domingo, 30 de novembro de 2014

Uísque - Eduardo Almeida Reis

Bebedores daquele tempo, no Rio, dependiam do excelente contrabandista Jacob, esquematizado nas embaixadas que importavam sem pagar impostos


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 30/11/2014




Do inglês whisky ou whiskey, do irlandês uisce beathadh e escocês uisge beatha, literalmente, “água da vida”, cuidemos do uísque mais comum neste país grande e bobo: o escocês blended, dito de oito ou 12 anos, o que absolutamente não quer dizer que tenha oito ou 12 anos de envelhecimento. Blended whiskey é uísque feito com a mistura de dois ou mais whiskeys.

Às voltas com o líquido desde rapazola, ainda me lembro de uma funcionária doméstica, com um mês de casa, que me pediu o enfeite de um litro de White Horse: pequena escultura plástica representando um cavalinho branco. A jovem brasileira disse que estava colecionando cavalinhos e já tinha 11. Assustei-me com a notícia. Só em casa seria o 12º litro do mês, fora os chopes e os uísques tomados na rua.

Bebedores daquele tempo, no Rio, dependiam do excelente contrabandista Jacob, esquematizado nas embaixadas que importavam sem pagar impostos. Jacob tinha um fusca bege e nos levava as caixas em domicílio pedindo que não deixássemos de quebrar os litros vazios para evitar falsificações. Realmente, litros vazios tinham algum valor comprados pelos vidraceiros, que passavam com seus burros sem rabo recolhendo garrafas vazias para revender.

Nos bares, uma dose de uísque legítimo custava bom dinheiro, o que levou um amigo nosso a dizer que não entendia como era possível alguém, que não bebesse, queixar-se das finanças. O produto falsificado também custava uma nota e dava cada ressaca que vou te contar. Jantando no Iate Clube em mesa de muitos amigos, estranhei o gosto do Black Label, mas vi que todos estavam bebendo e fui em frente. Passei mal à beça. Duas aspirinas, duas colheres de sopa de mel, muita água mineral e cama, receita do médico Sérgio de Paula Santos.

A partir de 1977, morando em Juiz de Fora, inventei um clube de bêbados onde nos fosse possível uiscar a preços razoáveis, com direito a garçom, cozinheiro, sinuca e outras conveniências: Clube do Bolinha, 40 sócios. Existe até hoje. Nosso fornecedor era esquematizado no Aeroporto do Galeão, comprava os uísques dos tripulantes das empresas aéreas e nos trazia de ônibus em valises de bom tamanho.

Certa noite, foi preso pela polícia numa blitz rodoviária e nos telefonou no dia seguinte: “Não entreguei ninguém”. Dipsomaníaco, frequentava as reuniões dos alcoólicos anônimos. Um sócio do clube, que brincou com ele, ouviu a seguinte lição: “Os senhores são empresários vitoriosos, médicos, advogados, bebem por prazer, não conhecem o alcoolismo. Eu vivia bêbado nas ruas, dormindo na sarjeta”. Temos 417 palavras. Amanhã falo do uísque em Belo Horizonte.

Desserviço
Homossexualismo nunca foi nem é doença mental, mas há fatos que contribuem para desservir o movimento gay em sua luta pela igualdade de direitos e obrigações. Terça-feira, 28 de outubro de 2014, Suzane von Richthofen, condenada a 39 anos de cadeia pela morte de seus pais, disputou com a senhora Rousseff, reeleita presidente de um país grande e bobo, o destaque na imprensa do acampamento que tem bandeira, hino e constituição.

Desserviço por quê? Ora, porque Suzane é evidentemente criminosa no mais alto grau e vem de se casar com uma senhora, também presa por crime hediondo, que se divorciou de outra doida de hospício, Elize Matsunaga, presa pela morte a tiros seguida de esquartejamento do corpo do marido.

No Brasil e no Cazaquistão, em qualquer país, filha que mata os pais é notícia. Mulher que mata o marido e serra o corpo do finado em pedaços, também é. Se as duas assassinas disputam o amor de uma terceira, condenada por crime hediondo, a história ultrapassa os limites do imaginável e acaba por desservir criaturas que só querem amar e ser amadas por pessoas do mesmo sexo.

E o pacientíssimo leitor fica devendo ao seu philosopho o fato de não ter escrito “países do mundo”, pois o conceito de país, ainda que grande e bobo, está limitado ao mundo em que vivemos, isto é, ao planeta Terra.

O mundo é uma bola
30 de novembro de 1538: fundação da cidade de Sucre, no Equador, como se isso tivesse importância na história da humanidade. Em 1783, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha assinam o Tratado de Paris, pondo fim à guerra revolucionária norte-americana. Em 1803, fim da administração francesa no Território da Louisiana. É dos poucos estados estrangeiros que conheço razoavelmente: morei lá dois meses no ano de mil novecentos e antigamente, dirigia automóveis, tentei aprender inglês. Em 1807, o exército francês comandado pelo general Jean-Androches Junot, dos Hussardos, ocupa Lisboa e Junot assume o comando do Conselho de Governo.

Em 1935, na Alemanha de Hitler, é concedido o direito de divórcio no caso de um dos cônjuges não acreditar nos ideais nazistas. O que deve ter tido de gente abjurando o nazismo nunca esteve no gibi. Hoje é o Dia do Síndico, do Teólogo, do Estatuto da Terra, do Evangélico e da Amizade Brasil-Argentina.

Ruminanças
“O adesismo é uma falha de caráter” (Contardo Calligaris).

EM DIA COM A PSICANÁLISE » No jardim da solidão

EM DIA COM A PSICANÁLISE » No jardim da solidão

Regina Teixeira da Costa
reginacosta@uai.com.br

Estado de Minas : 30/11/2014


Outras vezes, tive a oportunidade e o prazer de apresentar a poeta e psicanalista Flávia Drummond Naves. Autora de Palavra cerzida (1ª edição de 2008, em tecido, e 2ª edição de 2009, em papel), Instantes (2012), Chuva branca (2010) e A última valsa (2011), 1º lugar no Concurso da OAP-UFMG. Flávia nasceu e vive em Belo Horizonte.

Agora, apresento Florarvore no jardim da solidão (Editora Cas’a’screver), título sugestivo de um trabalho, um brincar com a palavra que gerou um significante novo. Lindos desenhos de Julia Panadés ilustram o volume com delicadeza. Ilumina a composição Lúcia Castello Branco.

Como diz Janaina de Paula no prefácio, Flávia escreve um corpo só de poesias colhidas em um jardim distante, onde lembranças esquecidas anunciam um canto de solidão. Da solidão que se escreve. Desse solo germina a florarvore. Árvore, flor, mulher. Uma travessia.

Flávia faz um percurso em três tempos. Uma travessia muito particular na qual o ritmo começa no lirismo, no amor, alguma coisa do sujeito que vai se reduzindo progressivamente até o hai kai, surgido como um resto do qual pode se fazer alguma coisa pontual. Florarvora-se mulher.

Na solidão da casa, seus cômodos e objetos passeiam a poesia. A noiva do Jequitinhonha na cristaleira, frestas azuis das brancas janelas, um dia que não quer adormecer e a noite não amanhece em mim, pombos na louça inglesa sobrevoam o rio de onde acena a avó na terceira margem, copos vazios de cerveja na copa ao café e as bilhas.

Dali passa ao jardim. O musgo no muro, vagalumes, pássaros em voo, árvore broto e rebento de flor. No mergulho dos pássaros inventa voos de saída. Descansa na mais pequena morte o sonho vivo.

Manoel de Barros oferece a gravanha. Palavra colhida também por Guimarães. Flávia persegue a sonoridade e a estranheza da palavra criando inventices: gravanha/ grava/aranha/ A teia escreve.

Dali florarvora-se em cada vez menores versos. Florarvore testemunha a paisagem que o tempo incansável transforma em diversos cenários com sol, o vento, as marés, chuvas e rios. O olho da árvore é a mulher que começa.

Brincando com seu nome vai se reinventando em um nome próprio. De Flávia brota florarvore, palavra caída do ventre, parida. Significante que representa um resto, uma sobra, algo do feminino. Nesta obra um tom singular, pessoal e intransferível do atravessamento da autora que se deixa ver. Um corpo todo de árvore me fiz.

De um eu que cai um resto reduzido à brincadeira haicai. Nos verbetes Roland Barthes clareia: com o haicai estamos no soberano da escritura – e do mundo, pois do enigma da escritura, sua vida tenaz, seu caráter desejável, vem do fato de que nunca podemos separá-la do mundo. Um pouco de escritura separa do mundo, muita nos traz de volta a ele.

E nele o próprio sujeito não é mais o autor. A propriedade vacila, a autoria passa como no jogo de passar anel. O sujeito desdobra-se, é um folheado infinito. De Flávia ao florarvore-se:

Palavra-gesto

Palavra-nome

Palavra-inventada para livrar.

sábado, 29 de novembro de 2014

ENTREVISTA/AUGUSTO DE CAMPOS » Entre coisas e anjos

Poeta, crítico e tradutor fala de suas transcriações de Rilke a anuncia versões da poesia de Maiakóvski


Carlos Ávila
Estado de Minas: 29/11/2014



 (Globo News/reprodução)
O alemão é um idioma que poucos dominam no Brasil. Por isso mesmo, são sempre bem-vindas as traduções em português de grandes autores que escreveram nessa língua (como Goethe, Nietzsche, Thomas Mann etc.). O poeta nascido em Praga (República Tcheca) Rainer Maria Rilke (1875-1926), um dos mais importantes do século 20, é um desses autores de língua alemã dos quais já contamos com diversas traduções no Brasil: Dora Ferreira da Silva, Geir Campos e José Paulo Paes já se aventuraram por sua poesia; Cecília Meireles, Paulo Rónai e outros mais traduziram sua prosa – cartas, diários e ensaios.

No ano passado, Augusto de Campos lançou Coisas e anjos de Rilke, com 130 poemas traduzidos (Editora Perspectiva). A seleção de Augusto visou à parte da obra de Rilke influenciada pelo pintor Cézanne e pelo escultor Rodin (o poeta foi seu secretário, tendo vivido muitos anos em Paris); inclui textos dos Novos poemas, do Livro de imagens, dos Sonetos a Orfeu e mais alguns poemas esparsos e pouco divulgados.

Poeta, ensaísta e tradutor, Augusto já recriou em português desde as canções dos trovadores provençais (com destaque para Arnaut Daniel) até as obras de vanguarda de Pound, Maiakóvski, Joyce, Gertrude Stein e John Cage, no século 20 – passando pelos poetas metafísicos (John Donne e Hopkins), pelos românticos ingleses (Byron e Keats) e pelos simbolistas franceses (Mallarmé, Rimbaud, Corbière etc.). Incluindo ainda Emily Dickinson (1830-1886) e Paul Valéry (1871-1945).

