sábado, 14 de junho de 2014

Acerto de contas [Livro de Paulo Cesar Araújo] - Ângela Faria

Livro de Paulo Cesar Araújo é a defesa bem fundamentada que o jornalista não teve oportunidade de apresentar durante o processo movido contra ele por Roberto Carlos


Ângela Faria
Estado de Minas 14/06/2014
Paulo Cesar de Araújo revelou a importância de artistas como Odair José e Paulo Sérgio para a cultura brasileira     (Bel Pedrosa/Divulgação)
Paulo Cesar de Araújo revelou a importância de artistas como Odair José e Paulo Sérgio para a cultura brasileira


Em 1898, o escritor Émile Zola mobilizou a França com o artigo J'accuse, advertindo os compatriotas sobre erros dos tribunais que levaram à condenação do capitão Alfred Dreyfus por espionagem e alta traição. Deu certo, a justiça foi feita. Com suas 522 páginas, O réu e o rei, lançado recentemente por Paulo Cesar de Araújo, é uma espécie de “Eu acuso!” verde-amarelo. O livro narra os bastidores da batalha judicial que levou à apreensão e proibição da biografia Roberto Carlos em detalhes (Planeta), banida há sete anos das vitrines.

Alegando que a obra não autorizada de Paulo Cesar invadiu sua privacidade e atingiu sua honra, o cantor e compositor moveu dois processos contra ele nas áreas cível e criminal. O biógrafo dedica 50 páginas de seu “J'accuse” à audiência de cinco horas no Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista — palco não apenas de uma sessão judicial, mas do epicentro da polêmica que abalaria o Olimpo da MPB em 2013. Frente a frente, “Rei” e “Réu” ouviram o juiz Tércio Pires afirmar que a Editora Planeta poderia até ser fechada. A inviolabilidade da intimidade e da imagem do biografado são garantidas pelos artigos 12, 20 e 21 do Código Civil Brasileiro. Livros dessa natureza só podem ser publicados com autorização do personagem em questão ou de seus herdeiros.

Paulo Cesar chegou a mencionar as garantias constitucionais à liberdade de expressão, mas o juiz avisou: “Não adianta, a situação de vocês é muito difícil”. Tércio Pires propôs um acordo, os advogados da Planeta recuaram diante da ameaça de pesadas multas e o escritor alega ter ficado sozinho, derrotado. Aos prantos, viu reduzidos a pó seus 15 anos de pesquisa. O livro proibido seria recolhido das lojas, banido das bibliotecas. Pascoal Soto, executivo da Planeta, chegou a brincar, sugerindo constar no acordo uma cláusula determinando que a autobiografia de Roberto fosse editada pela empresa.

Encerrada a audiência, começou a tietagem: o astro ganhou de presente o CD Pra te ver voar, gravado pelo juiz com o nome artístico de Thé Lopes. Magistrado, promotores e funcionários do fórum tiraram fotos com o Rei. Porém, o show não terminou ali. Do alto de seus 100 milhões de exemplares vendidos, Paulo Coelho, tão execrado pelos colegas, veio a público advertir, em artigo contundente na Folha de S. Paulo: não estava em jogo apenas a biografia do ídolo da Jovem Guarda, mas o destino de todos os escritores brasileiros. E não poupou a Planeta, responsável pela edição de seus livros no Brasil e em países de língua espanhola.

A Associação Nacional de Editores de Livros (Anel) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) ação direta de inconstitucionalidade questionando as limitações impostas aos biógrafos pelo Código Civil. O julgamento é esperado para este ano. Em 2013, astros reunidos no grupo Procure Saber — entre eles, Chico Buarque e Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento — vieram a público se solidarizar com Roberto e rejeitar mudanças no Código. Logo depois das manifestações de junho, a polêmica “liberdade de expressão” versus “direito à intimidade” caiu na boca do povo. Os (até então) “intocáveis da MPB” se viram expulsos da zona de conforto, acusados de defender a censura que os perseguiu durante a ditadura. O Procure Saber implodiu: RC deixou o grupo, Caetano passou-lhe um pito público. A polêmica ecoou no Congresso: em maio deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei derrubando a exigência de autorização prévia para publicação de biografias. A matéria tramita agora no Senado.

Popular

O réu e o rei é o advogado de defesa que Paulo Cesar de Araújo não teve naquela dramática audiência na Barra Funda. Autor de Eu não sou cachorro não (2002), obra fundamental sobre a nossa música popular, ele se tornou pesquisador respeitado ao defender a importância dos esnobados Odair José, Reginaldo Rossi, Nelson Ned e Waldick Soriano para a cultura brasileira. Lançada em 2006, a biografia de Roberto Carlos oferece rica análise sobre a trajetória do cantor e compositor, embora não seja um livro tão inovador quanto o ensaio de estreia.

Formado em história e jornalismo, o autor explora competentemente esses dois universos. Seu terceiro livro, porém, não é empolgante como os outros dois, embora seja bacana acompanhar os momentos “Paulo Cesar em detalhes”, em que ele conta sua vida e a saga para entrevistar ídolos da MPB e do povão. É justo que Paulo se defenda, explicando exaustivamente que não invadiu a privacidade do Rei. Neste “Brasil cidadão” meio de fachada, é também oportuno um livro em defesa da liberdade de expressão. Mas acompanhar o longo “passo a passo” de processos judiciais e do quiproquó em torno do Procure Saber é jornada cansativa, sem sabor da novidade. Afinal de contas, a cruzada do biógrafo foi fartamente registrada pela imprensa, foi parar até no Le Monde e no New York Times.

Em alguns momentos, incomoda um certo “complexo de fã” do autor em seu embate com o ídolo de infância. Pode parecer paradoxo para um livro autobiográfico, mas já ficou para trás aquele rapaz humilde vindo da Bahia, encantado em ser recebido por astros para suas entrevistas de faculdade. Não temos aqui uma “vítima” da ira dos deuses de nosso Olimpo musical, mas o respeitado pesquisador. Um sujeito determinado a lutar pelo direito de expressão, obrigado a enfrentar astros ciosos de sua privacidade e céticos em relação à agilidade do Poder Judiciário em garantir seus direitos. Nessa briga boa, saudável para a democracia, não há espaço para “coitadismos”. Se a Planeta abriu mão do autor de seu best-seller em 2007, a poderosa Companhia das Letras mandou para as vitrines o “J'accuse” de Paulo Cesar – munição para lá de útil enquanto os dados ainda estão rolando no STF e no Congresso.

Por falar em Olimpo da MPB, quem rouba mesmo a cena em O réu e o rei é João Gilberto. Paulo Cesar revela ter retomado a relação com o próprio pai depois dos conselhos telefônicos do bruxo de Juazeiro. Spoiler não vale, mas dá para contar: o pesquisador já teve a honra de carregar no colo aquele famoso violão... Graças a seu “biógrafo não autorizado”, Roberto Carlos pôde confirmar que João foi mesmo vê-lo na Boate Plaza, em 1959. O baiano bossa nova entrou discretamente, prestou atenção no desconhecido rapazinho capixaba que queria cantar como ele e gostou do que ouviu. Por incrível que pareça, Brigas nunca mais era o nome daquela canção.

O RÉU E O REI – Minha história com Roberto Carlos, em detalhes

. De Paulo Cesar de Araújo
. Companhia das Letras, 522 páginas, R$ 45

Nenhum comentário:

Postar um comentário