sábado, 5 de julho de 2014

Livro reúne correspondência de Carlos Lacerda entre 1933 e 1976

Em primeira pessoa 

Livro reúne correspondência de Carlos Lacerda entre 1933 e 1976. Cartas tratam de temas familiares, literários e políticos com a mesma verve radical que caracterizou o governador, tribuno e jornalista
João Paulo
Estado de Minas: 05/07/2014


Carlos Lacerda discursa na Câmara dos Deputados: parlamentar era conhecido pela inteligência e força histriônica de seus pronunciamentos (O Cruzeiro/Arquivo EM - 1/2/55)
Carlos Lacerda discursa na Câmara dos Deputados: parlamentar era conhecido pela inteligência e força histriônica de seus pronunciamentos

Demolidor de presidentes. Tribuno da língua ferina. Adversário temível. Não são poucos nem ponderados os julgamentos em torno de Carlos Lacerda (1914-1977). E ele, certamente, não gostaria de ser tratado sem paixão. No ano em que se celebra o centenário do jornalista e ex-governador da Guanabara, uma importante fonte de estudo chega ao leitor pela Editora Bem-Te-Vi. Trata-se da correspondência de Lacerda abrangendo o período que vai de 1933 a 1976, um ano antes de sua morte.

Embora não fugisse de polêmicas e disputas, Carlos Lacerda foi um homem relativamente reservado e, por isso, suas cartas, tanto privadas como públicas (ele gostava de enviar cartas abertas a diretores de jornais), guardam significação para quem se interessa pelos rumos do país. Carlos Lacerda esteve próximo ou no papel de opositor em vários momentos marcantes da vida republicana brasileira de seu tempo.

O livro que reúne a correspondência de Lacerda tem ainda o valor adicional de trazer muitos documentos ainda inéditos, sobretudo os que tratam da correspondência familiar e com escritores. As cartas políticas já são conhecidas de pesquisadores e figuram como fonte das biografias disponíveis, com destaque para o trabalho de John Foster Dulles, em dois volumes. Lacerda foi ainda personagem de destaque do filme Getúlio, de João Jardim, como um dos responsáveis pelo acirramento da crise que levaria ao suicídio d

É bom destacar ainda que, recentemente, o neto de Carlos, Rodrigo Lacerda lançou o romance A república das abelhas, que trata da primeira fase da vida do avô e de sua relação com a rica história política familiar. Sinal de que, com o tempo, já amainadas as disputas protagonizadas por Lacerda, sua vida se torna tema para diferentes abordagens, da análise política à história romanceada, passando pelo cinema. E é nesse caminho que as cartas agora publicadas ganham em interesse histórico.

A organização do livro foi feita por Cláudio Mello e Souza a partir de 2009. O jornalista, que morreu em 2011, pesquisou nos maiores arquivos literários brasileiros, entre eles a Casa de Rui Barbosa, que hoje guarda o acervo de Carlos Lacerda, a Academia Brasileira de Letras e a Biblioteca Nacional. O trabalho foi completado por Eduardo Coelho, professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O trabalho dos organizadores, além da reunião, fixação do texto e recuperação da correspondência, demandou uma profunda leitura do material, que resultou em quase 900 notas. São informações sobre o contexto, pequenas biografias de cada um dos destinatários e pessoas citadas nas cartas. As anotações são sempre úteis, sem se perder em interpretações polêmicas, dando ao leitor o domínio dos personagens e dos fatos citados na correspondência. Como se trata de um longo período histórico, as notas se tornam imprescindíveis mesmo para os especialistas.

Gatinha
As cartas foram divididas em quatro seções. A primeira, “Família”, é toda dedicada à correspondência dirigida a Letícia Abruzzini (1919-1990), professora nascida em Valença (RJ), que viria a ser mulher de Carlos Lacerda. Ela é tratada como Gata, Gatinha e Nega e as cartas vão do tempo de namoro, em 1937 (eles se casaram em 1938), a 1944. O tom pessoal é intercalado com temas políticos. Em 10 de agosto de 1937, por exemplo, ele escreve de Belo Horizonte, onde participava de caravana de estudantes durante a campanha em torno da candidatura de José Américo de Almeida à Presidência da República.

A segunda parte chama-se “Amigos” e reúne cartas endereçadas ao pernambucano José Osório de Borba, ao médico Marcelo José Amorim Garcia, ao jurista Afonso Arinos de Melo Franco, a Juraci Magalhães e a Fernando Cícero Veloso, entre outros. As cartas cobrem período que vai de 1939 a 1975, por ocasião dos 70 anos de Afonso Arinos. Mesmo no trato com companheiros, o assunto é quase sempre a política.
A terceira seção, “Autores e livros”, reúne a correspondência de Lacerda com escritores ou que versam sobre romances e ensaios. As primeiras cartas desse capítulo foram enviadas a Mário de Andrade, entre 1933 a 1941. Lacerda fala de literatura, sobretudo dos modernistas, mas também trata do movimento integralista e até da política externa norte-americana. O tom das primeiras missivas de Lacerda é de discípulo, mas como é próprio dele, logo se sente seguro para interpelar Mário de Andrade e, em carta de 1941, chega a acusá-lo de infâmia.

