixo, em portas de lojas e bancos, soltando rojão (no sentido de rojão mesmo) nas pessoas, peitando cavalos da PM em protesto contra a falta de capim na caatinga nordestina ou contra o apodrecimento da água do Córrego do Onça? O que isso tem a ver com aquilo? Vou até sugerir uma passeata, mas diante dos organismos ambientais e sem escoicear a lixeira, machucar ou matar.

Por que meti o Onça nessa conversa? É que a gente gosta de pastar na beira do córrego. Mesmo com a água ali do lado, temos que andar muito para matar a sede. Um colega, puxador de carroça no Bairro Ribeiro de Abreu, absolve e aprova a água do Onça. “É gasosa”, diz, lambendo os beiços depois de beber aquele líquido pastoso. Adora. Naquela água há elementos estranhos que causam dependência. Há outras coisas também. Só no ano passado, o colega foi obrigado pelo dono, o carroceiro, a beber três litros de uma intolerável mistura contra vermes.

Vamos voltar ao entendimento, ao juízo. Semana passada, lembramos o comentário daquele senhor do Buritis sobre a presença de animais nas ruas, como eu. Disse: “Esses bichos podem atacar a gente!”. Respondi: “Olhe à sua volta, veja quem realmente o ameaça”. Somos diferentes. Não nos devoramos. Outro dia, um domingo, bestando pelos lados da Rua Pitangui, passei diante de um estádio, o Independência, creio. Havia jogo de futebol. Ouvi um grito assim: “Ei, seu juiz, bote o cavalo desse zagueiro para fora!”.

Pera aí, mano. Cavalo, não! Você nunca viu, mas nunca viu mesmo, cavalo quebrar a perna do outro em jogo de polo. Certa vez, uma turma de puxadores de carroça foi assistir, do outro lado da cerca de um clube de Santa Luzia, a uma partida de polo. Vibramos e nos divertimos. Ninguém mordeu ninguém, ninguém soltou bomba em ninguém. E aplaudimos o cavalo negro que acabou com o jogo. Ninguém o hostilizou de forma racista ou de qualquer outra maneira. Em questão de entendimento e juízo, somos o que a natureza nos reservou: conviventes, de bom trato. Pessimista? Não. Ainda existem almas genuinamente animais, porque o trato genuinamente animal é bom. Que bonita declaração a daquele jogador: “Troco todos os meus títulos pela igualdade em todas as raças!”. Não se chateie, cara. Prefiro os macacos aos intolerantes.

Vou continuar aqui, entre um servicinho de puxar areia, entulho ou mudança de pobre. Qualquer folguinha, estarei de volta. Uma senhora ameaçou chamar o caminhão da zoonose. “Esse bicho pode machucar alguém”, disse. Ô, coitada! Não brigo por espaço no trânsito, não ando armado em garupa de moto para matar e roubar, não disputo posses, não tomo drogas como aquele colega viciado no Onça, não boto pata no dinheiro público. Vou continuar aqui. Quero ver a estreia dos ônibus siameses. Pelo atraso nas obras e o baixo nível de informação, vai ser um arraso. Quero ver!


>> arnaldoviana.mg@diariosassociados.com.br

Há 150 anos, tinha início a Guerra do Paraguai

Sangue no sul
 
Há 150 anos, tinha início a Guerra do Paraguai, maior conflito armado registrado na região e que ainda desafia os historiadores. Quadro de Pedro Américo sobre o conflito é tema de livro


Carlos Herculano Lopes
Estado e Minas: 15/02/2014


Em 1877, chegava ao Brasil o quadro Batalha do Avaí, de Pedro Américo (1843-1905) (Museu Nacional de Belas Artes/Reprodução)
Em 1877, chegava ao Brasil o quadro Batalha do Avaí, de Pedro Américo (1843-1905)


Guerra do Paraguai para os brasileiros; Guerra da Tríplice Aliança para o Brasil e seus aliados Uruguai e Argentina; e Grande Guerra para os paraguaios. Seja qual for o nome que se dê ao conflito, o maior já acontecido até hoje no hemisfério sul, e que resultou na morte de milhares de pessoas dos países envolvidos – com a destruição quase completa do Paraguai, que perdeu mais de 90% da sua população masculina –, este ano completam-se 150 anos do início da grande conflagração, que se estendeu por seis anos, até 1870.

