sábado, 2 de agosto de 2014

Entre dois tempos - Ângela Faria

Entre dois tempos 

Livro do jornalista Samy Adghirny traça amplo painel da história do Irã, desfazendo estereótipos e contribuindo para a compreensão real do significado da Revolução Islâmica e seus desdobramentos

Ângela Faria
Estado de Minas: 02/08/2014


Mulher iraniana ajusta o chador para as orações que celebram o mês sagrado do Ramadã: uma sociedade moderna que preserva laços ancestrais (Behrouz Mehri/AFP - 29/7/14)
Mulher iraniana ajusta o chador para as orações que celebram o mês sagrado do Ramadã: uma sociedade moderna que preserva laços ancestrais

Um país árabe e miserável, cujas mulheres são obrigadas a usar burca – aquela assustadora capa negra que esconde o rosto e todo o corpo. Terra de gente xenófoba e analfabeta, presa a costumes medievais, cegamente fiel ao líder da Revolução Islâmica, o aiatolá Khomeini. Se é assim que você vê o Irã – a terceira ponta do “eixo do mal” alardeado pelo presidente George W. Bush, ao lado do Iraque e da Coreia do Norte –, prepare-se. Já é hora de rever radicalmente o seu preconceito.

Correspondente da Folha de S. Paulo em Teerã, Samy Adghirni acaba de lançar Os iranianos (Contexto), livro oportuno e esclarecedor, sobretudo para o leitor interessado em compreender o mundo contemporâneo sem ficar refém de certa visão maniqueísta e rasteira disseminada por sabichões da “grande” imprensa ou por “gênios” da internet. De forma clara e descomplicada, o jornalista nos instiga a questionar clichês que alimentamos a respeito da complexa relação Ocidente/Oriente.

Para começar, iranianos não são árabes. O Irã é a grande nação do povo persa, avisa Samy Adghirni. Persas e árabes mantêm rivalidade ancestral. Naquele país, a mulher estuda, trabalha e tem poder significativo para decidir o que lhe convém, apesar de imposições da Revolução Islâmica deflagrada em 1979. Elas usam véu, que deixa o rosto à mostra, votam e são eleitas. As repórteres costumam impor saias justas às autoridades, ao contrário de colegas homens. As moças formam a maioria dos universitários de seu país. Em festas particulares, usam microssaias, deixam a barriga de fora e se mostram exímias em despistar a polícia de costumes, treinada para vigiar infratores das regras impostas pelo regime teocrático.

Educação e saúde País urbano (70% da população vive na cidade), alfabetizado (93% dos cidadãos de 10 a 49 anos sabem ler e escrever) e de classe média, com universidades públicas e privadas em todas as regiões, o Irã também oferece sistema de saúde pública superior ao brasileiro, garante Adghirni. Competitivo e elitizado, o sistema de ensino é fruto de obsessiva prioridade conferida à educação: universidades de Teerã, sobretudo de ciências exatas, encantam cientistas ocidentais. O desenvolvimento científico é levado a sério, embora os baixos salários alimentem a fuga de cérebros para o Ocidente.

Consumidores de notícias, fissurados por internet e antenas parabólicas, iranianos se interessam pelo mundo: taxistas sabem onde fica o Brasil e que falamos português; barbeiros discutem em detalhes as peripécias do investidor George Soros; JK e Brasília encantam um professor de geografia com quem Samy Adghirni conviveu. Pode acreditar: boa parte desses “xenófobos” persas é fascinada pelos Estados Unidos. “A maior parte da população não compartilha do ódio antiamericano tão comum entre países do Oriente Médio e da Ásia Central. Ao contrário do que ocorre no Iêmen ou no Paquistão, Osama Bin Laden não tem apelo algum no Irã”, informa o autor.

Hospitaleiros, os iranianos paparicam estrangeiros, sobretudo ocidentais caucasianos. Praticamente não há registro de violência contra visitantes, ressalta Samy, lembrando, porém, que turistas árabes, turcos e asiáticos não geram a mesma fascinação. Orgulhoso de sua cultura e de sua história, o Irã cultua os poetas – veem-se imensas romarias ao mausoléu de Hafez (1325-1390), embora o mundo só conheça Omar Khayyam (1048-1131), autor de Rubayat. Expressões poéticas estão presentes nas conversas do dia a dia.

