quinta-feira, 12 de junho de 2014

Saber com sabor‏

Saber com sabor 

Carlos Alberto Dória lança livro que põe por terra mitos consagrados, como a origem da feijoada e a participação dos diferentes povos na formação da cozinha brasileira 
 
Eduardo Tristão Girão
Estado de Minas: 12/06/2014



"Gastronomia já é reconhecida como cultura há tempos. A discussão se dá em outro plano: é sobre quem vai pagar. Se é o Ministério da Cultura, o da Indústria e Comércio ou o das Relações Exteriores. Simples assim" . Carlos Alberto Dória, sociólogo


Quem se interessa ou trabalha com gastronomia certamente já se esbarrou com o que escreve Carlos Alberto Dória. O sociólogo paulistano, com seu blog (e-Boca Livre) e seus livros, tornou-se pensador central do assunto no país, propondo novas teorias para compreender a culinária nacional, desconstruindo outras até então consolidadas (índios, negros e brancos não criaram a cozinha do Brasil, para ele) e emitindo opinião sem receio sobre temas que vão do frango de granja ao legado de Ferran Adrià, passando pelo jornalismo gastronômico, salmão chileno e comida de rua. Formação da culinária brasileira (Três Estrelas), seu quarto e novo título, deverá consolidar o autor nessa posição.

A obra – um conjunto de reflexões sobre a cozinha brasileira – reúne sete ensaios e tem sua origem ligada ao primeiro deles, que lhe dá nome e foi originalmente escrito em 2008, transformado em livro pela Publifolha no ano seguinte. Ampliado, foi somado aos outros seis textos, quase todos inéditos e escritos a partir de posts em seu blog e de conversas no Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo (entidade que investiga a culinária brasileira com viés multidisciplinar, da qual faz parte), além das andanças por restaurantes no Brasil e no exterior. Como poucos na cena gastronômica, ele transita bem dentro e fora do ambiente acadêmico.

“Nesse livro, aprofundo-me na formação e caracterização da culinária nacional. Mais levanto problemas e apresento soluções. O modelo de produção intelectual em relação à culinária ainda é fragil no Brasil, sem universidade engajadas nisso e, quando há, fica restrito à história. Temos que revolver conceitos e encarar a nossa cozinha sem ser pelas óticas deixadas por Gilberto Freyre e Câmara Cascudo. Existem problemas novos para serem pesquisados. Não temos levantamento sistemático da culinária como na França, que serve de base para intelectuais e cozinheiros. Eu, por exemplo, tenho muita dificuldade para conseguir dados”, afirma Dória.

Algumas de suas ideias mais interessantes aparecem já no primeiro ensaio. A começar pela teoria que transforma em mito a versão mais popular da formação da cozinha brasileira: não houve, para Dória, contribuição efetiva de índios e negros nesse processo, visto que o colonizador rejeitou ou adaptou elementos do modo de vida indígena (mandioca e milho foram assimilados; dieta de formigas e cocção no moquém não) e os escravos, por sua vez, não viveram num ambiente com liberdade o suficiente para exercer escolhas culinárias.

Junto, cai por terra outra teoria: a feijoada não teria surgido nas senzalas, mas no Rio de Janeiro do fim do século 19, como receita de feijão enriquecido com carnes. “Isso é um negócio muito mais conceitual do que qualquer coisa, pois parte da premissa de que para criar uma culinária é preciso um ambiente de liberdade e escolhas de ingrediente, processos de trabalho. Mas chamo a atenção que há o desenvolvimento de uma culinária de rua em Salvador feita por negros livres, num sincretismo interessante, com uso indistinto de farinhas de milho e de trigo, respectivamente associadas ao índio e ao branco, por exemplo”.

Mais à frente, Dória critica a divisão sociopolítica do país como forma de enxergar suas diferenças culinárias. Ele acredita que isso atendeu às disputas entre elites regionais no século passado e serviu ao marketing turístico, que criou caricaturas acerca do que comem os mineiros, baianos, paraenses e gaúchos, entre outros. Para resolver isso, prefere não levar em conta fronteiras legais, propondo a utilização de manchas: amazônica, costa (com todo o litoral), recôncavo baiano (baseada nas comidas de santo e de rua e no dendê), sertão setentrional (sobretudo nordestina), sertão meridional (subdividida em regiões do pequi, mate e pinhão) e caipira (Minas Gerais, São Paulo e parte do Centro-Oeste).

Cumaru e puxuri

A renovação da cozinha brasileira, defende o autor, passa não só pela compreensão desses conceitos, mas também pela difusão de técnicas modernas e valorização de ingredientes ainda pouco explorados, mas de grande valor gastronômico, como a castanha de pequi, o chocolate de jatobá e o que chama de PANCs (plantas alimentícias não convencionais). “O cumaru, por exemplo, é uma semente usada há muito tempo no mercado internacional. Os franceses plantaram nas Ilhas Reunião, o Toddy tinha em sua fórmula e aqui na Amazônia não é usado em receitas, mas para fins medicinais e para banhos, o que o afasta da cozinha.” O mesmo ocorre com outra semente local, o puxuri, cujo aroma fica entre noz-moscada e anis-estrelado.

Apreciador do trabalho que desenvolvem os chefs Alex Atala (D.O.M., SP), Helena Rizzo (Maní, SP), Rodrigo Oliveira (Esquina Mocotó, SP) e Roberta Sudbrack (RJ), Dória avalia que o repertório da culinária que chama de “brasileira renovada” já é significativamente interessante, mas falta libertá-la da camisa de força da classe social: “Ela é prisioneira do público de alta renda, burguês. Falta ser popularizada, disseminada. Acredito que tudo o que fazem hoje chefs como Alex, Helena e Felipe Rameh servirá de modelo para uma próxima rodada, com restaurantes mais simples. Quando isso transbordar dos limites de classe, aí sim teremos um reecantamento”.

No forno


No momento, Carlo Alberto Dória está desenvolvendo livro sobre o milho com Ana Rita Suassuna. “Temos uma visão romântica do índio como aquele que contribui com a mandioca, como se todos só comessem isso. Mostraremos que o milho também está presente muito fortemente na culinária indígena”, adianta ele. Essa cozinha do milho, diz, foi muito importante para a formação da culinária caipira nos séculos 17 e 18. Além disso, ele também quer escrever sobre a antiga cozinha paulista e seu desaparecimento, que deu lugar à “gastronomia paulistana e seu ecletismo”.

Formação da Culinária Brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira
. De Carlos Alberto Dória
. Editora Três Estrelas, 280 páginas, R$ 42

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