Entre as causas imediatas da guerra, de acordo com Moacir Assunção, autor de Nem heróis nem vilões, um dos estudos mais completos sobre o período, havia desde antigas pendências de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, na região da então província do Mato Grosso, até questões políticas envolvendo o Uruguai. (Em outubro de 1864, o Brasil invadiu o país, ajudando a depor um governo aliado do Paraguai, que considerou o ataque um ato de guerra.) Sem falar do desejo do ditador Francisco Solano López de ter mais poder de decisão e voz ativa nas questões da Bacia do Prata, já que não se sentia ouvido o suficiente.

De uma forma ou de outra, tendo também fracassado os esforços diplomáticos feitos pelos lados envolvidos para evitar a guerra, como lembra o historiador Alfredo da Mota Menezes no livro Guerra do Paraguai – Como construímos o conflito, em 13 de dezembro de 1864, o Paraguai declarou formalmente guerra ao Brasil e se preparou para invadir o Rio Grande do Sul. Duas semanas depois, as tropas de Solano López atacaram o Forte Coimbra, no Mato Grosso, e colocaram os brasileiros para correr.

Pouco tempo depois, após o presidente argentino Bartolomé Mitre, que viria a ser o primeiro comandante-chefe das tropas aliadas, ter negado a López permissão de atravessar a província de Corrientes, para invadir o Rio Grande do Sul, este declarou guerra à Argentina, que entrou na briga. O novo presidente do Uruguai, Venâncio Flores, colocado no poder pelos brasileiros, também se voltou contra o Paraguai e, em 1º de maio de 1865, é assinado o Tratado da Tríplice Aliança. Por meio dele, os signatários se aliam, segundo Moacir Assunção, “para enfrentar Solano López, derrubá-lo e garantir a livre negociação nos rios”.

O que se esperava ser uma guerra breve, como era desejo dos aliados, ávidos para se ver logo livres do “tirano do Prata”, como se referiam a López, no entanto se arrastou por seis longos anos devido à obstinada resistência dos paraguaios, que lutaram com uma bravura não esperada. Ainda de acordo com Assunção, havia anos que Solano López vinha se preparando para o conflito. Daí a resistência demonstrada por suas tropas em batalhas épicas, como Tuiuti, Avaí, Itororó, Lomas Valentinas, Curupaiti, Riachuelo, Humaitá e tantas outras.

A guerra só viria a acabar de vez em 1º de março de 1870, quando uma tropa brasileira, comandada pelo general Câmara, alcançou o já devastado Exército paraguaio, tendo López à frente, na localidade de Cerro Corá, perto da fronteira com o Mato Grosso. Intimado a se render, o ditador paraguaio, depois de ter dito uma célebre frase – “Morro com a minha pátria e com minha espada nas mãos” –, foi atingido por um golpe de lança desferido pelo cabo gaúcho Chico Diabo, e por um tiro de fuzil dado por um soldado. Foi morto também seu filho Panchito, de 15 anos, já coronel do Exército, e feita prisioneira sua mulher, a irlandesa Elisa Lynche, que López havia conhecido na França, para onde, quando mais jovem, tinha ido em missão oficial.

Mas, o que essa guerra, que destroçou o país vizinho, que até hoje, 150 anos depois, não conseguiu se recuperar plenamente, significou para os vitoriosos? De acordo com Moacir Assunção, que esteve várias vezes no Paraguai para pesquisas que resultaram em seu livro, o conflito deixou marcas na história de todos os envolvidos. Para o Brasil, segundo ele, significou o fim da monarquia e o início da República, que seria proclamada 19 anos depois; a ascensão do Exército como ator político de peso, e a confirmação da liderança do país (em muitos momentos dividida com a Argentina) na América do Sul. E, no caso do Uruguai, a submissão ao Brasil por muito tempo. “A meu ver, foi a Argentina o país que mais se beneficiou com a guerra, pois depois dela começou um período de prosperidade que só vai se encerrar no governo Péron. O PIB da Argentina, no começo do século 20, era duas vezes maior do que o do Brasil”, destaca o historiador.



Quadro de Pedro Américo sobre a guerra do Paraguai é tema do livro  Nem heróis nem vilões, de Moacir Assunção (Museu Nacional de Belas Artes/Reprodução)
Quadro de Pedro Américo sobre a guerra do Paraguai é tema do livro Nem heróis nem vilões, de Moacir Assunção

três perguntas para...