O trabalho de Augusto sobre os originais alemães de Rilke traz a sua marca pessoal, ou seja, a da tradução-arte ou recriação (ou ainda “transcriação”, como preferia definir seu irmão Haroldo de Campos, também poeta e tradutor). Não são meras traduções literais ou informais, que se guiam apenas pela fidelidade semântica ao texto. Procuram dar conta de todo o arcabouço sonoro-sintático e formal do poema original, tentando dessa maneira chegar à alma-âmago do mesmo, sem destoar de seu tom e de sua marca própria.
Em entrevista ao Pensar, Augusto não fala sobre as traduções anteriores de Rilke (“por uma questão de ética”; das que ele conhece, destaca apenas as de Manuel Bandeira – “Torso de Apolo” – e de Décio Pignatari – “Abisag”). Mas fala sobre vários aspectos da obra e da importância de Rilke para a poesia contemporânea. Aborda também a língua alemã e anuncia suas novas traduções de Maiakóvski, diretas do russo (uma delas reproduzida nesta página), ainda inéditas em livro. Vamos ao papo com Augusto sobre Rilke.

Num inusitado livro em que estuda Rilke, Pound e Neruda juntos, o ensaísta chileno José Miguel Ibáñez Langlois observa que “de um ponto de vista formal, Rilke foi em seus dias mais um anacrônico que um precursor. No fundo um poeta do romantismo alemão plantado na época de Apollinaire, de Dada e do surrealismo nascente”. O que pensa sobre isso?
É parcialmente verdade, embora a comparação me pareça, ela mesma, ressentir-se de algum anacronismo. Dez anos separam o nascimento de Rilke (1875) do de Pound, em 1885. E se é verdade que Rilke nunca foi um “modernista”, é verdade também que os textos poéticos dos Neue Gedichte (Novos poemas), que Rilke publicou entre 1907/1908, sob a influência de Cézanne e de Rodin, eram muito menos anacrônicos do que os que Pound publicou em A lume spento (1908). Rilke morreu prematuramente em 1926, com 50 anos, quando Pound havia apenas começado a publicar os seus Cantos definitivos, nos quais radicalizou o seu método ideogrâmico, de colagens e montagens, aos 40 anos. Sim, Rilke não foi um poeta “de vanguarda”. Mas os seus Novos poemas – os chamados “Ding-Gedichte” ou “poemas-coisa“ – privilegiados em Coisas e anjos de Rilke, a minha “re/visão” do poeta – apresentam aspectos relevantes para a modernidade da linguagem poética, além de ser grandes poemas. À luz de Cezanne, Rilke constrói textos, nem sempre em versos regulares, em que rompe com as constrições tradicionais ao abordar um tema-objeto, sob várias perspectivas e vários ângulos, atacando o verso em sucessivas fraturas e fissuras sintáticas e ao mesmo tempo alongando a frase por todo o texto, num audacioso jogo entre o espaço e o tempo escriturais. Vejam-se poemas, como o que traduzi do ciclo “Os tzares”, ainda do Livro das imagens, que precedeu os Novos poemas, mas escrito já por volta de 1907, contemporâneo destes. O texto, recortado por sucessivas imagens imprevistas, pareceria sugerir as famosas montagens eisenstenianas de Ivan, o Terrível, que também foi o inspirador do poema de Rilke.

Pode dar algum exemplo dessa operação? Que outras dimensões podemos perceber na poesia de Rilke?
Tome-se o poema “São Sebastião”, no qual inverte a direção das flechas e desdobra a posição do corpo da vítima. Ou “A pantera”, com a clivagem dos seus closes abruptos. Há, em embrião, nesses e muitos outros casos, algo do cubismo analítico e seu multiperspectivismo. Um protocubismo. Aliás, foram esses poemas que assinalaram a “reconciliação” de João Cabral com Rilke: “Preferir a pantera ao anjo/ condensar o vago em preciso,/ neste livro se inconfessou” (“Rilke nos Novos poemas”, em Museu de tudo). Em suma, de alguma forma, o poeta respondia, ainda que até certo ponto em formas menos disruptivas, às desconstruções cézannianas que levariam ao cubismo. Outra dimensão menos conhecida dos poemas de Rilke, e também apreciável, indutora do expressionismo, é a satírica, presente nos violentos retratos de deformidades e infelicidades que traduzi do Livro das imagens. Poucas vezes li versos tão contundentes como os do ciclo “As vozes”. A voz do Suicida frustrado: “Permitam-me que eu me vomite”. Ou a do Leproso repudiado: “Tento não assustar os animais”. Rasgos de humor negro atravessam os Novos poemas em “Morgue “ e “Lavagem dos cadáveres”, ou nos retratos grotescos dos reis leprosos e no belo-horrível da descrição protoexpressionista do "Nascimento de Vênus”: “O mar pariu.” E chega a ser um mistério, talvez tão grande como o de Rimbaud ao compor, adolescente, os versos perfeitos do “Barco bêbado”, a perfeição com que Rilke foi capaz de criar, em duas semanas, os textos impecáveis de Sonetos a Orfeu. A poesia do nobelizado Neruda, que nasceu em 1904, 20 anos depois de Rilke, encontrou, sem dúvida, uma linguagem própria, mas até certo ponto pronta, para os seus versos modernos. Mas ele nunca foi um inventor de formas e – para mim – não chega aos pés nem de Rilke nem de Pound. Uma comparação mais justa e adequada situaria a poesia de Rilke como precursora da linguagem moderna, ao lado da criação poética dos também grandes Aleksandr Blok e William Butler Yeats, que influenciaram e foram influenciados por Maiakóvski e Pound, respectivamente.

O ensaísta e tradutor mineiro Cristiano Martins, no seu pioneiro ensaio “Rilke – O poeta e a poesia”, de 1949, observa: “A sua originalidade, e profundamente original foi ele, não residia nos aspectos exteriores da forma, nem na novidade e no ineditismo dos temas, mas no próprio modo de ser, na maneira pessoalíssima com que sabia extrair das coisas e sentimentos suas virtualidades líricas”. Concorda com essa visão de Cristiano?
Respeitável como seja, Cristiano Martins não é um bom conselheiro para a poesia. Domina razoavelmente a métrica e o verso, mas sem maior brilho. Não é poeta. Ao contrário do que ele afirma, Rilke se preocupava profundamente com a forma de seus poemas. “Forma” não é “fôrma”, aspecto exterior, casca epidérmica. O “conteúdo” tem que se impregnar dela, densificar-se com ela. Sem forma, Rilke não seria o grande poeta que foi, e sim um pregador-confidente, o visionário abstrato e místico que, nos anos 40, quiseram nos impingir. E foi por não perceber a profundidade do sentido da “forma” em Dante, derivada do trovador Arnaut Daniel, considerado pelo criador da Divina Comédia como “o “maior artífice da língua materna’, é que Cristiano Martins a traduziu apenas medianamente. Meritória, pelo esforço louvável de traduzir toda a Comédia, sua tradução, vista de perto, exibe “terzinas” metrificadas e rimadas como casca, mas sem “corpus” literário suficientemente denso e, portanto, sem “anima” poética. A forma é essencial na Divina Comédia, que é uma catedral linguística de forma e alma, e não uma igreja literato-convencional com métrica penosa e rimas de ouropel.

Rilke escreveu parte de sua obra poética diretamente em francês. Como classifica os “poèmes français” dele? Estão à altura de seus versos em alemão?
Para mim, não guardam a mesma tensão e a mesma originalidade dos textos em língua alemã, e salvo um ou outro caso, me soam como um Rilke aguado.

Por que traduzir Rilke hoje? Ainda há lugar e espaço para uma poesia com o “tom” dele no mundo atual?
Sempre há lugar para a poesia de todos os tempos, quando o poeta chega às alturas a que chegou Rilke. Considero os “poemas-coisa”, que emergiram nos Novos poemas, uma experiência fundamental para que se compreenda a unidade matérica do aparente dualismo forma-conteúdo em poesia. O rigor, a concisão, “a precisão do indeciso” (como queria o melhor Verlaine), especialmente desses poemas, têm muito a ensinar sobre como fazer poesia e não apenas redigir versos.

Além de Rilhe, você está traduzindo ou pretende traduzir mais algum outro poeta de língua alemã? Considera o idioma alemão também sonoro como o francês e “plástico” como o inglês?
Sim, a nós, brasileiros, à primeira audição, o alemão parece soar cacofônico ou excessivamente consonantal. Mas, bem assimilado, o idioma tem grandes belezas e achados, apesar das dificuldades linguísticas e gramaticais que dele nos separam. Volto de vez em quando a ele, e se pudesse traduziria todos os Novos poemas, mas é empreendimento árduo e meu interesse poético é onívoro. Não gosto de me especializar e no meu horizonte não estão as “obras completas” de ninguém, porque duvido muito das incumbências por atacado e dos “trabalhos forçados” em tradução poética criativa. Nem tudo é bem traduzível. Prefiro traduzir, de cada poeta, só aqueles textos em que julgo ter encontrado “um poema” em português. Mas para não dizer que não falei de flores germânicas, dou aqui este dístico de Goethe:
Uns Wien der Mens. in seiner Quall verstummt,
Gab mir ein Got zu sagen wie ich leide.
E quando um ser que sofre cala o seu clamor,
Um deus me deu o dom de dizer minha dor.
O caso de Arnaut Daniel é uma exceção e só me foi possível traduzi-lo integralmente porque do trovador restaram apenas 18 poemas. Mas não tornei a me embrenhar em obras de autores de língua alemã. Voltei a estudar um pouco de russo, que é ainda mais difícil que o alemão. Minhas últimas traduções, publicadas na internet, no portal da revista eletrônica Zunai, porque não tenho mais espaço nos cadernos literários, são de poemas do jovem Maiakóvski, escritos por volta de 1913. Dedico-as a Décio Pignatari, vertendo o título de um dos textos maiakovskianos com o pignatariano “Tó pra vocês”.

Carlos Ávila é poeta e jornalista. Publicou, entre outros, Bissexto sentido e Área de risco (poesia) e Poesia pensada (crítica). Foi, por quatro anos, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais.



Amor
Maiakóvski, tradução de Augusto de Campos
A moça entrou no brejo com cuidado, as rãs amplificaram seus tristes estribilhos, um vulto ruivacento bamboleou nos trilhos e os trens curvetearam com ar de enfado.
No véu das nuvens, por entre o sol-carvão, se infiltraram as mazurcas de um vento louco, e eu estou aqui – trottoir do verão onde mulheres atiram beijos-tocos.
Pobres idiotas, deixem suas casas! Venham, nus, ao sol, sem preconceitos, versar vinhos vorazes em odres-peitos e chuva-beijos em faces-brasas.
1913

HQ é o que há - João Paulo

Novos álbuns em quadrinhos mostram a força da arte sequencial, com adaptações de clássicos, romance de guerra e até mesmo a breve história do golpe civil-militar de 1964


João Paulo
Estado de Minas : 29/11/2014



As histórias em quadrinhos têm história. Das revistas infantis às adaptações de clássicos, passando por obras feitas especialmente para a linguagem sequencial de texto e desenhos, hoje se constituem num setor de destaque da indústria editorial. Não se trata mais de um artifício ou de uma possibilidade, mas de um território próprio, cada vez mais autônomo, criativo e original. A nova safra de produções nacionais e internacionais que acaba de chegar às livrarias é um bom exemplo deste movimento.

