sábado, 2 de agosto de 2014

"O outro é um espelho" - Gracie Santos

"O outro é um espelho"
Paulo André se destaca por sua atuação no longa O homem das multidões. Ator do Galpão, ele se entrega totalmente a todos seus personagens 
 
Gracie Santos
Estado de Minas: 02/08/2014


Paulo André levou para as ruas do Centro da capital a personalidade contida, silenciosa e solitária de Juvenal  (Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
Paulo André levou para as ruas do Centro da capital a personalidade contida, silenciosa e solitária de Juvenal

Ainda bem que o palco sempre tem papéis para avozinhos, pois Paulo André, de 51 anos, ator do Galpão, em cartaz também no cinema em O homem das multidões, não pretende se aposentar nunca. Feliz com as duas décadas completadas este ano na companhia de teatro mineira e com a repercussão positiva da crítica que o filme vem tendo, pede “que as pessoas deixem um pouco a TV de lado e deem uma chance ao cinema brasileiro, prestigiem o longa, para que ele seja sucesso também de público.” E como está longe de representar os tais velhinhos, Paulo percorre o país com o Galpão em O gigante da montanha.

Depois das filmagens de O homem das multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes, no Centro de BH, em dezembro de 2012, o ator contabiliza mais de 100 apresentações na turnê do grupo. A companhia é, aliás, pródiga em permitir que os integrantes conciliem carreiras paralelas. “O sentido de coletividade é forte quando se tem individualidades potentes, com pensamentos distintos”, argumenta. Paulo considera bonito no teatro o fato de o ator se ver quando está aberto para o outro. “O outro é nosso espelho. Vem no olhar dele quem eu sou.”

Ensaiar é uma coisa que ele adora. E foi o que fez durante um mês antes de gravar O homem das multidões. “Como linguagem para o ator, o cinema é um trabalho completamente diferente. O alvo é outro. Mas foi tudo muito ensaiado”, conta. Preferiu não ficar assistindo às cenas para conferir o resultado enquanto filmava. Pautou-se pelo olhar dos diretores, aos quais não poupa elogios. “Marcelo gosta e entende do ofício. Ele e Cao querem contato com os atores, muitos não são assim”, afirma.

Lacônico A televisão é um veículo que Paulo André gostaria de experimentar, pelo fato de ser extremamente curioso. “É um trabalho muito ágil, gostaria de ver como funciona”, confessa. Para assistir, prefere o que sai do convencional e está satisfeito com o que vem ocorrendo hoje, principalmente na TV aberta, com várias produções interessantes. Incansável, ele está pronto também para fazer mais filmes. “Adorei me ver no cinema. O personagem foi um grande presente de Cao e Marcelo. Ele é lacônico quando todo mundo tem uma opinião para dar. O filme não julga personagens, nem a solidão. Juvenal e Margô são solitários sem culpa, não são depressivos. Ele talvez mais inerte que ela, mas acaba aceitando a interferência da moça em sua vida.”

Crítico do “mundo distópico no qual todos vivem o big brother de George Orwell (do livro 1984)”, o ator acaba de ler Nós, romance de 1926 do russo Yevgeny Zamyatin sobre uma sociedade em que as pessoas vivem em casas de cristal para ser vigiadas. “Não quero isso para mim, um mundo de superfície, em que as relações deixam de ser relações”, afirma. No mundo entregue às câmeras, Paulo André garante não ter nada contra as novas tecnologias. Ele não vê problemas nos aparelhos e ferramentas, mas em certos tipos de usuários. O ator acredita que as pessoas estejam buscando “migalhas de afeto”. E na sociedade que prega corpo sarado e a juventude eterna, Paulo André prefere trabalhar o desapego com o visual (“só não abro mão dos meus dentes”, brinca). Pode ser visto de cabelão ou com a cabeça raspada, não importa. Ele acha horrível homens grisalhos pintarem os cabelos, mas pode ter que ceder no caso de algum personagem exigir. Também é avesso a plásticas, “que tiram do rosto as rugas e escrevem na testa do infeliz: ‘Sou velho’”.


Sonho e resistência





 (Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

Representar faz parte da vida de Paulo André desde a infância. Ele e os quatro irmãos (é o do meio) cresceram em Itabirito (a 55 quilômetros de BH) fazendo encenações da semana santa. Filho de dona Rosa Maria (hoje com 76 anos) e do senhor Laércio (com 80), ele conta que teve uma infância “bem fantasiosa” na cidade natal. A arte rondava a família Souza, que morava ao lado da igreja e era extremamente católica. Tia Rosita cantava ópera; o avô Jaime dirigiu o filme Caraça: a porta do céu, mas a grande influência para a carreira veio de Dute, apelido do irmão Antônio Augusto. Um ano e um mês mais velho que Paulo, Dute gosta de ler e ouvir óperas. “Sempre admirei o talento dele (hoje professor de português)”, confessa o ator.

