sábado, 6 de setembro de 2014

A força da escrita - Antonio Candido

Obra-prima de Dyonélio Machado, Os ratos atravessa gerações de leitores mantendo o vigor de sua narrativa tensa e soturna. O gaúcho descreve o drama de um chefe de família sem dinheiro

Antonio Candido
Estado de Minas: 06/09/2014



       (Ênio Squeff/reproduções)
Ilustrações de Ênio Squeff para a edição de Os ratos publicada pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil
Ilustrações de Ênio Squeff para a edição de Os ratos publicada pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil


A história d’Os ratos foi curiosamente deformada no correr do tempo. Já li, inclusive em dicionário de literatura, que recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, o que não é certo, embora o próprio autor o tenha dito em depoimento a Fernando Paixão, incluído numa edição Ática de seu livro. Mas o depoimento é de 1981, quando Dyonélio Machado tinha 86 anos, idade na qual é frequente baralharmos as lembranças. O prestigioso galardão acadêmico, concedido a conjunto de obra, contaminou a identidade do que ele recebeu, alterando os fatos, que são os seguintes.

Em 1934, a Companha Editora Nacional ofereceu um prêmio para o melhor romance inédito, apresentado com pseudônimo, e foi este que lhe coube, como se pode ver, melhor do que pelas minhas, pela respectiva ata, que transcrevo segundo a revista Boletim de Ariel, ano IV, número 11, agosto de 1935, página 296: “O júri permanente do Grande Prêmio de Romance Machado de Assis, instituído pela Companhia Editora Nacional de São Paulo e patrocinado pela Associação Brasileira de Imprensa, reunido hoje na redação do Boletim de Ariel, manifestou de início a sua grande mágoa pelo falecimento do inesquecível companheiro Ronald de Carvalho, e decidiu juntar a importância de 2:000$000 (dois contos de réis), correspondente à Menção Honrosa, à de 10:000$000 (dez contos de réis), correspondente ao prêmio, e dividir o conjunto em quatro prêmios iguais de 3:000$000 (três contos de réis), cada um, a serem conferidos, dentre os 66 originais apresentados, aos quatro seguintes, por julgá-los em igualdade de condições quanto ao mérito literário: Música ao longe, de José Fernando (pseudônimo de Érico Veríssimo); Totonho Pacheco, de Filocteto Teles (pseudônimo de João Alphonsus Guimarães); Romance branco, a sair com o título de Marafa, de José Maria Nocaute (pseudônimo de Marques Rebelo); e Os ratos, de B. Felipe (pseudônimo de Dyonélio Machado)”.

Na notícia, a revista dizia que três dos autores já eram “de nomeada” e que havia “um novo romancista cheio de qualidades, Dyonélio Machado”. Louve-se a comissão, não apenas por ter sabido fazer justiça a quatro livros bons, mas por ter discernido o valor de um estreante desconhecido. Os quatro romances foram de fato editados pela Nacional, com capas uniformes, de cor amarelo-pálido, enquadradas por filetes escuros, tendo na parte inferior uma pequena vinheta com a efígie de Machado de Assis. Note-se que o romance de João Alphonsus saiu com o título retificado: Totônio Pacheco em vez de Totonho Pacheco”.

Cidade inóspita

O êxito desses livros foi apreciável no mundo literário bem mais acanhado daquele tempo, e Dyonélio se consagrou. Passados quase 70 anos, a decantação efetuada pelo tempo não desvalorizou os outros, mas mostrou que o seu livro era o mais importante, revelando alguém capaz de atravessar a fronteira dos moldes vigentes por meio de um aprofundamento do realismo.

Psiquiatra acostumado a sondar a alma e a analisar os vínculos entre a mente e o mundo, Dyonélio publicaria neste sentido, alguns anos depois, O louco do Cati, mas tanto este quanto outros que o seguiram não modificaram a certeza de que Os ratos é a sua obra-prima.