O primeiro destaque fica para a Barricada, segmento ligado à Editora Boitempo dedicado especialmente aos quadrinhos. Com conselho editorial formado por Luís Gê, Ronaldo Bressane, Rafael Campos e Gilberto Maringoni, o selo, como o nome indica, está voltado para títulos que tenham conteúdo libertário. Um bom exemplo desse projeto (que segue a própria linha da editora-mãe, responsável pela melhor edição das obras de Karl Marx no Brasil) é o álbum Último aviso, da feminista alemã Franziska Becker, lançado este ano.

O mais recente título da Barricada é o parrudo álbum Cânone gráfico – Clássicos da literatura universal em quadrinhos, organizado por Russ Kick. Trata-se, na verdade, do primeiro volume de uma trilogia, cobrindo o período que vai da Epopeia de Gilgamesh, uma das mais antigas obras literárias da humanidade, às Ligações perigosas, de Chordelos de Laclos, romance epistolar do século 18. Entre uma obra e outra, o antologista percorreu séculos, formas literárias, estilos e continentes.

O livro reúne 51 obras que ganharam tratamento em quadrinhos por alguns dos mais conhecidos nomes do gênero, como Robert Crumb, Will Eisner, Hunt Emerson, Peter Kuper e Seymour Chwat, entre outros. Há um pouco de tudo: poemas (entre eles dois sonetos de Shakespeare), epopeias, peças de teatro, romances, livros religiosos, tragédias, comédias, contos, textos filosóficos, diários e histórias infantis. A variedade de formas é um estímulo a mais para os quadrinistas e o resultado traz uma pletora de soluções gráficas originais.

Entre as obras clássicas adaptadas por quadrinistas selecionados por Russ Kick estão Ilíada, de Homero, por Kate Dixon; Medeia, de Eurípides, em adaptação de Tori McKenna; Tao te ching, de Lao-tsé, por Fred van Lente e Ryan Dunlavey; Apocalipse, por Rick Geary; Poemas, de Rumi, por Michael Green; A divina comédia, de Dante, por Seymour Chwast; o livro sagrado quiche Popol Vuh, por Roberta Gregory; Rei Lear, de Shakespeare, por Ian Pollock; Dom Quixote, de Cervantes, por Will Eisner; e Diário londrino, de James Boswell, por Robert Crumb.

O antologista escolheu um capítulo ou parte de cada livro adaptado, que ganha uma introdução com breve explicação da obra original. Geralmente, as versões em quadrinhos de obras literárias se destacam pela busca de tradução da história em outra técnica, com atenção sobretudo ao texto. No caso do Cânone gráfico, o cuidado maior é com o desenho. Não se trata de uma mera “transcriação” de um registro em outro (da literatura para os quadrinhos), mas de uma colaboração entre artistas de épocas e expressões distintas.

É um álbum que reúne criatividade espantosa para traduzir obras tão distintas. Há histórias em quadrinhos tradicionais, experimentos gráficos, pranchas coloridas, desenhos sem texto, estética underground, emulação da arte oriental clássica, abstrações, uso do humor, da paródia e de citações da história da arte. Um catálogo completo da arte dos quadrinhos a serviço de obras-primas da literatura.

Devastação

Outro lançamento recente no mercado de graphic novels é Kapputt, obra de Curzio Malaparte, com adaptação e arte de Guazzelli (WMF Martins Fontes). O ilustrador e quadrinista brasileiro tinha um desafio e tanto pela frente. A obra do jornalista e escritor italiano é um dos clássicos sobre a Segunda Guerra e a representação do nazismo e do fascismo. Malaparte é neorrealista, mas não como os diretores de cinema. É um tipo peculiar de escritor, que mescla realidade e ficção com técnicas de reportagem, com o interesse em flagrar o mal e a miséria, fazendo uso de um profundo senso metafórico. Kapputt é por isso um livro ao mesmo tempo real a simbólico.

Guazzelli captou bem o universo do escritor. Exacerbou a presença dos animais em sua obra, criando visões disformes e técnicas próprias para cada capítulo (todos têm nome de um bicho ou inseto). O resultado é devastador: ao mesmo tempo um retrato de época e um espelho da maldade humana, em que há muitos traços ainda hoje reconhecíveis. Não se trata do horror do nazifascismo, mas do pendor do homem ao mal. O tom dos desenhos é escuro, há poucas cores (aquarelas esmaecidas como memórias vagas) e o texto é quase uma legenda exata para a atmosfera destacada.

A violência ronda cada quadro. Os cenários são sempre lúgubres, as cidades parecem adormecidas, os sons mais ouvidos são de tiros. Um trem atravessa a paisagem. Sabe-se, ou intui-se, o que trazem em seus vagões de carga. Ao fim, um cadáver balança em um galho. Não é uma morte isolada, mas um alerta do que somos capazes de fazer e da indiferença que muitas vezes nos faz virar o rosto a outras violências, menos explícitas, mas igualmente próximas.
Outro clássico marcado pela proximidade com o horror, recentemente lançado em quadrinhos no Brasil, foi Coração das trevas, de Joseph Conrad, com desenhos de Catherine Anyango e roteiro de David Zane Mirowitz (Editora Veneta). O livro é mais conhecido por sua adaptação para o cinema, Apocalipse now, dirigida por Francis Ford Coppola. Aqui, também em função da atmosfera – de pesadelo e indistinção geográfica sobre onde seria de fato o “coração das trevas” – os desenhos são sombrios e os enquadramentos cinematográficos ora miram nos detalhes, ora se afastam da cena como se não a compreendesse.
O roteirista funde habilmente a narrativa com experiências do autor no Congo Belga, além de deixar aberta a trilha da imaginação para outras operações de rapina, que ainda hoje marcam o contato com o continente africano. Sem falar do racismo presente na narração conradiana, um traço de época, mas ainda vigente nas sombras da intolerância contemporânea. Sem falar da sedução algo inexplicável pelo personagem central um contrabandista de marfim. A história começa e termina nas trevas. O horror de ontem talvez não esteja tão distante do atual. Nem seus funcionários devotados menos cruéis – e admirados no cumprimento de suas metas. 

Ditadura

Lançamento recente que merece destaque é O golpe de 64, de Oscar Pillagallo e Rafael Campos Rocha (Editora Três Estrelas). Como se trata de conteúdo histórico, o maior mérito é a correção das informações. Com caráter quase didático – é um bom material de apoio para professores –, o livro se concentra mais no golpe. Dos seis capítulos, apenas o último é dedicado à ditadura e suas consequências, ainda assim de maneira mais sumária. O objetivo é traçar a gênese da quartelada de março de 1964.

O interesse dos autores foi apresentar os fatos políticos que antecederam o golpe civil-militar, retrocedendo ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. A história segue com as tentativas de inviabilização do governo JK, com a pressão conservadora em torno de João Goulart, a resistência, o clima de conspiração na caserna e a atmosfera cultural do período. Pilagallo destaca os principais personagens e suas falas: as legendas e balões com dizeres são quase uma antologia de momentos marcantes do período, pela voz de seus atores mais importantes.

O golpe de 64 é quase um álbum paradidático, sobretudo pela costura sucinta dos fatos e correta seleção de interpretações mais canônicas. O desenho de Rafael Campos Rocha oferece um bom suporte para o roteiro, sobretudo pela visão sagazmente caricata das personagens, mas não chega conduzir a narrativa nem dá a ela uma dinâmica própria. A se destacar a inspiração ética que comanda a estética: a esquerda é sempre digna, os milicos uns brutamontes. Ponto para Rafael. A dupla deveria dar continuidade ao projeto, numa trilogia que abarcasse o período da ditadura e, ao fim, trouxesse a história da redemocratização do Brasil. Os leitores jovens merecem e os autores devem estar bem afiados depois do primeiro desafio. 

 CÂNONE GRÁFICO: CLÁSSICOS DA LITERATURA UNIVERSAL EM QUADRINHOS, VOL. 1
. Organizado por Russ Kirk
. Editrora Barricada, 456 páginas, R$ 118

KAPUTT
. De Curzio Malaparte, adaptação e arte de Guazzelli
. Editora WMF Martins Fontes, 184 páginas, R$ 59

CORAÇÃO DAS TREVAS
. De Joseph Conrad, adaptação de Catherine Anyango e David Zane Mairowitz
. Editora Veneta, 128 páginas, R$ 39,90

O GOLPE DE 64
. De Oscar Pilagallo e Rafael Campos Rocha
. Editora Três Estrelas, 120 páginas, R$ 34,90

Efeito Pearson - Eduardo Almeida Reis

O bandido que matou o chofer se vangloriou pelo celular. Não cometeu um crime e sim um ato infracional: menor, é inimputável


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 29/11/2014




Ainda que devagarinho, as últimas eleições acusaram o Efeito Pearson em diversas regiões deste país grande e bobo. A começar pelo médico Agnelo dos Santos Queiroz Filho, o radialista Anthony William Matheus de Oliveira, o ex-líder estudantil Luiz Lindbergh Farias Filho, o médico Alexandre Rocha Santos Padilha, o economista Eduardo Matarazzo Suplicy, a advogada Gleise Helena Hoffmann, o médico Cândido Elpídio de Souza Vaccarezza, o engenheiro e economista Edison Lobão Filho, a raiventa Luciana Krebs Genro, seu genitor, o advogado Tarso Fernando Herz Genro, o bispo Marcelo Crivella e vários outros brasileiros e brasileiras.

Como sabe o leitor, o Efeito Pearson resulta de uma fórmula que mistura cresóis e fenóis associados a hidrocarbonetos aromáticos na forma miscível, produzindo um tipo de emulsão essencialmente fina em diluição na água. Assegura o mais amplo espectro de ação bacteriana sobre os microorganismos Salmonella typhimurium, Pseudomonnas aeruginosa, Staphylococcus aureus, Listeria monocytogenes, Escherichia coli e sobre muitos políticos brasileiros. É a Creolina Pearson, que deve ser usada como desinfetante de instalações agropecuárias como pocilgas, galpões e estábulos, no tratamento das miíases (bicheiras) e nas urnas eletrônicas em soluções de 2% a 4% em água. Cuidado: não usar em felinos!

Crimes

Sempre que alguém queima um ônibus – em cinco dias, só em Santa Catarina, foram 17 – o telejornalismo fica preocupado com os motivos, como se houvesse motivo para botar fogo num ônibus. Virou moda no Brasil inteiro. Em São Paulo, dia desses, o fogo alcançou o motorista, que morreu dois dias depois. Em São Luís (MA), o pobre motorista teve queimaduras tão sérias que passou semanas numa UTI. O bandido que acabou matando o chofer paulista se vangloriou do homicídio em telefonema pelo celular. Não cometeu um crime e sim um ato infracional: menor, é inimputável. E tem por ele o papa Francisco recomendando que não se punam os menores, coitadinhos, o que não impede que sejam estuprados por alguns clérigos.
Duvido que a psiquiatria forense possa explicar certos crimes. Thiago, o vigilante goiano, autor confesso de 39 homicídios, assaltou dois rapazes que tomavam cerveja num bar. Chegou de moto com capacete, apontou o revólver, tomou o dinheiro e os celulares dos dois.