Além de Mário de Andrade, Carlos Lacerda se correspondeu com outros escritores, entre eles Dinah Silveira de Queirós, Josué Montelo, Otto Lara Resende, Erico Verissimo e Gilberto Freyre. A carta ao sociólogo pernambucano reflete bem a personalidade dos dois amigos. Freyre reclama do pouco espaço dado a ele em uma enciclopédia editada por Lacerda, comparando ao que foi reservado a Jorge Amado, numa típica manifestação do conhecido ego de Freyre. Lacerda defende a decisão editorial, mas ao fim dá uma estocada em Amado: “Não me dou com Jorge desde o tempo do pacto teuto-soviético”.

A quarta seção, “Política”, que cobre mais da metade do livro, vai de 1947 a 1976 e trata praticamente de todos os movimentos e ações políticas do período. Carlos Lacerda escrevia para aclarar sua disposição política, mas muitas vezes para marcar publicamente suas posições, sobretudo em cartas dirigidas à imprensa e a presidentes, ministros e generais. Mas se envolvia também em assuntos administrativos, como, por exemplo, a construção do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.
As cartas políticas são uma fonte de informações sobre vários momentos da vida republicana, dirigidas a personalidades com as quais Lacerda dividia opiniões e com seus contendores. Assim como ganhou fama de tribuno, o correspondente Carlos Lacerda não deixava por menos nem economizava nas palavras duras. Na carta que enviou a Burle Marx em outubro de 1965, sobre as divergências do artista com Lota Macedo Soares, Lacerda não perde tempo e, na primeira linha, sentencia: “Ser grande paisagista não desobriga ninguém da obrigação de ter caráter”. E acusa ainda Burle Marx de ser oportunista e cobrar além da conta.

Entre os destinatários de cartas com teor político estão dom Helder Câmara, Magalhães Pinto, Jânio Quadros, João Goulart, Golbery do Couto e Silva, Henry Kissinger e Castelo Branco. Do apoio inicial ao golpe ao questionamento da supressão das eleições e crítica à política econômica do primeiro governo militar, as relações com os golpistas de primeira hora vão se azedando até a prisão e greve de fome de Lacerda, depois do AI-5, em 1968. Em carta dirigida à mulher e aos filhos, Lacerda escreve: “Os heróis de fancaria vão ver como luta e morre, sozinho e desarmado, um brasileiro que ama a pátria livre”. Lacerda, em seguida, foi cassado.

Carlos Lacerda era homem de imprensa, dirigiu revistas e a Tribuna da Imprensa. Por isso se sentia à vontade para enviar cartas para os diretores de redação de publicações de São Paulo e do Rio, sobretudo quando estava com a palavra sob suspeita ou sem tribuna. Na última carta da coletânea, de maio de 1976, dirigida a O Estado de S. Paulo, ele pede para ser esquecido e acusa o jornal de publicar mentiras a seu respeito.

O material é rico. Basta seguir as datas das cartas para se ver, em meio às questões que ganhavam a opinião pública na época, a posição de Lacerda. Não é difícil, em todos os momentos, identificar seus interesses (e discordar deles), mas é sempre vivo poder acompanhá-lo em primeira pessoa, com seu desassombro habitual.

Carlos Lacerda/Cartas 1933-1976 é uma fonte rica. Para um livro de história já é meio caminho andado. O leitor, em diálogo com outras informações, precisa fazer seu trabalho. O correspondente Carlos Lacerda, no entanto, enriquece ainda mais o perfil do político, polemista e jornalista.

Trechos

• “No Estado Novo, os homens como você têm uma função: a de desconversadores, isto é, de homens a quem se pergunta: ‘Por que no Brasil não pode haver liberdade de pensamento?’ e dos quais se recebe esta resposta: ‘Vamos ver que perfeição de pronome tem aquele senhor que acaba de entrar para a Academia?’. Você agora é um acadêmico do lado de fora, um acadêmico que bebe chope e com chope consegue a irresponsabilidade suficiente para caluniar, difamar e corromper tudo aquilo que representa sacrifícios obscuros, esforço constante, intenção refletida.”
Carta a Mário de Andrade, 11 de outubro de 1941
“A não realização de eleições estaduais este ano – inspirada sobretudo na miragem da ‘coincidência de mandatos’ que tem como alternativa para escolha das Assembleias – me parece um erro contra o aperfeiçoamento democrático. (…) Não estou interessado em prorrogação, até porque teria que me desincompatibilizar para tentar merecer a honra de ser o seu sucessor. Não desejo assumir responsabilidades, aliás indeclináveis, em face do meu estado e dos demais. O melhor, o certo, o corajoso, o democrático é realizar eleições.”
Carta ao presidente Castelo Branco, 20 de março de 1965
“A UDN não poderia continuar a apoiar, ao mesmo tempo, Castelo Branco e a minha candidatura. Pois o senhor Castelo Branco não admite minha candidatura e tudo faz para condenar o país à escamoteação da ‘eleição indireta’. O senhor Castelo Branco foi vítima de sua obsessão de evitar a minha candidatura e o voto do povo.”
Carta redigida depois do anúncio da prorrogação do mandato do marechal Castelo Branco, 7 de outubro de 1965


Carlos Lacerda/Cartas 1933 –1976
Organizado por Cláudio Mello e Souza e Eduardo Coelho
Editora Bem-Te-Vi
392 páginas, R$ 78

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