domingo, 10 de agosto de 2014

Fios da história - Ana Clara Brant

Fios da história A dança dos bonecos, de Helvécio Ratton, é um marco no cinema infantojuvenil brasileiro. Produção, que em breve completa 30 anos, foi feita com participação do Grupo Giramundo


Ana Clara Brant
Estado de MInas: 10/08/2014

Estudos de Álvaro Apocalypse para os bonecos exigiram bom gosto, humor e criatividade na busca de soluções técnicas.  (reproduções: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Estudos de Álvaro Apocalypse para os bonecos exigiram bom gosto, humor e criatividade na busca de soluções técnicas.


Bastidores da criação


O Estado de Minas inicia série que conta como foram realizadas algumas das mais importantes obras da cultura mineira e brasileira. As reportagens vão mostrar a gênese da ideia, as curiosidades da produção, as dificuldades enfrentadas pelos realizadores e o legado para a arte nacional. O passo a passo de obras-primas do cinema, da música, da dança, da literatura e do teatro.

Storyboard de Álvaro Apocalypse e Helvécio Ratton para uma cena do longa-metragem
 (Quimera/Reprodução
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Storyboard de Álvaro Apocalypse e Helvécio Ratton para uma cena do longa-metragem


Diamantina, fevereiro de 1984. O diretor mineiro Helvécio Ratton estava passando o carnaval na terra de Juscelino Kubitschek e Chica da Silva e ficou encantado não só com a folia, mas com a região. E sobretudo com um lugarejo: Biribiri. “Aquela cidadezinha abandonada parecia um cenário. Fiquei com aquilo na cabeça e me veio a ideia de escrever um roteiro para um filme. Imaginava uma trupe chegando e uma coisa foi puxando a outra”, lembra o cineasta.

Nascia ali um dos mais originais e premiados filmes infantis do cinema brasileiro: A dança dos bonecos, que conta a história de três bonecos que ganham vida e começam a dançar depois de banhados com as águas de uma cachoeira encantada por Iara (Divana Brandão), a entidade protetora dos rios e dos lagos. Mas o perverso Mr. Kapa (Wilson Grey) quer roubar os bonecos de sua dona, a menina Ritinha (Cíntia Vieira), para ganhar dinheiro com eles.

Faltando dois anos para A dança dos bonecos completar três décadas de lançamento, Ratton faz uma viagem no tempo e adianta que tem o desejo de lançar o filme em DVD para celebrar a data. “A cópia original está em São Paulo e precisa de restauração. O longa chegou a ser lançado em vídeo pela Globo Filmes, mas esgotou. O produtor está correndo atrás disso, para transformá-lo em DVD. Muita gente me cobra. A dança dos bonecos marcou uma geração que está na faixa dos 30, 35 anos. Fiquei sabendo outro dia que é um dos campeões de pirataria no Rio de Janeiro e é vendido em vários lugares no mercado negro da cidade”, conta o diretor.

Voltando à gênese do filme, assim que Helvécio Ratton deixou o velho Tijuco e retornou a Belo Horizonte, a produção foi tomando corpo. O cineasta queria um carro que se transformasse em palco ambulante. Entrou em contato com o músico e colecionador de veículos antigos Pacífico Mascarenhas e conseguiu um caminhão Ford 1936, que praticamente se tornou um dos personagens. O caminhãozinho, que, inclusive, chegou a participar de outra produção cinematográfica de Ratton – Pequenas histórias –, hoje pertence à Cia. Fiorini, grupo de teatro mambembe que roda Minas Gerais apresentando seus espetáculos.

Quando finalizou o roteiro de 142 páginas, que teve a colaboração de Tairone Feitosa e Ângela Santoro, Ratton procurou Álvaro Apocalypse, fundador do Grupo Giramundo, pessoa que ele sempre admirou. O trabalho foi um desafio em vários sentidos, já que o artista plástico e diretor de teatro de bonecos nunca havia tido uma experiência com o cinema. “Se fosse hoje, a gente teria uma infinidade de recursos à nossa disposição. Naquela época, tivemos que nos virar. No teatro, que era o espaço onde o Giramundo estava acostumado, você poder ver os fios. Mas no cinema não dá. Se isso acontecer, perde muito a graça, a magia. Então, utilizávamos uma série de recursos para a manipulação. O Álvaro ia ensinando e mostrando onde o manipulador poderia estar sem ser visto. Ele fez todo o storyboard (croquis das cenas), e eu segui algumas coisas”, conta.