Para começar, é dos poucos romances brasileiros cuja ação decorre em um só dia, o que pressupõe grande concentração fabulativa. Comparada às dos três outros romances premiados, a atmosfera deste é sombria, desprovida de qualquer amenidade, ao contrário do andantino de Música ao longe ou da naturalidade enxuta, mas humorística de Marques Rebelo e João Alphonsus. Aqui não há graça nem riso, não há paisagem repousante nem divagação.

A narrativa soturna, tensa, prosaica segue a jornada de um chefe de família sem dinheiro, pequeno funcionário público boiando na indiferença de uma cidade inóspita. Ele sai cedo à busca desesperada de uma soma sem cujo pagamento o leiteiro cortará o fornecimento, porque não pode mais tolerar o atraso. O dia corre, as pessoas perpassam ou se demoram, fecham-se, desviam-se do peregrino à busca de socorro – e nada. Até que, no limite do desespero, uma combinação esperta de amigos igualmente à beira da penúria lhe permite arranjar o dinheiro que pagará o leite do filho. É, sem dúvida, uma suspensão da pena, que não o livrará da necessidade extrema e serve apenas para resolver o problema do dia.

Dilaceramento
Raras vezes na literatura brasileira a prosa de ficção foi capaz de criar uma tensão e um dilaceramento tão pungentes quanto os que compõem o tecido desse relato desprovido de sentimentalismo, uma espécie de pequena tragédia ordenada à volta de miudezas sem relevo. Rara também é a maestria com que o autor elabora um relato no qual se combinam a minúcia realista com certas áreas de indeterminação, com retrospectos e impressões escorregadias que nos fazem sentir as vacilações e as confusões do protagonista. Isso é devido, com certeza, ao fato de Dyonélio Machado usar a terceira pessoa de um modo que parece frequentemente deslizar para o monólogo interior de uma primeira pessoa nela incrustada. De tal modo que o estrito realismo se combina aos labirintos do fluxo de consciência.

Além desse dom de conferir tonalidade subjetiva a um discurso voltado para o registro minuciosamente objetivo da realidade, é também singular que a minúcia implacável da relação não produza qualquer monotonia. Parece que Dyonélio Machado efetua uma espécie de redenção da aparente insignificância desse mundo onde tudo é pequeno, rasteiro, sem um momento de grandeza ou de poesia.

Os sentimentos corriqueiros ligados à angústia econômica, ao medo, à expectativa frustrada, à insensibilidade, à esperteza se articulam com um ambiente cujos elementos não parecem peças de cenário, mas entidades vivas na sua insignificância transfigurada pela literatura. Assim, as ruas, as casas, as janelas marcadas pela sombra e pela luz, os cafés, as xícaras, os guichês adquirem uma força de vida que os extrai da condição material para torná-los realidades coextensivas aos pensamentos, aos sentimentos, às falas.

Realista cheio de fantasia, narrador objetivo capaz de sugerir o imponderável devaneio e o cruzamento de percepções, Dyonélio Machado revela-se neste livro um escritor situado além dos hábitos literários do momento em que escreveu. Assim foi que conquistou pela força da escrita e da concepção a durabilidade que faz uma obra atravessar as gerações de leitores.


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Gaúcho militante


 (PUC/SP)


O gaúcho Dyonélio Machado (1895-1985) foi romancista, contista, ensaísta e psiquiatra. Em 1923, publicou o ensaio Política contemporânea: Três aspectos. Em 1927, Dyonélio (foto) estreou na literatura com o livro de contos Um pobre homem. Em 1934, escreveu o romance Os ratos, lançado em 1935, ano em que foi preso por suas posições políticas. Na cadeia, o escritor aderiu ao Partido Comunista. Machado se elegeu deputado constituinte em 1947. Cassado, afastou-se por duas décadas da carreira política e do mercado editorial, dedicando-se à medicina e a escrever romances. Apenas em 1966, com a reedição de Os ratos, o gaúcho voltou à cena literária.

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