quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Amor que supera o preconceito

Amor que supera o preconceito Casal vítima de racismo pela internet espera a identificação de culpados e garante: agressões virtuais não abalam a relação


Tiago de Holanda
Estado de minas : 28/08/2014




Insultos chocaram os namorados, mas eles se uniram ainda mais para enfrentá-los (Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)
Insultos chocaram os namorados, mas eles se uniram ainda mais para enfrentá-los

“A atitude dela serve de exemplo para quem sofrer no futuro esse tipo de preconceito”, diz o jovem L., de 18 anos. Ele tem agora mais um motivo para se orgulhar da namorada M., de 20. Ela, negra, não se deixou abater e, na terça-feira, denunciou à polícia as ofensas racistas que sofreu via Facebook, após publicar uma foto em que aparece junto do rapaz, branco. Os dois moram em Muriaé, na Zona da Mata mineira, e falaram ontem ao Estado de Minas sobre o incidente, com a condição de não terem reveladas suas identidades. Apaixonado, o casal ressaltou que as agressões virtuais não enfraqueceram o relacionamento.

Foi o rapaz quem primeiro viu as ofensas no Facebook, na tarde do dia 17 . “Não esperava por isso. Na hora liguei para ela”, comenta. Depois de a foto ser publicada, surgiram dezenas de comentários racistas. Um deles questiona onde L. havia comprado a “escrava”. Outro pergunta se ele era “dono” da jovem. M. ficou chocada, mas se manteve firme, com apoio do namorado. “Fiquei triste, chorei. Mas ele foi me dando força, dizendo que eu não deveria ligar para isso”, lembra.

A foto foi reproduzida em outro perfil do Facebook, “Pretinho do poder”, no qual várias pessoas criticaram a discriminação. A jovem se sentiu encorajada a procurar a polícia quando um advogado publicou na rede social comentário enfatizando que aquelas manifestações racistas eram criminosas. “Conversei com o profissional pela internet e ele me orientou a ir à polícia”, relata ela, que na terça-feira procurou a Delegacia Regional de Muriaé para prestar queixa.

O inquérito foi instaurado ontem e está aos cuidados do delegado Eduardo Freitas da Silva, da 31ª Delegacia. Segundo ele, os agressores poderão responder por injúria racial, crime tipificado no artigo 140 do Código Penal, com pena de um a três anos de prisão e multa.

Agressões avançam pela rede Denúncias por crimes de injúria, incluindo as ofensas de cunho racial, como a que vitimou casal de Muriaé, vêm aumentando. Polícia adverte que 99% dos culpados são identificados


Junia Oliveira


M., de 20 anos, e L., de 18, vão depor na tentativa de ajudar na identificação dos agressores virtuais (Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)
M., de 20 anos, e L., de 18, vão depor na tentativa de ajudar na identificação dos agressores virtuais

Os crimes de injúria – entre os quais se enquadram casos de agressão como o que vitimou o casal de Muriaé atacado pelo Facebook – avançam na internet. Os casos registrados na Delegacia de Crimes Cibernéticos de Belo Horizonte por ofensa à honra e à dignidade de alguém, incluindo ofensas raciais, saltaram nos primeiros sete meses do ano de 51 para 54, na comparação com o mesmo período de 2013. A quantidade já é maior que todas as ocorrências de 2012, quando houve 53 queixas.

Um das mais recentes investigações que desafiam a Polícia Civil é o caso da jovem negra da Zona da Mata mineira. O episódio, qualificado como injúria racial, ocorreu depois de a garota postar na semana passada uma foto na qual aparece com o namorado, branco, de 18 anos. O titular da 2ª Delegacia de Crimes Cibernéticos de BH, César Duarte Matoso, disse ontem que a equipe da capital vai dar suporte aos colegas de Muriaé, na tentativa de encontrar os autores das mensagens racistas.

A polícia vai pedir na Justiça ordem para obter o IP dos computadores de onde partiram as ofensas e, assim, identificar a origem das mensagens. De acordo com o Marco Civil da Internet, legislação que entrou em vigor no fim de junho, provedores de acesso à rede são obrigados a guardar os registros de acesso e do fim da conexão dos usuários pelo prazo de seis meses. De acordo com o delegado, 99% dos autores de crimes cometidos no ambiente virtual são identificados. “A pessoa comum não tem muita habilidade técnica ou conhecimento de informática para se esquivar de uma investigação, pois ela não pratica crimes com frequência”, diz.

César Matoso esclarece, no entanto, que para investigar crimes de injúria as vítimas têm que prestar queixa. Segundo ele, atos de discriminação são comuns na rede e, na maioria das vezes, o autor das ofensas é conhecido da vítima. Nesse caso, o procedimento é diferente: “Cabe à pessoa que foi ofendida procurar um advogado e entrar com uma ação criminal na Justiça”.

O delegado chama atenção ainda para a dimensão que uma ofensa na internet pode ganhar. Somente no Brasil, houve mais de 100 milhões de acessos no último trimestre. Apenas os domésticos responderam por 75% desse total. “Quanto mais pessoas na rede, mais crimes haverá”, diz César Matoso. Somente ano passado foram concluídos 300 inquéritos por crimes cibernéticos – a maioria deles, estelionato.

O delegado não tem dados sobre quantos se referiam especificamente a racismo ou injúria racial, mas informou que recebe inúmeros casos na Região Metropolitana de BH, além das investigações feitas pelas delegacias estado afora. “É um problema mais de relacionamento na rede e nem tanto policial. Como as pesosas se relacionam muito nesse espaço, qualquer ofensa abala muito o círculo de amigos. E elas não estão preparadas para uma exposição pública como ocorre na internet.”

Matoso destaca que estar na rede mundial e fazer parte das redes sociais exige consciência dos bônus e dos ônus. “Quanto maior a exposição, maior o problema depois, principalmente se envolver conteúdo íntimo. A linguagem na internet é fria e sem contexto e pode causar um problema enorme na vida pessoal da vítima.”



A moça diz que foi a primeira vez que foi vítima de racismo. “São pessoas que nem nos conhecem”, aponta. O rapaz ressalta que ninguém jamais criticou o relacionamento, de um ano e oito meses. Os dois moram em bairros vizinhos. De vez em quando, pelas ruas, os olhares se cruzavam. Ele descobriu o nome dela e a adicionou entre os amigos no Facebook. Na mesma noite, conversara horas pela internet. Encontraram-se no dia seguinte.

Ele, que mora com os pais, concluiu o ensino médio e, enquanto faz um curso técnico de logística, trabalha em uma empresa que produz anúncios de outdoor. Ela também completou o nível médio e, após um curso técnico de corte e costura, está à procura de emprego. A jovem, caçula de três irmãs, mora com uma delas e com a mãe em uma casa simples, em uma vizinhança de ruas calçadas com paralelepípedos.

“A gente já planeja se casar, mas, por enquanto, isso está só na ideia”, diz ela, com um sorriso desinibido, apertando os dedos entre os do namorado. “Primeiro, precisamos nos concentrar nos estudos, para depois termos tranquilidade”, ressalta o rapaz. Ela conta que amigos e conhecidos telefonaram para o casal para saber se o relacionamento continuava firme, depois das ofensas. A jovem garante: “O que aconteceu não nos abalou. Gostamos tanto um do outro quanto antes”.


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