Um dos atuais diretores do Giramundo, Marcos Malafaia comenta que o processo de criação dos três bonecos – Bubu, Totoca e Tiziu, este inspirado no cantor e compositor Milton Nascimento – foi um dos mais longos e meticulosos da história do grupo e que exigiu muito de seus profissionais. Ele afirma que, para se adequar às exigências da câmera de cinema, novidade para a companhia na época, foram utilizadas técnicas inovadoras na confecção e na manipulação dos bonecos. “Foram criadas várias versões de Bubu, Totoca e Tiziu: com o corpo inteiro, só a cabeça, só o tronco e a cabeça, justamente para que os manipuladores os utilizassem de várias maneiras e para que eles se ajustassem às demandas das câmeras. Foi um trabalho que exigiu muito de toda a equipe do Giramundo. O cinema requer um tipo de dedicação muito grande, intenso e contínuo”, explica Malafaia.

Fernando Duarte, Ratton e Walter Carvalho: cuidado na captação das imagens do longa (Estevam Avellar/Divulgação)
Fernando Duarte, Ratton e Walter Carvalho: cuidado na captação das imagens do longa
Em cena, Wilson Grey, o vilão que assusta e diverte (Estevam Avellar/Divulgação)
Em cena, Wilson Grey, o vilão que assusta e diverte


Baú dos ossos


Feitos de madeira e resina e com os mecanismos mais avançados disponíveis, os bonecos podiam virar a cabeça e mexer olhos e pálpebras, por exemplo. Como eles só foram utilizados para o filme, nunca foram restaurados e estão deteriorados pela ação do tempo. Atualmente, encontram-se numa pequena sala do Museu Giramundo, chamada “baú dos ossos”. “Essa intenção do Ratton de querer lançar o filme em DVD nos motiva a restaurar os bonecos, que têm uma história muito importante não só para o Giramundo, mas para a cultura de uma maneira geral. Se tudo correr bem, quando A dança dos bonecos completar 30 anos, em 2016, eles vão estar ‘novos’ e disponíveis para visitação”, garante Marcos Malafaia.

Outra decisão fundamental para o sucesso da produção foi a escolha de Wilson Grey para interpretar Mr. Kapa. Helvécio Ratton o queria muito no seu filme e, naquele período, o ator era considerado um dos profissionais com o maior número de atuações no cinema mundial. “Era uma figura emblemática. Uma das minhas lembranças mais carinhosas foi a solidariedade do Grey. Mesmo com todas as dificuldades, inclusive financeiras, porque foi um filme feito com poucos recursos e muita imaginação, ele nunca reclamou de nada. Era uma pessoa fantástica”, destaca o cineasta.

O convívio com o elenco e toda a equipe de produção, seja em Diamantina e Biribiri – onde passaram três meses –, seja em Sabará e Belo Horizonte, foi inesquecível. O elenco era formado por Kimura Schettino (Geleia, assistente de Mr. Kapa), Cláudia Gimenez (Almerinda), Rogério Falabella (Vitorino) e a menina Cíntia Vieira, de 9 anos (Ritinha), selecionada depois de passar em testes com centenas de crianças. “Foi o primeiro e único papel dela. A Cíntia hoje é professora de literatura e não seguiu a carreira artística. Tivemos outros profissionais muito talentosos participando, como o fotógrafo Fernando Duarte, Walter Carvalho, que fez a câmera, e Nivaldo Ornelas, na trilha sonora”, cita Ratton.

BASTIDORES DA CRIAÇÃO » Uma noite mágica Estreia de A dança dos bonecos mudou o clima do Festival de Cinema de Brasília de 1986. Filme ganhou prêmios no Brasil e no exterior e é até hoje referência na obra do cineasta

Ana Clara Brant
Publicação: 10/08/2014 04:00
O cineasta Helvécio Ratton quer relançar o filme em DVD nas comemorações dos 30 anos da produção (Beto Novaes/EM/D.A Press
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O cineasta Helvécio Ratton quer relançar o filme em DVD nas comemorações dos 30 anos da produção
O clima do Festival de Cinema de Brasília parecia de velório. Era assim que o diretor Helvécio Ratton descreve o evento de 1986. “O cinema nacional andava meio decaído e os filmes que estavam sendo exibidos ali, também”, lembra. Mas foi então que veio A dança dos bonecos e tudo mudou. A produção infantil alterou completamente o astral do festival brasiliense daquele ano. “Ele foi exibido pela primeira vez lá (só estreou no circuito nacional um ano depois) e foi aplaudido de pé. Jamais vou me esquecer daquele dia. Ganhamos oito prêmios em Brasília e conquistamos prêmios nacionais em outros festivais, como Gramado, além de destaque internacional na Itália, Portugal, Bulgária e Alemanha. Ele foi exibido e elogiado até no Egito e nos Estados Unidos. Foi uma coisa arrebatadora”, celebra Ratton.