Moacir Assunção
Autor de Nem heróis nem vilões

Em Genocídio americano: a Guerra do Paraguai, Julio Chiavenato sustentava que a Inglaterra patrocinou a guerra por não aceitar o suposto desenvolvimento do Paraguai, que contrariava os seus interesses comerciais na região. Como você avalia essa interpretação anti-imperialista, que fez muito sucesso nos anos 1970?

O que foi possível perceber, pelos documentos que obtive, foi que a Inglaterra não patrocinou ou colaborou para que a guerra eclodisse. Há registros de um representante daquele país tentando a paz. A Inglaterra, inclusive, estava de relações rompidas com o Brasil naquele momento histórico porque o Império tinha expulsado o seu embaixador, na famosa Questão Christie. O grande mérito do livro de Chiavenato, a meu ver, foi ter trazido novamente a discussão sobre a guerra à tona.

Você acha que a guerra contribuiu para a integração nacional?

Sem dúvida. No início, os gaúchos achavam que a guerra era somente deles. Depois viram que, sozinhos, sem os “baianos”, jamais conseguiriam vencer o Exército paraguaio. A guerra também foi “republicana” e antiescravista em sua essência, já que os soldados negros lutaram com muita valentia, e o conflito teve também o mérito de ajudar a sepultar a escravidão como instituição.

Afinal de contas, quais foram os heróis e os vilões da Guerra do Paraguai?

Considero o general Osório, em muitos aspectos, mais importante do que o duque de Caxias. O conde D’Eu, por sua vez, tem uma péssima imagem no Paraguai, onde ainda hoje é chamado de “la bestia rubia” por sua crueldade e pela cabeleira loira. Solano López, para mim, foi um general incompetente, que jogou o seu povo num atoleiro sem fim. Foi um déspota, não um patriota socialista, como achávamos antes.



Em 1877, chegava ao Brasil o quadro Batalha do Avaí, de Pedro Américo (1843-1905) (Museu Nacional de Belas Artes/Reprodução)
Em 1877, chegava ao Brasil o quadro Batalha do Avaí, de Pedro Américo (1843-1905)

Quadro de Pedro Américo sobre a guerra do Paraguai é tema do livro  Nem heróis nem vilões, de Moacir Assunção (Museu Nacional de Belas Artes/Reprodução)
Quadro de Pedro Américo sobre a guerra do Paraguai é tema do livro Nem heróis nem vilões, de Moacir Assunção

Para saber mais
. A Guerra do Paraguai – A grande tragédia rioplatense, de León Pomer, Editora Global.
. A retirada da Laguna, de Visconde de Taunay, Ediouro.
. Genocídio americano: a Guerra do Paraguai, de Júlio Chiavenato, Editora Brasiliense.
. Guerra do Paraguai – como construímos o conflito, de Alfredo da Mota Menezes, Editora Contexto.
. Imprensa em tempos de guerra: o jornal O Jequitinhonha e a Guerra do Paraguai, de Maria de Lourdes Reis, Edições Cuatiara.
. Maldita guerra – Nova história da Guerra do Paraguai, de Francisco Doratioto, Editora Companhia das Letras.
. Nem heróis, nem vilões – Curepas, caboclos, cambás, macaquitos e outras revelações da sangrenta Guerra do Paraguai, de Moacir Assunção, Editora Record.


BATALHA DO AVAÍ – A BELEZA DA BARBÁRIE: A GUERRA DO PARAGUAI PINTADA POR PEDRO AMÉRICO
De Lilia Moritz Schwarcz e outros
Editora Sextante, 174 páginas, R$ 150


A política das imagens

João Paulo

Em 1877, chegava ao Brasil o quadro Batalha do Avaí, de Pedro Américo (1843-1905), vindo da Itália, depois de quatro anos de intenso trabalho do pintor e de sua equipe. A grandiosa tela, de 50 metros quadrados, foi encomendada para celebrar a campanha brasileira na Guerra do Paraguai (1864-1870). Se a princípio tratava-se de uma obra de arte sobre um tema político, em pouco tempo se tornou uma obra política em si. O que estava na tela era uma leitura acurada da história do Brasil próximo ao fim do Segundo Reinado. O livro A Batalha do Avaí %u2013 A beleza da barbárie: a Guerra do Paraguai pintada por Pedro Américo, de Lilia Moritz Schwarcz, Lúcia Klück Stumpf e Carlos Lima Júnior, é um exercício de pesquisa e narrativa histórica a partir da célebre pintura.