Em seguida, devolveu espontaneamente os celulares e o dinheiro antes de atirar num deles, que morreu. O sobrevivente contou, como vi na tevê, que Thiago estava de capacete, mas tem certeza de que foi ele, porque o reconheceu pelos olhos. Homessa! Foi exatamente pelo olhar que analisei o maluco e escrevi sobre o fato, considerando que não tem o tipo lombrosiano, mas o seu olhar de viés é indicativo do que lhe vai pelos miolos.

Coragem

Magro, bons dentes, cabelos brancos, o psicanalista Contardo Calligaris, de 68 anos, não tem medo de dizer o que pensa. Nascido na Itália, formado em letras, doutor em semiologia, doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provença, na França, casado desde 2011 com a atriz Mônica Torres, foi muito feliz no Manhattan Connection do dia 26 de outubro, logo depois das eleições.

Perguntado sobre a possibilidade de contar com a senhora Rousseff como sua paciente, explicou que seria complicado, porque ela teria que ouvir alguém. Trabalhando “diuturna e noturnamente” pelo bem do Brasil, a senhora Rousseff não dispõe de tempo para ouvir ninguém. Se dispusesse, saberia que “diuturna e noturnamente” não existe em português, considerando que o adjetivo diuturno significa “que se prolonga, prorroga ou protela no tempo; prolongado, longo; demorado, que subsiste por muito tempo”. Noturnamente não existe na consulta eletrônica ao Volp da Academia Brasileira de Letras, mas a senhora Rousseff pode falar com o seu inventor, o honoris causa da Silva, que assinou o Acordo Ortográfico e deve conhecer o sufixo -mente, do latim mens,mentis 'espírito, alma', na formação de advérbios com a noção de 'maneira, modo': fielmente, regularmente, mesmo porque mente muito.

O mundo é uma bola

Veja o pacientíssimo leitor como são perigosos certos ensinamentos da Wikipédia. Descubro que no dia 29 de novembro de 1643 dom João VI criou o Ministério da Justiça no Brasil. Providência difícil, porque dom João VI, aliás João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança, nasceu em 1767 e foi a óbito em 1826. Nomes reais são muito compridos, enquanto os plebeus podem ser deliciosos como o da garçonete que pesava minhas marmitas no Couve-Flor: Kerollay. É dos melhores nomes que tenho visto nestes últimos 50 anos. Ainda sonho ver o Brasil entupido de Kerollays e o Google já tem 30.000 entradas para Kerollay.

Em 1877, inauguração da primeira instalação telefônica do Brasil, no Rio de Janeiro, durante o governo do neto de dom João VI. Em 1888, o físico alemão Heinrich Rudolf Hertz prova a existência das ondas eletromagnéticas. Em 1929, isto é, ainda “outro dia”, o almirante norte-americano Richard Byrd foi a primeira pessoa a sobrevoar o Polo Sul. Em minha esplendorosa ignorância pensei que Byrd, em inglês, fosse passarinho, mas é bird, que na Inglaterra também significa "gatinha".

Ruminanças


“Mau caráter: um homem cujas qualidades, preparadas para mostrar como uma caixa de frutas no mercado – as boas para cima – foram abertas do lado errado. Um cavalheiro invertido” (Ambrose Bierce, 1842-1914). 

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Internet - Eduardo Almeida Reis

Em seu blog você pode escrever que não gosta de determinada artista, de determinado jornalista, que não gostou de um livro que comprou


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 28/11/2014



Volto à internet, assunto inesgotável, para conversar com o leitor sobre algumas coisas que tenho visto. Você pode ter um blogue, milhões de pessoas têm. É uma página pessoal, atualizada periodicamente, emque os internautas podem trocar experiências, comentários etc., geralmente relacionados com determinada área de interesse. Vem do inglês blog, que por seu turno veio de web-log, diary on Web site. Blogue é frescura: todomundo escreve blog.

O Brasil é o terceiro maior país em número de internautas ativos. Terminamos o ano passado com 52,5 milhões, perdendo somente para os Estados Unidos, que têm 198 milhões, e para o Japão, com 60 milhões. Entre osinternautas, o número de blogueiros cresce assustadoramente, o que não quer dizer que todos tenham muitos leitores.

Há campeões de audiência, como o http://dropsdafal.com, através do qual conheci Fabia Vitiello e seu marido, Alexandre Azevedo Cardoso, que nos deixou em 2007. Ela, sexóloga, admirável escritora, líder de audiência nos blogs; ele, primeiro lugar no ITA, vestibular de 1972, executivo de multinacional. Portanto, pode existir vida inteligente, no caso muito inteligente, na blogosfera, como também há do resto, que nem sempre é bom.

Em seu blog você pode escrever que não gosta de determinada artista, de determinado jornalista, que não gostou de um livro que comprou. Direito seu. Pedi à jovem secretária que me comprasse A vida louca dos revolucionários, de Demétrio Magnoli, e o Guia politicamente incorreto da história do mundo, de Leandro Narloch, ambos da Editora LeYa.

Devem ser ótimos, mas são ilegíveis por obra e graça do diagramador, do capista, do produtor gráfico da LeYa que inventam fontes originais, papéis de tintas de várias cores e devem ganhar com sua invenção gráfica o Nobelda imbecilidade editorial.

Volto ao seu blog para dizer que, no meu modesto entendimento, você pode escrever que não gosta de uma artista, de um determinado jornalista, mas não pode dizer que ela é uma puta e ele é venal. Talvez sejam, mas você não pode escrever: é crime. Tenho visto muitíssimos crimes desse tipo em alguns blogs que andei lendo. Que fazer?

Glória

Rainha Vitória, Agatha Christie, Margaret Thatcher, Cleópatra, Catarina II, a Grande, Isabel I de Castela, Jacqueline Kennedy, Elizabeth Taylor, Marie Curie e milhares de outras mulheres que, de uma ou de outraforma, tiveram expressão política, literária, artística e científica, passaram desta para a pior sem conhecer a felicidade, a importância e a glória suprema de Bruna Reis Maia, nascida em 1995 na violenta cidade deDuque de Caxias (RJ), que usa o nome artístico de Bruna Marquezine, é evangélica e vem de ser considerada a mulher mais sexy do mundo: namorou Neymar.

Catarina II, a Grande, que gostava da coisa, teve no leito uma porção de rapazes, o último dos quais 40 anos mais novo que ela, mas não namorou Neymar. Qual a importância de ser a imperatriz de uma das maiores potências europeias, de ampliar e modernizar o Império da Rússia, sem ter tido a glória de transar com o Neymar?
No mais, só dizendo como Robinho, quando acusado de participar de um estupro coletivo na Itália: “Todos conhecem o meu caráter”.

Testemunhas

Romeiro Neto arrolou 12 prostitutas como testemunhas de defesa do seu cliente num crime cometido no Mangue, zona do mais baixo meretrício do Rio daquele tempo. Questionado pelo promotor, perguntou: “Deum crime no Mangue, às duas da manhã, o ilustrado representante do Ministério Público gostaria que a defesa arrolasse como testemunhas 12 alunas do Colégio de Sion?”.

É o que me ocorre quando vejo os depoimentos do engenheiro Paulo Roberto Costa, o Paulinho do Lula, e do operador de câmbio negro Alberto Youssef, sobre os governos petistas. Razão tem o presidente do PT, Rui Goethe Falcão da Costa Falcão, quando fala sobre jornalismo de esgoto. Alguém conhece mais o material que circula nos esgotos do que Rui Goethe, nascido em Pitangui (MG)?

O mundo é uma bola

28 de novembro de 1660: em Londres, fundação da Royal Society. Repito: em 1660. Li outro dia que o parlamento britânico custa ao povo a décima parte, isto é, 1/10 do custo do Congresso brasileiro. Em contrapartida, o parlamento britânico nunca teve a honra de ser presidido por um Renan, um Sarney.

Em 1860, emancipação do município de Franca, polo calçadista paulista. Durante anos, morando em BH e visitando regularmente Capitólio (MG), onde fica o condomínio Escarpas do Lago, ameacei dar um pulo à vizinha Franca para comprar botinas. Fiquei nas ameaças.
Em 1991, fato espantoso: declaração de independência da Ossétia do Sul. Por que espantoso? Ora, porque a Ossétia do Sul não foi reconhecida. A maioria dos países da ONU considera a Ossétia do Sul parte integrante da Georgia, mas em agosto de 2008 o parlamento e o presidente da Rússia anunciaram o reconhecimento formal da independência da região juntamente com a daAbcásia. Hoje é o Dia do Soldado Desconhecido.


Ruminanças
A burrice tem avançado muito; a burrice ganhou status de sabedoria, porque com o mundo muito complexo, os burros anseiam por um simplismo salvador” (Arnaldo Jabor).

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Só agora? - Eduardo Almeida Reis

Só agora?


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 27/11/2014




 (LELIS)


E dizer que o jornalista Walter Sebastião aguardou minha mudança para dar notícia do pintor Antônio Dionísio da Cruz, de 77 anos, residente no Bairro Jardim Atlântico, na capital de todos os mineiros ou de parte deles. Guimarães Rosa escreveu: “Minas é muitas”, assim mesmo. Descobri nas eleições de outubro, com imensa tristeza, que há mineiros e mineiros.

Volto ao pintor. Se ainda morasse em BH, descobriria onde fica o Jardim Atlântico para comprar alguns quadros do Dionísio. Sua pintura bateu com o meu gosto. Entre os muitíssimos significados do verbo bater, “estar em concordância” congemina com o que achei da pintura do artista: gostei muito e gostaria de recobrir as paredes do apê com alguns dos seus quadros.

Aquele quadro O Grito, de Edvard Munch, que foi vendido num leilão por US$ 119,9 milhões, não penduro na parede nem de graça. Gosto não se discute, não se explica nem se transmite por via paterna. Há 15 anos tenho escultura lindíssima, que já não tenho onde pendurar. Dei a peça a uma de minhas filhas, que até hoje não encontrou espaço em sua imensa casa para exibir o presente do pai. Fazer o quê?

Internet

Cavalheiros e damas ocupados não têm tempo de passear pela internet lendo parte do que se escreve sobre todos os assuntos. Parte: pequena porção de um todo. É tanta coisa publicada que, lendo o dia inteiro, não há tempo para acompanhar o que sai em português numa só hora.

Hoje, contudo, procurando informações sobre determinada jornalista conhecida – do tipo casamento, idade, filhos etc. –, acabei sem saber se a moça é casada, quantos anos tem, se tem filhos, e fiquei horrorizado com o que escreveram sobre ela. E a postagem, texto imenso, foi de hoje. Nunca imaginei que se pudesse escrever e lançar na internet um texto daquela ferocidade em português correto, posto que meio confuso. Como há 250 mil entradas sobre a jovem senhora – duzentos e cinquenta mil! –, presumo que muita gente fale bem e muita gente fale mal.
Que coisa, hein? E o fenômeno é recente. A transmissão do primeiro e-mail da história ocorreu no dia 29 de outubro de 1969, vejo na própria internet, mas a vulgarização do negócio tem no máximo 20 anos. Em 1996, quando me mudei para Belo Horizonte, a um quarteirão do Shopping Diamond Mall, tive internet na velocidade de jabuti preguiçoso.