Para o cineasta, o segredo do sucesso foi o fato de o longa ter chegado ao coração das pessoas e ter lidado com emoções básicas. “Ele marcou muitas gerações e essa coisa do boneco é muito bacana também. A ligação da menina com os bonecos, essa coisa de eles ganharem vida e ela ir atrás deles. Mexeu muito com o imaginário das crianças. É um filme de muita fantasia. E, ao mesmo tempo, é muito mineiro e universal”, resume o diretor.

Apesar de passados quase 30 anos, A dança dos bonecos está muito presente na vida de Ratton e isso se reflete no seu local de trabalho, a produtora Quimera Filmes. Por todo o canto é possível se deparar com pôsteres, fotos e até objetos do filme, como uma janela de madeira do caminhão com uma imagem pintada de Mr. Kapa (Wilson Grey).

O cineasta guarda peculiaridades, como o storyboard original desenhado por Álvaro Apocalypse, o roteiro do longa-metragem e um caderninho de anotações da época das filmagens. “Em todos os meus filmes tenho um caderno em que escrevo ideias que vão surgindo, sugestões de figurino, de locações. Guardo todos”, completa Ratton.

Cíntia Vieira tinha 9 anos quando deu vida à Ritinha. Essa foi sua única experiência no cinema (Estevam Avellar/Divulgação)
Cíntia Vieira tinha 9 anos quando deu vida à Ritinha. Essa foi sua única experiência no cinema


Fantasia em cena

Dois artistas mambembes, Mr. Kapa (Wilson Grey), o homem das mil capas, e Geleia (Kimura Schettino), seu ajudante, chegam a uma cachoeira onde surge Iara (Divana Brandão), que tinge de violeta as águas do rio. Geleia, enfeitiçado, enche seu garrafão com a água mágica. Quando chegam à cidadezinha de Beleléu, perdida entre as montanhas, conhecem a menina Ritinha (Cíntia Vieira) e seus três bonecos. Depois de um show, Geleia dá um vidro com a água encantada para Ritinha, que passa o bálsamo em seus bonecos. Milagrosamente, no meio da noite, acontece a magia e os três bonecos – Totoca, Tiziu e Bubu – ganham vida, dançando um fantástico balé. Só que Mr. Kapa assiste à dança e decide roubá-los para fazer fortuna.

• A dança dos bonecos

Passo a passo

1 – Helvécio Ratton passa o carnaval em Diamantina, em 1984, e visita Biribiri. Lá, tem a ideia de fazer um filme tendo a vila como cenário.

2 – Em Belo Horizonte, entra em contato com Pacífico Mascarenhas, colecionador e músico, para pedir a ele um carro que servisse de palco ambulante.

3 – O cineasta procura o artista plástico e diretor de teatro Álvaro Apocalypse, criador do Giramundo, e encomenda os bonecos Bubu, Totoca e Tiziu.

4 – No galpão do Giramundo, então instalado no câmpus da UFMG, o cineasta acompanha todo o processo de produção dos bonecos.

5 – Em 1985, começam as filmagens em Biribiri, Diamantina, Sabará e Belo Horizonte.

6 – O filme é exibido pela primeira vez em 1986, no Festival de Cinema de Brasília, onde é aclamado e conquista oito prêmios.

7 – O longa estreia em circuito nacional em julho de 1987 e é sucesso de crítica e de público.

8 – O filme ganharia em seguida prêmios em Gramado (RS) e em vários festivais internacionais.

9 – A dança dos bonecos ganha versão em vídeo pela Globo Filmes.

10 – O diretor tem planos de restaurar a cópia original e lançar o filme em DVD na comemoração dos 30 anos da produção.


Segredo de Ratton

Assim como em A dança dos bonecos, o diretor Helvécio Ratton volta a se dedicar a uma produção infantojuvenil e a filmar na região de Diamantina, desta vez no Serro. O segredo dos diamantes, que será exibido hoje, às 19h, na Mostra Competitiva de longas brasileiros no Festival de Gramado, conta a história de um garoto de 14 anos, que com a ajuda de dois amigos busca um tesouro para salvar a vida do pai. O elenco conta com o jovem Matheus Abreu, Dira Paes e a atriz mineira Manoelita Lustosa, que morreu em julho, em seu último trabalho no cinema. O filme tem lançamento nacional programado para 18 de dezembro.

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