sábado, 9 de agosto de 2014

O poder da escrita

O poder da escrita

Livro de minicontos de Maria Lúcia Simões se destaca pela sensibilidade apurada e pela qualidade da linguagem na expressão dos estados de alma


Fábio Lucas
Estado de Minas: 09/08/2014




Maria Lucia Simões instiga o leitor com enredos fragmentários, que desafiam a interpretação     (Arquivo pessoal)
Maria Lucia Simões instiga o leitor com enredos fragmentários, que desafiam a interpretação


O primeiro atributo dos relatos enfeixados em Contos de passagem, de Maria Lúcia Simões, constitui a criação de um vasto panorama de lembranças, evocações e fantasias regidas pela atmosfera poética.

Os conteúdos se sucedem desordenadamente. Compreendem desde a mais remota e tenra infância até a experiência amorosa.

E a forma transcende o modelo narrativo, marca a presença de uma escrita de quem o escrever é prática de todos os dias, é conquista da arte e da reflexão. Enfim, é criação literária, fruto obtido do estudo e do saber, perpassado pela acurada sensibilidade.

Nos Contos de passagem distribuem-se emoções passadas, tangidas pela nostalgia dos dias felizes. Mais agudos são os gritos dos desejos sufocados, sob o impulso da aventura. Mais aquecidas, ainda, são as fúlgidas aparições do inconsciente, libertas afinal dos controles do universo das relações. O súbito apelo do amor, sob mil disfarces.

O mais importante vem a ser a linguagem, produto de alta qualificação. Destila significados plurais, é polissêmica. Conduz o medo e a esperança que se ocultam na harmonia das palavras.

O tema do trecho “Acontece” conclui-se ao jeito de Maria Lúcia Simões: “Agora sei que tudo, assim como as pessoas e as esquinas, pode resvalar para o inesperado” (p. 55).

Há três janelas no conjunto de Contos de passagem. Uma permite a leitura, pela autora, do mundo e de seus valores. A outra dá acesso ao mundo interior, pleno de sugestões rememorativas. A terceira pertence ao leitor, apto a desvendar o inconsciente que, por exemplo, intervém no capítulo “Natureza” e introduz a desgarrada mensagem final: “Amor nunca foi fácil” (p. 125).

Esse e os outros fragmentos ficam à disposição do intérprete, campo livre, desafiador. A atmosfera lírica constitui um mar sem praias. A obra constitui um primor gráfico, enriquecido com imagens ilustrativas de Marcelo Drummond e Marconi Drummond. Confessional, a obra ajuda a dar sentido à vida da autora e estimula a intenção investigativa do leitor.


Três contos


A pensão
A pensão é antiga. Parece ter nascido do chão como nasce capim. Existe há tanto tempo que do começo não se tem notícia. Na fachada, sete janelas e uma porta pintada de azul. Depois do jantar, as cadeiras descem para a calçada com as almofadas de algodão alvejado. A mãe assenta-se entre as vizinhas, e confere, com a ponta do olho, as 12 filhas e os hóspedes. As criadinhas espiam escondidas atrás das vidraças. Esperam o sinal: servir café e esquentar a conversa. Aos sábados, a pensão é o baile. Comparece a cidade. A mãe preside a dança das filhas, o rosto severo. Sob a saia engomada, a biqueira do sapato desmente, ligeira, marcando o passo. A música é a única delicadeza.

Madrugada
Meu avô Romualdo Prados tinha olhos azuis e, no peito, uma fogueira que se acendia assim em meio ao silêncio da prosa. Então ficava inquieto, achava de inventar viagem, um desejo sem freio do galope, saía à caça sem pedir licença. Mas voltava. Debaixo do paletó de brim, da camisa e da pele suada, pulsavam-se as histórias; ainda hoje, às vezes, quando acordo e a manhã é uma festa de cantos e de galos, e sei que há vento sobre as copas das árvores, cavalos encilhados e sol pelos quintais, seu nome reverdece em mim.

A louca
A louca franze a cara, careteia, penteia sobre os olhos os noturnos cabelos, canta de madrugada uma cantiga simples e pensa que com ela pode acordar o mundo. Perde o olhar em distâncias, o riso vazio, cumpre a pena de existir. Ontem, dormiu na calçada entre as pedras. Hoje, deitou-se em lençóis de água e nuvens. Amanhã, sentada no trono da loucura, será rainha. Sombria e só.

Contos de passagem

De Maria Lúcia Simões
Editora Baobá, 154 páginas

. Fábio Lucas é escritor e crítico de literatura.

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