Irã é a terra da ambiguidade. De um lado, nos encantamos com versos inspirados, a delicadeza de obras-primas da tapeçaria, o singular cinema que conquistou o público cult ocidental. De outro, nos assustamos com o Estado teocrático islâmico, que alia princípios republicanos à imposição autoritária de hábitos e regras fruto da leitura ultraconservadora do Corão. Lá se registra sistemática violação dos direitos humanos, com assassinatos, estupros e requintes de crueldade de torturadores. O Irã perde apenas para a China no escabroso ranking da pena de morte: 100 execuções em 2005; 369 em 2013. Nos primeiros meses deste ano, nada menos de 200 iranianos assim perderam a vida.

Revolução Em 2014, a Revolução Islâmica de Ruhollah Khomeini completa 35 anos – trata-se do primeiro grande êxito do islamismo político na era moderna, enfatiza Adghirni. São evidentes os sinais de desgaste do regime. O imaginário ocidental, porém, pouco percebe o que hoje lá ocorre. Prefere-se reduzir o multifacetado e complexo Irã apenas a país fundamentalista e radical, palco da invasão da embaixada dos Estados Unidos em Teerã (que rendeu o blockbuster Argo), da condenação à morte do escritor Salmon Rushdie e da violenta perseguição e eliminação dos adversários de Khomeini.

Samy Adghirny traça elucidativo painel da história da antiga Pérsia e do atual Irã para que o leitor possa compreender o contexto da Revolução Islâmica e seus desdobramentos. Lembra a dominação árabe, há muitos séculos, e o impacto da ocupação britânica nos anos 1800, transformando iranianos em cidadãos de segunda categoria e se apropriando dos lucros do petróleo. Na década de 1950, a CIA e os britânicos – eixo do mal? – depuseram o nacionalista Mohammad Mossadegh, primeiro líder democraticamente eleito da história do país.

Mossadegh foi substituído por Reza Pahlavi, que desencadeou intensa repressão, ocidentalizou o país à força, revoltando a população, e perseguiu líderes religiosos. Sua polícia secreta, a Savak – doutrinada pelo Mossad israelense e pela CIA norte-americana –, aterrorizou o povo. Ao ver derrotado seu títere Pahlavi pela revolução popular liderada por Khomeini, o Ocidente apoiou a invasão do Irã pelas tropas iraquianas de Saddam Hussein, que ordenou o primeiro ataque de armas químicas contra civis desde a 2ª Guerra Mundial. Um navio americano disparou míssil para abater avião civil do Irã, assassinando os 290 passageiros. Cerca de 1 milhão de pessoas perderam a vida no conflito Irã-Iraque. Concluído o serviço sujo, Saddam virou o inimigo nº 1 de seus ex-aliados...

Neste século 21, os iranianos enfrentam dificuldades econômicas (parte delas imposta por duríssimas sanções internacionais), a corrupção e a ineficiência da mão de obra. Cerca de 150 mil cidadãos com qualificação universitária deixam o país a cada ano. Gravíssimos problemas na área de meio ambiente são acobertados pelo governo. O setor aéreo bate recordes de acidentes devido à dificuldade de reposição de peças americanas, cuja venda foi proibida ainda no governo Bill Clinton. Mesmo assim, ônibus e metrô são eficientes e baratos, informa o repórter.

Depois de ler Os iranianos, descobrimos um fascinante país, mergulhado em ambiguidades e contradições, também adepto de nosso proverbial “jeitinho”. Nas ruas, turistas costumam ser abordados para um dedo de prosa e até ganham flores. Visitantes estrangeiros costumam ouvir desculpas “pelas bobagens que o nosso governo faz”, além de receber convites para jantar na casa de simpáticos “locais” depois de conhecê-los na rua. Vale a pena ouvi-los. “Iranian people good, government no good”, resume o taxista, ansioso para explicar ao repórter que o Irã não é o “eixo do mal” tão alardeado pelo “democrata” George W. Bush.

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