Agora, o Brasil inteiro fala das redes sociais, essencialmente antissociais, que servem para tudo, até para marcar brigas de torcedores dos times de futebol. Bela sociabilidade. Estudiosos sérios sustentam que o país tem 70% de analfabetos funcionais, isto é, indivíduos cujas habilidades de leitura e escrita são insuficientes para atender às necessidades práticas do dia a dia e para promover o seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Red discus

O mundo da pesca e do comércio de peixes ornamentais é muito maior do que se possa imaginar. Há revistas e livros especializados, produção e comércio de aquários, loucura total. Fui colega de trabalho de um brasileiro que fabricava aquários e me contou história interessante sobre o acará-disco, nome comum de todas as espécies de peixes de água doce classificadas no gênero Symphysodon, família dos ciclídeos, comuns na América do Sul nos rios amazônicos do Brasil, do Peru e da Colômbia. Têm formato discoide, cores originais, atingem 15 centímetros em média e são muito populares no mundo inteiro.

Espécie ornamental e pacífica, exigente quanto à qualidade (limpeza) da água, faz um sucesso danado. Meu colega e seus companheiros de pescaria pegaram vários acarás-discos de cor desconhecida, vermelho forte, e se apressaram a publicar as fotos numa revista internacional. Como bons brasileiros, se esqueceram de dizer que o vermelho resultava de umas frutinhas que existiam no lago amazônico em que pescaram e que o acará-disco, depois de uns dias sem comer as frutinhas, voltava às cores normais.

Pra quê? Pouco tempo depois, por meio da revista, receberam carta de um milionário americano que os convidava, citando-os pelos nomes, a viajar para o tal lago em seu jato particular, todas as despesas pagas. Viria ao Rio para apanhá-los com o seu jatinho e no Amazonas pescariam Red discus no lago, viajando em hidroavião alugado por ele, champanhe, caviar e uísque incluídos no convite. Levaram meses fugindo do milionário e da revista para não contar que o Red discus das fotos era resultado da frutinha.

O mundo é uma bola

27 de novembro de 1807, diz a Wikipédia, “a família real portuguesa foge para o Brasil na sequência da invasão do país por tropas napoleónicas”. Pelo napoleónicas dá para perceber que o texto foi escrito em Portugal. Parece-me que “foge” é pouco simpático: prefiro “transmigra”, do verbo transmigrar: mudar(-se) de uma região, país etc. para outro.

Em 1912, França e Espanha assinam um tratado segundo o qual todas as terras do que é atualmente Marrocos, ao sul do Rio Drá, passariam ao domínio espanhol; esse território teve as designações de colônia de Cabo Juby e zona sul do protetorado espanhol de Marrocos.

Hoje é o Dia do Técnico de Segurança no Trabalho.

Ruminanças

“O trabalho é a maldição das classes bebedoras” (Oscar Wilde, 1856-1900).

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Primaveris - Eduardo Almeida Reis

Primaveris

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 26/11/2014


Pessoalmente, o presidente Vladimir Vladimirovitch Putin é muito simpático e fala português bem melhor que o “honoris causa” da Silva. Explicou-me que sua datcha fica perto de Sochi, Krasnodar Krai, onde foi realizado o primeiro GP de Fórmula 1 da Rússia. Conversamos horas sobre diversos assuntos, ele cercado de imensos seguranças com óculos escuros e fones de ouvidos.

Simpático e educado, posto que encabulado, é também o belo-horizontino de família árabe muito rica que roubou meu carro. Ficou meio sem graça ao explicar o roubo, disse que não teve a intenção, que a moça do chaveiro levou dois minutos para fazer a cópia da chave do veículo preto, de quatro portas, que deixei estacionado no pátio do supermercado. Perguntei-lhe, quando informado de seu prenome incomum, se é parente do fulano, que tenho na conta de amigo.

Antes que o caro e preclaro leitor pense que fiquei maluco, devo explicar que dei para ter sonhos engraçados, nunca estive com o Putin, a não ser através da tevê, e o tal belo-horizontino de família árabe muito rica não roubou meu carro, até porque não tenho carro.

Acontece que tenho tido sonhos divertidíssimos, que o sonhador não quer que acabem. Alguém já parou para pensar no Putin falando português? E me explicando a pronúncia de datcha em russo? O roubo do carro, que não chegou a ser roubo, mas confusão do belo-horizontino, foi divertido e me deu aimpressão de ter durado horas. Escrevo num sábado. Os sonhos foram nas madrugadas de quinta e de sexta. Nesta última noite, não me lembro de ter sonhado, mas espero continuar a série de sonhos divertidos, como também desejo que o leitor curta os seus. São ótimos.

Novos tempos

Na rubrica jornalismo, caderno é cada uma das partes separadas que constituem um exemplar de jornal, formada por certo número de folhas dobradas e encasadas. No último sábado de outubro, um dos cadernos de jornal de circulação nacional deu-nos retrato fidelíssimo do que vai por aí: três matérias sobre residências de celebridades. Rua tranquila na Rive Gauche, Paris, edifício datado de 1801, propriedade de arquiteto brasileiro Edgar Moura Brasil e de seu marido Gilberto Braga, conhecido autor de telenovelas. Mais adiante, bela casa em Itaipava, Região Serrana do RJ, propriedade de uma advogada e de sua mulher, executiva de uma grande empresa, casal que adora receber amigos em seu ninho romântico. Paraterminar, a residência de um casal démodé nos Estados Unidos, o arquiteto nova-iorquino Paul Mais, sua mulher e três filhos. Démodé, isto é, que não está mais na moda.

No caderno do jornal, o casal démodé representa 33,333333333% dos casamentos atuais, mas desconfio de que o número não chegue a 10%, quando até em Governador Valadares, cidade mineira que já foi o Arraial do Porto de Dom Manuel (1734), Porto das Canoas (1808), Santo Antônio da Figueira(1888), distrito de Santo Antônio de Bonsucesso (1889), Figueira (1923) e Figueira do Rio Doce (1937), o empresário Pedro Maciel Filho, 41 anos, e seu marido Janderson Lima, de 34, ortodondista capixaba, curtem a chegada das filhas gêmeas Luísa e Valentina, depois de um processo internacional de útero de substituição.

Através de uma empresa israelense sediada em Tel Aviv, escolheram óvulos de uma doadora da África do Sul, fertilizados com o material genético de Pedro e Janderson, embriões inseridos em duas mulheres da Tailândia. As gêmeas idênticas são de um deles; em fevereiro nasce Vitor, ainda na barriga de outra tailandesa, filho do outro. Processo barato: cerca de US$ 90 mil. Recentemente, o Reino da Tailândia proibiu os aluguéis ainda permitidos na Índia através da empresa israelense que pertence a Ronen e Roy, gays espadaúdos que têm um casal de filhos pelo mesmo sistema.

O mundo é uma bola

26 de novembro de 1764: proibida na França a Companhia de Jesus. Algo devem ter feito os jesuítas para ser proibidos em tantos países ao longo dos séculos. Recomendo vivamente a leitura do livro Os jesuítas, escrito por um deles, o padre Malachi Martin, S.J. Em 1801, Charles Hatchett anuncia a descoberta de um elemento químico, que batizou de colombium, mais tarde redescoberto e batizado como nióbio. Importantíssimo elemento químico de número atômico 41 (símb.: Nb). Usado em aços e ligas metálicas de grande rigidez, dureza e estabilidade térmica, também usado em cápsulas espaciais, mísseis, foguetes, reatores nucleares e semicondutores. Sinônimos: colômbio e colúmbio. É recomendável que nenhum repórter investigativo se meta a analisar mineração e comércio do Nb neste país grande e bobo, por motivos que me abstenho de esmiuçar, até porque não nasci ontem nem anteontem. Em 1884, após ter liquidado as dívidas com os seus credores, o barão de Mauá recebe carta de reabilitação de comerciante. Em 1915, o Lusitânia e o Vasco da Gama se fundem e o Clube de Regatas Vasco da Gama passa a contar com um time de futebol para alegria do imenso jornalista Moacir Japiassu e de sua Marcia Lobo. Hoje é o Dia do Ministério Público.

Ruminanças

“Vamos, então; e que os céus prósperos / Nos deem filhos de que sejamos os pais” (Molière, 1622-1673).

terça-feira, 25 de novembro de 2014

A vida é uma canção - Ailton Magioli

A vida é uma canção Dadi, ex-baixista dos Novos Baianos e A Cor do Som, um dos mais requisitados da MPB, lança livro de memórias. Músico foi homenageado por Caetano Veloso em O leãozinho


Ailton Magioli
Estado de Minas: 25/11/2014



Instrumentista e compositor, Dadi vai do rock ao samba, com participações ao lado de Rita Lee e Marisa Monte (Ângelo Tranni/Divulgação)
Instrumentista e compositor, Dadi vai do rock ao samba, com participações ao lado de Rita Lee e Marisa Monte

Filho de mãe pianista, Eduardo Magalhães de Carvalho, de 62 anos, ainda na infância descobriu o prazer da música. “Vivia rodeado de música”, recorda o hoje consagrado Dadi, que está lançando o livro Meu caminho é chão e céu – Memórias, por meio do qual narra a trajetória de cinco décadas de carreira, com direito a incursões na pintura e, mais recentemente, na arte da escrita, mas sem pretensões literárias.

Como conta o músico, não bastasse o apartamento com quintal, onde a família vivia em plena Ipanema nos anos 1960, ele ainda tinha o privilégio de assistir aos ensaios de bossa-novistas no extinto Teatro Santa Rosa. “Aquilo tudo foi me fascinando até ouvir pela primeira vez o LP Samba esquema novo, de Jorge Benjor, de 1963”, lembra-se do álbum do ídolo, que trazia as canções Mas que nada e Chove chuva, entre outras, que acabariam por levá-lo a decidir pela carreira artística. Não sem antes integrar, aos 13 anos, a banda de rock The Goofies, com amigos de escola, na qual tocava guitarra e baixo.

Beatles, Rolling Stones, The Kinds, The Who e Jimi Hendrix colaboravam com o repertório da rapaziada, que vivia a máxima de “drogas e rock’n’roll” que predominava então. “Naquele período passei por tudo, mas levemente, ainda que tivesse amigos que jogassem pesado” recorda o hoje avô de Nina. Pai do engenheiro de som e produtor Daniel, de 35 anos, e do compositor André, de 33, Dadi comemora o fato de Nina ter chegado em um universo predominantemente masculino da família. A vovó Leila também não para de festejar a neta.

Homenageado por Caetano Veloso em uma de suas mais belas canções, O leãozinho, aos 19 anos, já consciente da opção pela música, por meio de uma amiga comum de Baby Consuelo Dadi foi convidado para tocar baixo com os Novos Baianos. Àquela altura, o grupo já conquistava fãs com uma mistura original de samba, bossa e rock’n’roll, com direito a incursões pelo chorinho. “Para mim, que na época não conhecia nenhum baiano, a Bahia era um lugar muito distante”, recorda o músico, salientando que até o jeito diferente de falar o atraiu nos baianos, que chegavam para estourar nacionalmente.