O quadro impressiona. É imenso, movimentado, recheado de cenas violentas, olhares amedrontados, mortos e vivos com medo da morte. Ao retratar a batalha do Avaí, ocorrida em 1868, Pedro Américo usa todos os elementos estéticos de seu tempo. Mas vai além. Ao manipular símbolos e metáforas visuais, acaba por tecer um comentário político refinado, que não passou despercebido por seus contemporâneos. Além disso, a forma de dispor seus personagens na tela parece figurar uma análise sociológica dos vários estratos sociais.

Sem falar do tratamento dado às grandes figuras históricas, como o general Osório e o duque de Caxias, que simbolizam as duas grandes vertentes ideológicas da política brasileira imersas no conflito, os liberais e os conservadores. Caxias é retratado de maneira altiva, observando a batalha a certa distância, como quem dirige a cena sem participar dela. Osório é o herói que comanda as tropas de arma na mão e se arrisca pelo país. Todos entenderam a mensagem.

A Guerra do Paraguai foi um divisor de águas na história brasileira. Os custos da guerra, além de milhares de vidas, aceleraram a luta abolicionista e a campanha republicana. Tudo isso pode ser lido no quadro de Pedro Américo. Em cuidadosa análise do painel, os autores mostram desde o plano geral (com brasileiros fardados e paraguaios seminus e descalços, a apontar a diferença de estágio de civilização), até detalhes como a presença de escravos libertos, de saqueadores, de civis e crianças mortos no conflito.

O livro, em grande formato e com tratamento gráfico sofisticado, sob a direção de Victor Burton, permite análise de cada quadrante da obra e traz ainda uma discussão estética muito bem conduzida, passando em revista as possíveis inspirações de Pedro Américo e a iconografia de batalhas na arte brasileira e europeia. Os autores estudam ainda as acusações de plágio dirigidas ao pintor e estampam um interessante capítulo sobre o %u201Coutro lado%u201D, ou seja, a forma como os artistas paraguaios figuraram a célebre batalha.

Um livro que mostra como as imagens são capazes de contar histórias e fazer história.

Robôs cupins‏

Robôs cupins 
 
Inspirados no comportamento dos insetos, cientistas de Harvard criam máquinas capazes de construir pilhas de blocos em equipe 
 
Roberta Machado
Estado de Minas: 15/02/2014


As pequenas máquinas em ação: sem receberem dados prévios sobre o projeto, elas agem de maneira praticamente instintiva (Eliza Grinnell/ Harvard/ Science)
As pequenas máquinas em ação: sem receberem dados prévios sobre o projeto, elas agem de maneira praticamente instintiva

Brasília – Para muitas pessoas, cupins podem ser sinônimo de destruição. Afinal, esses pequenos insetos são capazes de derrubar fundações de casas sólidas, sumir com árvores inteiras e transformar coleções de livros em poeira. Essas criaturas, no entanto, também têm um talento para criar. Unidas, colônias de cupins têm a força e a habilidade para construir enormes montes de terra, por vezes com muitos metros de altura. Dentro dessas casas naturais, complexos sistemas de túneis são a prova do trabalho de uma espécie que nasceu para agir em equipe.

Tamanha eficiência serviu de inspiração para uma equipe de pesquisadores de Harvard, que traduziu o comportamento coordenado dos bichinhos em complexos algoritmos que servem de guia para robôs construtores. Assim como os térmites, as máquinas feitas pelos cientistas norte-americanos podem, juntas, montar complexas estruturas por conta própria, sem precisar de um plano de ação. Os robôs não se comunicam entre si, nem contam com as ordens de uma rainha. Mas, graças à inteligência reproduzida do mundo animal, sabem o que fazer para levantar grandiosos conjuntos projetados pelo homem.

Por enquanto, essas máquinas foram testadas construindo torres de blocos de espuma com pontos magnéticos que se encaixam como um brinquedo de montar. Mas, em breve, a equipe espera usar o mesmo princípio em tarefas bem mais úteis à humanidade, desenvolvendo modelos fortes o suficiente para levantar barreiras de sacos de areia em áreas de enchente, ou até mesmo para criar bases de pesquisa em outros planetas sem a ajuda de humanos.

