quinta-feira, 3 de julho de 2014

Agora, um califado no Iraque Vítor Gomes Pinto

Agora, um califado no Iraque
Vítor Gomes Pinto
Escritor, analista internacional
Estado de Minas: 03/07/2014


Onze anos após a morte de Saddam Hussein e três anos passados do início da guerra da Síria, surge um novo e surpreendente espaço político no explosivo Oriente Medio: a criação de um país com regime ainda mais radical do que os já existentes num vasto território que redesenha as fronteiras, um califado sob o comando de Abu Bakr al-Baghdadi à frente do grupo Estado Islâmico no Iraque e no Levante (Isis, na sigla em inglês). Os Estados Unidos, que retiraram suas tropas de Bagdá em dezembro de 2011, agora assistem, abismados, a combatentes sunitas do Exército iraquiano despindo suas fardas e abandonando voluntariamente armas, tanques e equipamentos (pagos em dólares) nas mãos dos invasores no Norte do país. Vale lembrar que na origem está a formação do moderno Iraque com suas fronteiras artificiais resultantes da repartição colonial do Oriente Médio feita por britânicos e franceses, obrigando muçulmanos de todas as crenças e curdos a coabitarem uma nação, inexequível desde o nascimento, da qual não se sentiam partes.

A situação, para quem não está acostumado às práticas de alianças e confrontos na arena internacional, é sui generis, pois está impondo uma inesperada associação entre EUA, Irã e até a Síria de Al-Assad numa fórmula que, segundo a revista New Yorker, se baseia na máxima popular de que "o inimigo de meu inimigo é meu amigo". Unem-se temporariamente para combater o Isis e, depois, caso resolvido o problema, voltam às velhas brigas de costume. De fato, o regime xiita de Teerã apoia a continuidade, por razões de credo, de Bashar al-Assad na Síria e de Nuri al-Maliki no Iraque, não importa o que façam. Já os Estados Unidos, que como sempre fazem questão de ignorar as questões religiosas locais, sustentam os rebeldes sunitas que querem derrubar o ditador sírio, mas, no vizinho, combate-os para evitar que fortaleçam os terroristas do Isis. Dito de outra forma, na Síria, os EUA estão apoiando rebeldes sunitas contra o regime de Al-Assad, o amigo do Irã, e no Iraque tanto os americanos quanto os iranianos apoiam os xiitas na luta contra os sunitas

O governo de Nuri al-Maliki, o primeiro-ministro que substituiu Saddam Hussein, é xiita e, como tal, o principal responsável pelo caos atual porque tem sistematicamente perseguido a minoria sunita (30% da população) do país, expulsando seus membros do Exército e dos empregos públicos ao ponto de tornar insustentável a convivência entre esses dois ramos do Islã e também com os curdos (10% dos iraquianos). Para completar o quebra-cabeças, Obama e Hassan Rohani, o presidente da república iraniana, discordam em relação ao futuro de Maliki. O Irã deseja mantê-lo como está, ao passo que os EUA defendem uma efetiva divisão do poder entre os três grupos no Executivo. Atualmente, há um acordo – na prática fracassado – pelo qual o primeiro-ministro é xiita; o presidente, que é figura decorativa, é um sunita; e o porta-voz do Congresso, um curdo.

O Isis é um movimento jihadista (guerra santa aos não islâmicos) surgido em abril do ano passado como uma dissidência da Al-Qaeda que desautorizou sua ação. Não obstante, o grupo não só prosseguiu como se tornou, gradativamente, mais forte que que a própria Al-Qaeda e hoje é tido como a principal ameaça terrorista no Oriente Médio. Al-Baghdadi, nascido provavelmente em 1971 na cidade iraquiana de Samarra, ao norte de Bagdá, tem carisma, afirmando que seus milhares de seguidores incluem combatentes britânicos, alemães, norte-americanos, além dos recrutados nos países vizinhos e no Cáucaso. Sua proposta é formar um novo estado islâmico, tão ou mais radical que o talebã afegão, tendo Baghdadi como seu emir. Ao invadir o território iraquiano, embora numericamente pouco significantes, ocuparam com facilidade as áreas de predominância sunita, tomando Mosul, a segunda maior cidade do país. Em seguida, tomaram Kirkut, onde está a refinaria de Beiji, mas logo foram desalojados pelo Exército da província autônoma do Curdistão, que combate ao lado das forças xiitas e deseja participar da nova divisão do poder em Bagdá.

A perda de Beiji seria um golpe dificilmente assimilável, seja porque aí se produz mais de 1/4 do petróleo consumido no país, seja porque seu destino é essencialmente o mercado interno, fornecendo gasolina, óleo e combustível para as centrais elétricas. Não há solução de curto prazo em vista. O principal clérigo xiita convocou seu povo às armas, enquanto o Estado Islâmico prometeu marchar sobre Bagdá e sobre as cidades sagradas de Karbala e Najaf, onde se encontram alguns dos mais venerados santuários nacionais, nesta que é a mais séria crise que o Iraque, afundado no sectarismo, enfrenta desde a completa retirada das forças de ocupação norte-americanas.

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