Caetano Veloso gravava Bicho na Polygram, do Rio, em 1977, quando se deparou com o multi-instrumentista nos corredores da gravadora. “Tenho uma surpresa para você”, anunciou o compositor a Dadi, proibindo-o de entrar no estúdio e ouvir O leãozinho, que viria a se tornar um clássico da moderna MPB. Com o lançamento do disco, Dadi pôde enfim ouvir a canção. “Fiquei orgulhoso. Imagina, um poeta como Caetano fazer uma música pra você”, recorda. Ele destaca o fato de o amigo, com o qual tocou, mas curiosamente não compôs, gostar de homenagear as pessoas em canções. “Em Outras palavras ele voltou a me citar, além da Dó, que vem a ser Leilinha, minha esposa”, orgulha-se, lembrando que Leilinha também é citada por Caetano em Gente.

Referência
A história da carreira de Dadi é feita de encontros, do tipo “o músico certo, na hora certa”. Já de cara, logo depois de ser apresentado aos Novos Baianos, o baixista foi gravar o antológico Acabou chorare (1972), seguido de Novos Baianos F.C. (1973), Novos Baianos – Linguagem do alunte (1974), Vamos pro mundo (1975) e Infinito circular (1997). Para pesquisadores e críticos de MPB, só o fato de ter vivido na comunidade do grupo musical, que funcionava no Sítio do Vovô, em Vargem Grande (RJ), entre 1971 e 1975, já garante um verbete para Dadi na história da música brasileira. Ele, no entanto, foi adiante e ainda nos anos 1970 foi tocar na banda do ídolo Jorge Benjor.

Jorge Benjor é o grande mestre de Dadi. “A arte dele é muito intuitiva”, justifica, lembrando que a música do mestre é como o jazz, feita à base do improviso. “Adoro. A gente se entrega à música. Ela é que manda.” Apesar de a indústria fonográfica ainda enfrentar crises, o multi-instrumentista lembra que as pessoas continuam criando. “Agora em casa, diante da facilidade proporcionada pela internet. Quem dá as cartas no mercado, no entanto, é a mídia”, detecta, admitindo que a grande dificuldade continua sendo levar a música até o grande público.

O rock é também referência na vida do músico. Beatles e Rolling Stones são exemplos permanentes na vida de Dadi, que voltou a ouvir muito o quarteto de Liverpool. “Incrivelmente, descubro detalhes na música deles até hoje”, confessa o multi-instrumentista. Depois de assistir a Paul McCartney ao vivo duas vezes, ele diz que o que o ídolo faz é um presente para os músicos. “Para mim, ouvir Paul hoje é como se os Beatles estivessem juntos ainda.”

Letras
Originalmente criado como grupo instrumental, por orientação do produtor Andre Midani, A Cor do Som passou a letrar suas canções para “tocar no rádio” e “vender disco”, segundo Dadi. Beleza pura e Abri a porta foram os primeiros sucessos do grupo, que, a exemplo dos Novos Baianos e Tigres de Bengala, não resistiu às exigências do mercado musical, movido a modismos.

Se por um lado Dadi sempre teve dificuldades em fazer letras, por outro acabou se destacando na composição de melodias, conforme provou principalmente a partir de A Cor do Som. A abertura para as letras viria com Arnaldo Antunes, com quem já fez cerca de 20 canções, entre as mais recentes Se assim quiser e Amar alguém, além da inédita O fim do mundo. “Arnaldo me deu segurança para investir em letras de conteúdo”, diz.

Dadi continua fazendo história. Depois de ajudar a criar e a integrar os grupos A Cor do Som e Tigres de Bengala, tocou e gravou com Barão Vermelho, Caetano Veloso, Marisa Monte, Tribalistas e Rita Lee, entre outros. Com carreira solo fonográfica em destaque no Japão, onde já lançou os discos Dadi (2005) e Bem aqui (2008), ele já negocia com produtor japonês o lançamento de Meu caminho é chão e céu – Memórias no País do Sol Nascente.

MEU CAMINHO É CHÃO E CÉU – MEMÓRIAS
De Dadi
Editora Record, 176 páginas, R$ 30


TRECHO

“Os Novos Baianos eram mais do que uma banda, eram uma filosofia de vida, seguindo a tendência mundial da época de se viver em comunidade, dividindo tudo. Apesar de o (Luís) Galvão não achar que era uma comunidade de hippies, acho que era exatamente isso. Todo o dinheiro que recebíamos era pra todo mundo – mesmo não sendo muito.Colocava na caixinha coletiva tudo o que recebia das gravadoras pelas minhas participações como músico nos discos. Ouvi falar que lá no sítio tinha um cesto com o dinheiro e que, se alguém precisasse, era só pegar. Nunca vi esse cesto, talvez porque não precisasse.”



Tribalista

Vizinho de rua de Marisa Monte, com quem toca atualmente, Dadi lembra que acaba se encontrando quase diariamente com a cantora, que acabou se tornando parceira. “Além do presente de Deus – o timbre dela, que dá conforto de ouvir – Marisa é muito cuidadosa com a carreira. Tem o time dela sempre a favor. Marisa faz o que quer e o que gosta”, diz o músico, que participou do projeto Tribalistas ao lado de Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Lixo - Eduardo Almeida Reis

Tão ou mais perigosa que a dos aventureiros é a função do PM para ganhar uma tuta e meia, além de ser malvisto pela sociedade


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 24/11/2014


Nada mais detestável do que o sujeito sair trombeteando sua caridade, nos casos em que foi realmente caridoso. O leitor sabe que não sou de fazer isso, mas devo contar algo que sempre fiz nos anos todos em que habitei bela casa de esquina no Bairro São Bento, em Belo Horizonte. Pelas vésperas dos natais, fazia questão de esperar a passagem do caminhão de lixo para gratificar pessoalmente os garis, cada um eles, geralmente da mesma equipe ao longo do ano. Dinheiro que não me fazia falta, ganho honestamente, gratificação que podia significar alguma coisa para eles no Natal.

O recolhimento do lixo é dos serviços mais importantes de uma cidade. Em alguns países, sem que o serviço deixe de ser cansativo e perigoso, os lixeiros ganham bem. Não faço ideia dos salários brasileiros, mas devem ser modestos e o serviço é importante, exaustivo e perigoso.

Dia desses, uma cadela da raça labrador escapou da casa de uma senhora amiga e sumiu no mundo. Desesperada, a boa senhora botou o sumiço no Facebook, avisou aos lixeiros que passavam de caminhão por sua casa e saiu de carro com o jardineiro para procurar a cachorra nas ruas de seu imenso bairro.

A vários quilômetros dali, um dos garis viu a cadela meio perdida, desceu do caminhão e a recolheu para deixar num pet shop que fica no seu caminho. Gesto bonito, inteligente, de um trabalhador brasileiro. Espero que tenha sido gratificado quando passou de caminhão recolhendo o lixo no dia seguinte.

 Explicação


Refiro-me aos bons, que são maioria, para perguntar ao leitor: o que levará um brasileiro a entrar para a PM? É o que me pergunto quando vejo nos telejornais os PMs circulando pelas favelas “pacificadas” ou por pacificar. Dir-se-á que é a necessidade de trabalhar, de ganhar a vida honestamente. Sim, é possível, mas há muitos outros empregos menos perigosos, de remuneração igual ou maior.

Por meio da internet, todo santo dia recebemos vídeos sobre atividades perigosas. É o sujeito que pula de um penhasco para mergulhar no oceano dezenas de metros abaixo, outro que salta de motocicleta sobre uma porção de carros parados lado a lado e mais outro que mergulha para filmar tubarões ferocíssimos: atividades mais que perigosas, que exigem cálculos complicados, treinamento, rendem bom dinheiro e transformam o maluco em celebridade.

Tão ou mais perigosa que a dos aventureiros, é a função do PM para ganhar uma tuta e meia, além de ser malvisto pela sociedade. A mesma sociedade que é a primeira a telefonar para a PM quando se vê em apuros. Se torcedores de futebol resolvem brigar com paus, pedras e barras de ferro, é função da PM impedir que se matem. Se há tiroteios entre traficantes de drogas, é função da PM prender os guerreiros do tráfico. Quando assaltam um banco, ninguém nos chama, a mim e ao leitor: chamam a PM. Ai do policial militar que mate bandidos numa troca de tiros.

Por mais que me esforce, só vejo uma explicação para os brasileiros honestos e trabalhadores que entram para as polícias militares dos diversos estados deste país grande, bobo e violento: vocação para o perigo parecida com aquela que faz o sujeito filmar tubarões, saltar de penedos, motocar num voo sobre uma porção de carros ou caminhões.

 O mundo é uma bola

24 de novembro de 496: eleição do papa Anastácio II. Em 642, eleição do papa Teodoro II. Em 1848, o papa Pio IX fugiu disfarçado para Gaeta, no Reino das Duas Sicílias, pelo risorgimento ou seja lá o que isso tenha significado. Outro que está ameaçado de fugir disfarçado é o papa Francisco, se continuar implicando com os bispos que constroem residências um pouquinho mais caprichadas, como fez com o bispo de Limburgo, o piedoso Franz-Peter Tebartz-van Elst. É muito papa neste mundo que é uma bola. Portanto, é importante lembrar que em 1631 os holandeses incendiaram Olinda. Em 1831, o físico experimental inglês Michael Faraday anunciou a descoberta da lei do eletromagnetismo, que leva o seu nome, também conhecida como Lei da Indução. Em 1859, Darwin publicou A origem das espécies, o que não impediu que até hoje milhões de idiotas continuem acreditando no criacionismo e milhares de gatunos sustentem que o mensalão nunca existiu.

É importante não esquecer que no dia 24 de novembro de 1642 o explorador holandês Abel Tasman descobriu uma ilha que seria batizada, anos depois, em sua homenagem: Tasmânia. Em 1632, nasceu em Amsterdã, de família judaica portuguesa, o filósofo holandês Baruch de Espinoza, fundador do criticismo bíblico moderno. Em 1864, nasceu o pintor francês Toulouse-Lautrec. Em 1897, foi a vez do gângster americano Lucky Luciano. Em 1963, indiciado como assassino do presidente Kennedy, Lee Harvey Oswald foi morto por Jack Ruby.

 Ruminanças


“Renan gostava de abandonar-se sorrindo ao sonho de uma moral científica. Ele tinha uma confiança mais ou menos ilimitada na ciência. Acreditava que ela mudaria o mundo, porque perfura montanhas. Por mim, não creio, como ele, que ela possa divinizar-nos. Para dizer a verdade, não tenho a menor vontade disso” (Anatole France, 1844-1924).