Qualidade A chave para o funcionamento bem-sucedido das máquinas construtoras, explica um artigo publicado ontem na revista Science, está em um conceito chamado estigmergia, um tipo de comunicação implícita. Os robôs se dirigem automaticamente para a pilha principal de blocos e recolhem uma peça sem saber o que farão com eles. Mas, conforme retornam para a construção, eles notam onde seus colegas estão e qual local precisa de uma nova peça. “Ele vai tentar completar a estrutura, no caso com os blocos. Pegará material onde nós o colocamos, andará sobre a estrutura até achar algo que precise ser feito e o fará”, explicou em uma teleconferência à imprensa Kirstin Peterson, pesquisadora do Instituto Wyss de Engenharia Bioinspirada, de Harvard, e uma das responsáveis pela criação dos robôs insetos.

Durante o processo, as máquinas não têm noção do que as outras estão fazendo nem de quanto falta para concluir a construção. “Nos perguntam como um robô sabe que terminou a tarefa. Ele não sabe. Continua controlando a estrutura, arrumando o que precisa. E, se nada precisar ser arrumado, ele só vai andar”, esclarece Peterson. Uma estrutura pode ser construída por um robô ou por uma dezena deles, sem que isso afete a qualidade do trabalho.

O projeto levou quatro anos para ser concluído e exigiu que a equipe criasse um hardware capaz de cumprir a tarefa de construir uma complexa estrutura tridimensional, mas com a maior simplicidade possível. As máquinas só  se movem para a frente e para trás, e rodar em torno do próprio eixo. Ao pegar um bloco, elas têm a habilidade de carregá-lo e depositá-lo, no máximo, um nível acima, o que as obriga a montar as estruturas em forma de escada que pode ser sempre subida e aumentada.

A referência para esses robôs é um bloco principal, de onde as máquinas iniciam um fluxo contínuo. Eles seguem um conjunto de regras de “tráfego” e circulam a construção sempre na mesma direção, para não atrapalhar os outros. “Para garantir a segurança, eles olham para onde os blocos não foram colocados e se certificam de que certas condições foram cumpridas. Isso permite provar que nenhuma situação com a qual os robôs não possam lidar vá ocorrer ”, aponta Justin Werfel, pesquisador da Universidade de Harvard e principal autor do trabalho.

Toda a ação é feita de forma quase instintiva, algo pouco comum em máquinas. Se o mesmo projeto for submetido aos robôs em várias situações, a probabilidade é de que eles tomem diferentes caminhos para concluí-lo a cada vez, se adaptando ao ambiente em que estão. Se uma máquina for retirada do grupo, se os blocos estiverem em um local diferente ou se algum deles cometer um erro, tudo pode influenciar nas decisões que os pequenos construtores tomam para levantar a estrutura pedida.

O resultado, no entanto, será sempre parecido. O projeto une a inteligência da natureza à precisão das máquinas. “Os detalhes de como cupins de verdade constroem montes são diferentes da forma como os robôs montam estruturas”, ressalta Werfel,  acrescentando:  “Uma razão para isso é que os objetivos são diferentes. Cupins não tentam construir uma estrutura específica, afinal não existem dois montes de cupins que sejam exatamente iguais”.

Cada robô cupim é equipado com um sistema de rodas híbridas com pequenas pernas cada uma, projetadas para escalar degraus com estabilidade. A orientação dessas máquinas é baseada num conjunto de sete sensores infravermelhos que geram imagens em preto e branco do que os cerca, um acelerômetro que os ajuda a saber o ângulo de inclinação da subida e cinco unidades de sonar. O braço mecânico é simples, com formato para recolher blocos, levá-los em segurança e encaixá-los no local correto.

Biologia As pesquisas tecnológicas com inspiração biológica têm ganhado popularidade nos últimos anos, e o trabalho de Harvard é um bom exemplo de como cientistas olham para a natureza para criar um sistema artificial mais eficaz. “Pequenas regras microscópicas dão origem a uma riqueza de comportamento que a ciência e a tecnologia tentam trabalhar em cima”, observa Sílvio Queiroz, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.

“Começamos a construir coisas e a adaptar sistemas que conhecemos há muito pouco tempo, se compararmos com os 3,5 bilhões de anos de vida na Terra. E, ao longo desse período, a natureza otimiza sistemas que permitem ser altamente eficientes e que os humanos não têm capacidade de fazer”, diz Queiroz, que atualmente estuda os mecanismos de voo dos pássaros.