Se na infância o gosto pela representação era visto como natural pela família, o mesmo não ocorreu quando ele decidiu deixar a faculdade de nutrição, em Viçosa, depois de ter feito o curso técnico de patologia clínica da Utramig, em BH. Paulo André se mudou para BH em 1977, para cursar o ensino médio. Morou em república e conheceu um mundo novo. “Vivíamos em plena ditadura, meu pai tinha horror de Caetano Veloso e de minhas tias hippies, que poderiam nos influenciar. Foi na cidade que tive contato com a juventude desvairada.”

A convite de Telmo Lins, cursou a oficina de teatro de Pedro Paulo Cava, em 1983. “Foi sopa no mel, o teatro fervilhando como ato político de resistência”, conta, lembrando-se que era da turma de Marcelo Castilho Avellar e Andréa Garavello. Foi aluno de Luciano Luppi e Fernando Limoeiro. Com Carmem Paternostro viu a outra face do teatro, menos romanceada. “Conheci Brecht, Beckett, o teatro físico. Ela deu um nó do bem na minha cabeça”, diz. Estreou com o grupo Experimentando Palco com a peça Duas histórias para rir e uma para pensar. Em 1991, fez Dois idiotas assentados cada qual no seu barril, texto de Ruth Rocha e direção de Kalluh Araújo. Fracasso de público, sucesso de crítica, a peça deu a Paulo o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).


Tranquilo “Quem trabalha em teatro é meio sem raça, mais permissivo, mais tranquilo. Acho que a gente lida tanto com o fracasso que não tem o nariz empinado. Teatro não é como artes plásticas, você não sobrevive sozinho. É arte essencialmente de equipe. Até num monólogo você precisa do outro”, analisa o ator, que hoje vê as artes cênicas em momento diferente. “Mudou o miserê da década de 1980. Bem ou mal, temos uma lei que nos permite fazer teatro. Antes éramos apenas loucos”, confessa. O miserê dele terminou há 20 anos, quando entrou para o Grupo Galpão, em 24 de fevereiro de 1994, exatamente no dia de seu aniversário.

Tinha 11 anos de carreira quando foi convidado para ser assistente de direção de Gabriel Vilella na montagem de A rua da amargura. Acabou sendo convidado para atuar. “Chico Pelúcio me avisou que o contrato era apenas para aquela peça. Foi o único que assinei na minha vida. A montagem foi sucesso e acabei entrando para o grupo. O Galpão foi minha verdadeira escola”, diz, elogiando os companheiros e diretores como Paulo José e Cacá Carvalho, que trabalharam com a companhia mineira.

No grupo, Paulo André vem participando de várias montagens não apenas como ator, mas na assistência de direção e figurino. No cinema, fez os longas Fronteira (2006), de Rafael Conde, e Moscou (2009), de Eduardo Coutinho, além de alguns curtas. Certamente, seu desejo de fazer muito mais vai se realizar. E, depois de tudo, dona Rosa Maria e seu Laércio estão orgulhosos da carreira do filho. Só não assistiram a O homem das multidões porque estreou quinta. Mas estão convidados.

Fique ligado
O Homem das multidões
» De Marcelo Gomes e Cao Guimarães, com Paulo André, Sílvia Lourenço e Jean-Claude Bernardet.
. Belas 3, 18h, 19h50, 21h40

Palavra de especialista

Marcelo Gomes - diretor
Olhar profundo


Fizemos testes com várias pessoas, queríamos um mineiro para dar tom local ao Juvenal de O homem das multidões. Tinha que ser alguém silencioso, que falasse com os olhos. Quando o Paulo André chegou, eu e Cao (Guimarães) deixamos a câmera em cima da mesa gravando. Depois, assistimos e ficamos impressionados com a profundidade do olhar dele, muito cinematográfico. Antes de gravar, andamos muito pelo Centro de BH para sentir como o personagem via a cidade. E foi muito interessante porque Paulo é morador da região e nos disse que a sua compreensão dali mudou depois do filme. Ele é muito sensível, inteligente, aberto. Mesmo que tenhamos ensaiado muito houve momentos em que mudamos tudo e Paulo teve muita agilidade. Foi muito dedicado. Desejo longa carreira para ele no cinema.

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