Pimenta contra o Alzheimer

Descoberta de importantes propriedades em extratos elaborados com os grãos, por pesquisadora da USP, traz novo alento para o combate à doença


Paula Carolina
Estado de Minas: 24/11/2014 




Inibidor da enzima acetilcolinesterase foi encontrado em todas, sendo que a pimenta-rosa apresentou os melhores resultados (Reprodução da internet
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Inibidor da enzima acetilcolinesterase foi encontrado em todas, sendo que a pimenta-rosa apresentou os melhores resultados


Uma potencial esperança para a redução dos efeitos da doença de Alzheimer pode estar em ingredientes mais do que comuns à mesa do brasileiro: pimenta-rosa e pimenta-do-reino. A descoberta é resultado de pesquisa feita pela bióloga Fúvia de Oliveira Biazotto para dissertação de mestrado em ciência e tecnologia de alimentos, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), concluída mês passado. Durante o trabalho, Fúvia constatou duas importantes propriedades nos extratos elaborados com as pimentas: o poder de inibir a enzima acetilcolinesterase e um fator antioxidante.

“A inibição da enzima acetilcolinesterase é hoje o que faz parte do tratamento da doença de Alzheimer. Os medicamentos existentes se baseiam nisso”, explica Fúvia. Isso porque essa enzima degrada a acetilcolina, neurotransmissor envolvido na retenção da memória e aprendizagem. “Então, tentamos buscar compostos que fossem capazes de inibi-la. Sobre a pimenta-do-reino preta já havia alguns estudos, mas sobre as outras – pimentas-do-reino branca e verde e a pimenta-rosa – ainda não tinha visto nada. Então, a ideia foi estudar esses três tipos de pimenta-do-reino, e a pimenta-rosa foi incluída pela semelhança. E foi justamente a pimenta-rosa que apresentou os melhores resultados”, afirma.

A pesquisa foi baseada em extratos feitos a partir do grão de cada uma das pimentas e o inibidor da enzima acetilcolinesterase foi encontrado em todas elas, com maior propriedade na seguinte ordem: pimenta-rosa, pimenta-do-reino preta, pimenta-do-reino verde e pimenta-do-reino branca. “Não posso dizer ainda que incluir essas pimentas na dieta vai curar a doença, mas há, sim, um potencial para isso”, garante.

A outra parte da pesquisa ficou concentrada na prevenção. “Ainda não se sabe a origem da doença de Alzheimer, mas uma das hipóteses é de que seria ocasionada por danos oxidativos. Pelo que se sabe, no processo tóxico da doença geram-se radicais livres e eles poderiam ser combatidos por antioxidantes”, diz Fúvia. E a atividade antioxidante também foi constatada nas pimentas, com maior potencial quase na mesma ordem da descoberta do fator inibidor: pimenta-rosa, pimenta-do-reino verde, pimenta-do-reino preta e pimenta-do-reino branca.

O objetivo de Fúvia, agora, é ingressar no doutorado, dando continuidade ao trabalho e incluindo testes em humanos, que possam comprovar os efeitos percebidos durante a pesquisa. “Se Deus quiser, em uns quatro anos teremos novidades”, observa.

BEM-VINDA Apesar de não ter acesso à pesquisa de Fúvia, o neurologista e professor Paulo Caramelli, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), integrante do Conselho Científico do Departamento de Neurologia da Associação Médica de Minas Gerais, afirma que a busca por mais tratamento que combata a doença de Alzheimer é extremamente bem-vinda. “Há cerca de 10 anos que o cenário não muda em relação ao número de medicamentos aprovados, a despeito de muitas pesquisas realizadas no período, que não resultaram em nenhuma nova medicação. Nada nesse período foi eficaz, apesar de um número de pesquisas cada vez maior. Logo, tudo que vier é muito bem-vindo”, afirma.

Ele confirma que a inibição da enzima acetilcolinesterase é a base dos medicamentos até hoje usados e lembra que uma nova medicação, que possa trazer melhores resultados e, sobretudo, sem efeitos colaterais, seria muito importante. No entanto, exatamente pelo fato de a medicação usada hoje já atuar em cima da inibição dessa enzima, ele acrescenta que seria interessante a busca de outras estratégias, que resultassem em remédios receitados em conjunto com os já existentes, cada um atuando num aspecto da doença. “Mas não estou minimizando os efeitos da pesquisa. Embora já existam drogas atuando no mesmo aspecto, nada impede que venham medicamentos melhores. Aliás, tenho muita simpatia por estudos que avaliam compostos naturais da flora brasileira. Acho sempre interessantes as pesquisas nessa linha”, ressalta.



Extratos feitos a partir do grão de cada uma das pimentas
Extratos feitos a partir do grão de cada uma das pimentas

Depoimento

L.M.,
filha de portador de Alzheimer

“Este é um assunto que mexe demais com o aumento do número de idosos na população e, ainda mais, quando se pensa no fator hereditário, principalmente em homens. Outras pessoas da minha família já estão preocupadas. E tudo o que se fala é muito experimental ainda. Até onde a gente estuda sobre a doença, quando aparece algum sintoma já era, ou seja, a pessoa já está com a doença. Então, se estão descobrindo alguma outra coisa que vai combater os efeitos e, melhor, se há um fator preventivo, vai ajudar demais.”

A corrupção assassina - Renato Janine Ribeiro

VALOR ECONÔMICO 24/11/2014

É errado chamar um político de ladrão. O que ele faz é pior. Mata doentes e mutila a esperança de melhorar a vida


Já escrevi aqui sobre a corrupção, porém não gosto de me repetir, nem de me limitar à indignação. Mas vale a pena, no curso das operações Lava-Jato e Juízo Final, firmar alguns pontos fundamentais.

Primeiro: "república" é coisa pública, bem comum. A conduta mais antirrepublicana que há é vulnerar, atacar, destruir o bem comum. Ou seja, nada é mais inimigo da república do que a corrupção, que privatiza ilegalmente o que pertence a todos. É um erro, que devemos à escola, pensar que o contrário da república é a monarquia. Distinguir repúblicas e monarquias é coisa do século XIX, quando estas últimas eram o que hoje chamamos de ditaduras.

Desde a vitória dos Aliados na II Guerra Mundial, quase todas as monarquias são constitucionais. As monarquias escandinavas visam mais o bem comum do que muitas "repúblicas" do resto do mundo. Devolvamos à República seu sentido forte: há república quando se visa o bem comum. Ser contra a república não é questão de opinião, de achar bonito um rei. É crime, é praticar atos desviando de sua finalidade o viver em comum.

O corrupto não é ladrão: ele mata e mutila vidas


Segundo: na América Latina nos acostumamos ao patrimonialismo, uma das versões ibéricas do que hoje chamamos corrupção. Consiste em o governante tratar a coisa pública como se fosse seu patrimônio privado. Toda confusão do público e do privado, quando favorece o detentor do poder político, vai dar em patrimonialismo. Por exemplo, se um governante usa os carros oficiais para transportar familiares (a não ser que haja razões claras, consensuadas, de segurança para tal). Nossos governadores e presidente, que moram em palácios e não gastam nem com a comida ou a roupa, dão exemplo disso. Mas este é só um detalhe.


Porque, terceiro: não é verdade que "somos todos corruptos". Não somos, não. Estou convencido de que a grande maioria é honesta. Não vamos desresponsabilizar os corruptos por sua corrupção dizendo que ela pertence à "cultura brasileira". Nossa sociedade pode ser um tanto leniente com isso, mas mesmo isso está mudando. Já comentei aqui a modelo que contou à "revista Trip" que usava sua beleza para não levar multas dos guardas. Falou isso num tom de flerte, mas mesmo assim os leitores caíram matando. Nossa leniência diminuiu muito, e isso é ótimo. Também temos mais informações sobre desvios de dinheiro, além de menos tolerância por isso.


Quarto, talvez mais importante: não é verdade que todos os atos de corrupção se equivalem. Sim, é errado agradar o policial ou o atendente, mas montar um "clube" para furtar centenas de milhões de dólares da Petrobras é coisa muito diferente. Não é apenas uma questão de tamanho. É uma diferença de concepção. Os pequenos erros morais de cada dia não estão na mesma lógica do assalto organizado aos cofres públicos. Precisamos desenvolver este ponto. Suponho que a lógica seja a inversa: não é porque vários corrompem policiais que uns pouquíssimos atacam o erário público. Talvez seja porque esses pouquíssimos roubam tanto que aqueles outros perdem a crença na honestidade, na decência. O que inspira uma cultura ampliada de desistência do bem comum é o mau exemplo dos poucos.

Mas, mais que isso, penso que um grande desafio à ética é: em que a roubalheira dos grandes se distingue dos pecadilhos dos pequenos? Eu mesmo, por enquanto, não tenho resposta completa, e lanço este desafio aos colegas que também trabalham com a ética. Mas penso que precisamos distinguir o furto do bem privado e o desvio do bem público. A ideia de que o corrupto é "ladrão", tão pertinaz em nossa sociedade, se inspira na sua comparação com quem furta indivíduos. Mas as vítimas do corrupto não são individuais, são a sociedade inteira. Daí que, talvez, seja mais correto pensar que eles não se limitam a furtar dinheiro (no caso, público), mas - acima de tudo - impeçam o bom uso desse dinheiro, por exemplo, em saúde, educação, outros serviços essenciais. Impedem que doentes sejam salvos, em hospitais que não deixaram existir ou funcionar. Impedem que crianças e adolescentes sejam educados, em escolas que devido a eles não existem ou não funcionam. Seu crime é contra a vida, que eles abreviam ou mutilam. Abreviada, a vida dos que morrem antes da hora. Mutilada, a dos que vivem mal. Por que não considerar assassinos os corruptos? Pelo menos, no nível simbólico.

Talvez por isso, faça sentido a reforma legal que, na esteira das manifestações de 2013, tornou hediondo o crime de corrupção. Voltarei a este tema no futuro, mas observo que o hediondo, propriamente dito, é uma pessoa ver o sofrimento de outra e ser indiferente a ele, ou até sentir prazer graças a ele. Isso é desumano. Isso é desumanidade. Mas isso só acontece em alguns crimes presenciais - geralmente, crimes cometidos por pobres. Ora, a corrupção é um crime não-presencial; mais que isso: indireto, abstrato. O corrupto não vê a sua frente as crianças desnutridas, as pessoas miseráveis porque privadas de educação, os mortos de doenças curáveis que são vítimas da corrupção. Por isso, a rigor, seu crime não é hediondo.

Mas ele mata mais, muito mais, que o pé de chinelo enlouquecido pela falta de oportunidades e sobra de drogas. O corrupto provavelmente teria pena de sua vítima se a visse, até porque ele não atira nem apunhala. Ele não mata com seus atos, mas com sua omissão. É omitindo comida, remédios e educação que ele chacina. Mas não será um sinal de nosso desenvolvimento moral começarmos a chamar de hediondo também esse tipo de atitude, em que a pessoa pode até ser caridosa no micro, mas - no macro - destrói a república e mata ou mutila vidas?


Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. 
E-mail: rjanine@usp.br


domingo, 23 de novembro de 2014

Luz fria - Martha Medeiros

ZERO HORA 23/11/2014

Resisti enquanto pude. Fazia estoque de lâmpadas incandescentes em casa. Quando já não encontrava as de 100 watts, comprava as de 60. Se não tinha num supermercado, buscava em outro. Batia ponto em casas de ferragens, dava incertas em lojas de luminárias, enfim, uma perseguidora incansável das lâmpadas incandescentes.
Enganando a mim mesma, claro. Se a imprensa não parava de avisar que as lâmpadas incandescentes estavam sendo substituídas pelas fluorescentes, mais compatíveis com o projeto de eficiência elétrica nacional, por que eu não me rendia de uma vez? É que, dependendo da situação, é mais cômodo se fazer de desatenta.
Só que chega o dia em que cansa lutar contra. Essa semana, interrompi minha resistência à novidade, resolvi sucumbir. Comprei uma lâmpada fluorescente para o abajur do meu quarto. Na verdade, tenho dois abajures no quarto, um em cada lado da cama. O que está do meu lado ainda possui uma lâmpada das antigas, amarelada, acolhedora. Como a do lado oposto havia queimado, resolvi trocar por esta nova, econômica, durável, sensacional. Devidamente atarrachada, acendi ambas para ver se havia diferença mesmo.
Que choque.
Sei, não é um conflito, um problema, uma catástrofe, nada disso. Estamos falando de lâmpadas, um troço banal. Porém menos banal para mim, que sou dependente de luzes indiretas.
Viciada em abajur, admito. Não suporto luz vinda do teto, excessiva, invasiva, desumana. Eu preciso de clima, de aconchego, de atmosfera. Poderia cultivar um luxo mais besta, mas cultivo este, que é reles. Eu gosto de luz poética, cálida, que me faça sentir em casa, e não num escritório.
As lâmpadas fluorescentes oferecem uma luz branca, racional, uma luz para pessoas jurídicas. Por que devo me conformar? Eu sei, eu sei, é preciso pensar em economia e durabilidade, mas poxa, eu trabalho tanto, gostaria de continuar arcando com o pequeno luxo de uma luz que me acarinhe, que me romantize, que me faça sentir num filme francês. No entanto, mesmo que eu reclame para o bispo, nada mudará. É preciso pensar na coletividade. Não resta opção. As lâmpadas incandescentes foram retiradas do mercado. Tudo pela melhora da qualidade de vida, por um mundo mais sustentável. Desisto.
Uma vez escrevi uma crônica chamada “Melhorar para pior”. Dei vários exemplos: balneários com estradinha de chão batido x balneários asfaltados, cadeiras de palhinha x cadeiras de acrílico, pousadas rústicas com o namorado x resorts all inclusive com a família. Não falei de lâmpadas, na ocasião, porque o assunto não estava em pauta, mas agora o século 21 completou o serviço da modernidade. Adeus às lâmpadas arcaicas, o momento é das lâmpadas inteligentes.

Sinceramente? Tenho vontade de parar o tempo. Evoluir é muito frio

Exagero - Eduardo Almeida Reis

Se cada conselheiro do TC-RJ pode contratar 20 funcionários, que lei impede o conselheiro Júlio Rabello de contratar a linda Alessandra Pereira ?

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 23/11/2014 

Às oito da noite de 20 de outubro passado, em Moscou, a sensação térmica era de três graus abaixo de zero: vi na TV. Suponho que em dezembro de 1827 a sensação térmica em Yasnaya Polyana tenha sido de 40 graus negativos. Presumo que Maria Nicolaevna, princesa de Volskonsky, estivesse num quarto dotado de imensa lareira, quando se entregou, aos gritos de “me bate!”, “me mata!”, em russo escorreito, a Nicolas Ilyitch, conde de Tolstói, na bela casa hoje transformada em museu.

Daquela noite de amor nasceria, em 9 de setembro de 1828, o menino Liev Nicolaevitch, futuro conde de Tolstói, considerado um dos maiores escritores de todos os tempos, se bem que meio exagerado quando escreveu no alfabeto cirílico: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

Pelo visto, o menino nascido em 1828 era excessivo. Não é preciso pintar toda uma aldeia, basta pintar um quarteirão. Hoje, que temos edifícios, basta pintar um prédio de 10 andares para constatar a universalidade da maluquice humana, da maldade, de tudo de ruim que nossa espécie é capaz de fazer.

Implicância

Penso que a imprensa deve parar de implicar com as pessoas e as instituições deste país grande e bobo. Quem foi que disse que lei que proíbe ilustre conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro e sua digna esposa façam exercícios calistênicos, pratiquem a calistenia em domicílio? Se até o sexo lhes é facultado, por que, diabo, não podem fazer ginástica?

E tem mais uma coisa: se cada conselheiro do TC-RJ pode contratar 20 funcionários, que lei impede o conselheiro Júlio Rabello de contratar a linda Alessandra Pereira Evangelista, professora de educação física, como assessora de seu gabinete, ganhando R$ 9.547,68 mensais?

O fato de a professora Evangelista jamais ter frequentado o TC-RJ, que nem sabe onde fica, é irrelevante. O comparecimento de um funcionário pode ser espiritual, sem a chatura presencial das idas ao Tribunal, que servem apenas para complicar o trânsito do Rio. Em sua defesa, deve ser dito que comparecia diariamente à casa do conselheiro para orientar a calistenia do casal. Exercitado, o ilustre conselheiro tem condições de trabalhar mais e melhor na fiscalização das contas do RJ, segunda economia do Brasil.

Fosse desonesto como aquele conselheiro do TC-SP, Rabello teria uma porção de propriedades de muitos milhões de reais, supõe-se que pela venda de votos no Tribunal. E poderia pagar do seu bolsinho mais que R$ 300 por dia à professora de ginástica. Honestíssimo, empregou-a no Tribunal e vem sendo criticado, quando só queria que o povo pagasse pela sua calistenia.

Facilidade
É muito fácil administrar os Estados Unidos, o Canadá e toda a Europa a partir dos estúdios da GloboNews na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Tenho acompanhado muitos dos seus programas e constato que os seus jornalistas, quase todos, sabem o que deve ser feito pelos dirigentes da Europa, do Canadá e dos Estados Unidos. Só não sabem o que deve ser feito no México, país meio complicado, democracia com dezenas de milhares de cidadãos decapitados pelos traficantes, sem falar dos 43 estudantes recolhidos pelos carros da polícia, que por lá se pronuncia “policía”: “cuerpo encargado de velar por el mantenimento del orden público y la seguridad de los ciudadanos, a las órdenes del orden de las autoridades políticas.”

Se a segurança dos cidadãos depende do sumiço de dezenas de estudantes, que desaparecem por ordem das autoridades políticas, é hora de consultar o comentarista internacional da GloboNews, cavalheiro que transporta brinquinhos de ouro no lóbulo da orelha esquerda. Que diabo pensará da vida e da política internacional um jornalista brincado? Houve tempo, na roça brasileira, em que vaca brincada (dotada de brinco de plástico numa orelha) valia mais que vaca sem brinco. De repente, o jornalismo televisivo vai pelo mesmo caminho.

O mundo é uma bola

23 de novembro de 1891: o almirante Custódio de Mello, na Primeira Revolta da Armada, ameaça bombardear o Rio de Janeiro, forçando a renúncia do presidente Deodoro da Fonseca. Em 1913, fundação da primeira universidade tecnológica do Brasil e décima escola de engenharia, a Universidade Federal de Itajubá, MG. Em 1925, o jornal português O século desperta para os negócios do falsário Alves dos Reis, história deliciosa que não cabe neste espaço. Artur Virgílio Alves dos Reis (1898-1955) foi, possivelmente, um dos maiores falsários do mundo e liderou a maior falsificação de notas de banco da história: as notas de 500 escudos com a efígie de Vasco da Gama.

Em 1944, Leopoldina Ferreira Paulo obtém o primeiro doutoramento de mulher em Portugal, pela Universidade do Porto, com a tese Alguns caracteres morfológicos das mãos dos portugueses. É o que vivo repetindo: se a gente deixar, elas tomam conta. Hoje é o Dia do Engenheiro Eletricista.

 Ruminanças

 “A mulher é coisa gárrula e falaz/Quer e desquer: é louco o homem que nela confia” (Tasso, 1544-1595).


Ao poeta - Regina Teixeira da Costa

EM DIA COM A PSICANÁLISE » Ao poeta


Regina Teixeira da Costa
Estado de Minas : 23/11/2014 



Um grande pesar para os amantes da poesia foi a partida do querido poeta Manoel de Barros. Como um último encontro e adeus fez-nos revisitar seus poemas e reviver a emoção exalada deles. O frescor da natureza saído das palavras, a árvore, a pedra, o estilo de escrever sobre o nada e quase nos transportar à materialidade da terra molhada sob os pés, aos brejos e coaxar de sapos.

Tudo isso demostra a extraordinária relação entre o poeta e a palavra. Como ele próprio afirmou (Coleção AmorÍmpar. Caderno 1, Editora UFMG, 2009): ‘‘Estou condenado a me ser em cada palavra. Penso que fugir disso é liberdade. Mas logo penso que é suicídio. As palavras me controlam. Se passo por elas, me chamam. Se passo, me possuem. Quem guarda a poesia em qualquer lugar e em qualquer tempo é a palavra. Não é o amor, não é dor, não é a flor. Mas é a palavra’’.

Essa coleção delicada tem projeto gráfico de Maria José Vargas Boaventura em parceria com a professora de literatura da UFMG Lúcia Castello Branco, que a descreve como produto de uma relação com o poeta desde 1982, seguida de correspondência e uma amizade que mantiveram por laços de letra, e não só. Desde então, trocaram cartas, originais, livros, ideias, projetos como este Caderno 1.

O poeta condenado à palavra apenas desejava escutar o equilíbrio sonoro das letras, das sílabas, das palavras, das frases sem a boa razão. Tudo tudo nada. Apenas jogo das palavras. E esse jogo captura tantas pessoas, que fez com que muitos condenados à imperfeição da linguagem para descrever o real também as tomassem para si.

E é por isso que tantos choram essa perda. Perdemos um homem capaz de dizer do nada coisa nenhuma e, ainda assim, trazer o consolo da palavra escrita em papel com lápis e borracha, como disse Barros. Só conseguia escrever assim materializando as palavras que o apaixonavam em manuscritos, fazendo-as um objeto grafado apesar da leveza e fluidez que nelas experimentamos. O poeta viverá para sempre em seus versos e em nossa grata lembrança pela simplicidade revalorizada em versos.

Trago agora ao leitor, para fazer reviver mais um pouco do poeta, algumas de suas palavras e um pouco de seu humor.

“Escrevo o idioleto manoelês archaico (idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e as moscas). Preciso de atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável do que o solene (para limpar das palavras alguma solenidade – uso bosta). Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de cerebral nos meus escritos é apenas uma vigilância, para não cair na tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão.”
“O que não sei fazer desmancho em frase./ Eu fiz o nada aparecer./ (Represente que o homem é um poço escuro./ Aqui de cima não se vê nada./ Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver/O nada.)/ Perder o nada é um empobrecimento.”

Perder Manoel de Barros também.

Inspirada certamente pelo poeta Manoel de Barros, chega às livrarias dia 29 o livro de Flávia Naves, O florarvorarse.