sábado, 9 de novembro de 2013

O escritor em perigo - José Castello


MEIAS VERMELHAS - Ana Cristina Reis

O Globo - 09/11/2013

Numa tarde
de domingo,
máfia da
Córsega,
Legião
Estrangeira,
viagem para
Cingapura e
visita a um

bunker

Conheci Murilo na casa do meu marido há seis anos. Ele contava de uma visita a um ambulatório para falcões; eu notei suas meias vermelhas; foi simpatia à primeira vista. Depois só o vi rapidamente. Então na semana passada nos esbarramos, e ele disse: “Vou ligar para nos encontrarmos”, o que de fato fez, talvez por ser natural deNiterói — os niteroienses parecem não ter sucumbido ao carioquês “A gente se vê”.

Murilo chegou pontualmente, com uma garrafa de pinot noir e meias vermelhas. Ouvimos o barulho do vento (foi um domingo pré-tempestade), ele olhou os porta-retratos, eu servi um queijo. Brindamos à memória do Luiz Paulo. Houve um instante de silêncio. Até o Murilo notar um enfeite.

— Da Índia? Eu passei três meses num retiro perto de Kalimpong. Era um preparatório de tantra. Não fui movido por impulso místico, mas curiosidade.

Murilo foi de ônibus de Darjeeling a Kalimpong. De lá, viajou em lombo de mula até o retiro. Havia meditação ao nascer e ao pôr do sol. Nos dias claros, via-se o Himalaia. À tarde, a montanha ficava toda rosada. “Era um lugar metafísico, isolado.” Dieta lactovegetariana, cultivavam a própria horta. Tinha número par de homens e mulheres, separados em bangalôs. Nas meditações, a guru reclamava que Murilo chegava atrasado. O relacionamento físico não era permitido. Havia a energização de chacras com cristais.

— Você deve estar ciente sobre os estágios do tantra? — perguntou Murilo.

— Olha, eu só ouvi já falar foi do sexo tântrico...

— O tantra é feminino. O elemento masculino é muito mais frágil do que o feminino. O homem se perde entre as mãos de uma mulher. Mas o sexo dentro do tantra é um meio, não um fim — esclareceu Murilo. — É como se fosse uma ioga do sexo, para expandir os sentidos. Porque só sexo não pode ser a resposta. O sexo ainda é um tabu. Como disse Einstein, é mais fácil você destruir o núcleo do átomo do que destruir o preconceito.

De Einstein, a conversa foi para a noção de infinito (o tempo começa sempre, nunca termina...). Mas rapidamente, ufa!, voltou para o retiro, o dia da despedida. A guru disse para Murilo não olhar para trás, mas ela ia lhe pedir uma coisa: que aguentasse os trancos da vida, e não chegasse atrasado.

— A experiência me valeu porque minha vida foi muito de altos e baixos — disse Murilo.

— Altos e baixos? Me conta — pedi.

Em 1946, ele saiu de Niterói para a rádio BBC de Londres. Em cinco anos, tinha o seu próprio programa. Viajou na estreia da ponte aérea Londres-Berlim. Viu o primeiro festival de Wagner e as primeiras Olimpíadas pós-guerra. Cumprimentou o rei George (o bisavô do filho de William e Kate). Conheceu o bunker de Hitler, onde Goebbels e a mulher assassinaram os seis filhos.

Depois de cinco anos na rádio, veio a impaciência. Com um amigo árabe formado em Letras Clássicas, viajou para Marselha com um plano: juntar-se à Legião Estrangeira. Preencheu a papelada, faltava só um exame, quando conheceu numa barraquinha de crepe uma córsica que o tirou do eixo. No dia seguinte, só com uma mochila, pegou um trem para Paris com a mulher com quem viveria um ano e meio, entre cenas de ciúme, prédio de cinco andares com só um banheiro, arma escondida dentro de sacola de supermercado e fuga de traficantes de drogas da Córsega.

Numa noite, com medo de desistir em alguma parada se fosse de trem, Murilo fugiu de avião da paixão e do perigo para embarcar num navio cargueiro que ia para Cingapura.

Não sei o resto da história porque ele precisou sair correndo.

Não podia perder a barca: sua mulher o esperava para jantar.

A idade do Murilo? 89 anos.

UM BELO RESGATE DA HISTÓRIA - JORGE BASTOS MORENO


Lei de incentivo aos laranjas - João Paulo

Lei de incentivo aos laranjas 


João Paulo
Estado de Minas: 09/11/2013


Quem concorda em dar dinheiro público para o Rock in Rio levante a mão     (Yasuyoshi Chiba/AFP)
Quem concorda em dar dinheiro público para o Rock in Rio levante a mão


Esta semana, na segunda-feira, uma reunião entre a “classe artística” e o deputado Pedro Eugênio (PT-PE) na Sala João Ceschiatti do Palácio das Artes teve como pauta o projeto que está tramitando há anos, que deve substituir a Lei Rouanet, ou, como é mais conhecida, a lei federal de incentivo à cultura. A nova legislação foi batizada de Procultura e já esteve em outras mãos antes de a relatoria chegar ao deputado pernambucano. O projeto já passou por debates públicos, comissões do Congresso e está prestes a ser votado. Quem convocou a reunião em Belo Horizonte foi o deputado Marcus Pestana (PSDB-MG), o que a princípio mostra um interesse suprapartidário na discussão.

Tudo estaria muito bem, democrático e transparente, se o objetivo da reunião e os atores presentes fossem representativos de todas as posições. Não eram. É preciso debater os mecanismos de financiamento da cultura levando-se em conta não apenas o aprimoramento da legislação, mas também a necessidade de sua extinção, em razão de seu histórico de descaminhos. A legislação que nasceu para incentivar a cultura, ancorada na carência de recursos do setor público, acabou por se tornar o mecanismo por excelência, o que gerou uma situação de completo desmantelo da área. Sem entrar em considerações que recuam no tempo e olhando para a frente, as leis de incentivo são hoje um freio na democratização, descentralização, qualificação e formação de mercado para a cultura no Brasil.

Quem participou do debate com o relator do Procultura, e que portanto se credenciava a apresentar soluções da categoria, eram, na maioria, pessoas ligadas muito mais à intermediação que à criação. E não se trata de um desvio dos responsáveis pela convocação da reunião. O que as leis de incentivo à cultura criaram de mais poderoso foi uma casta de atravessadores, gestores, captadores, produtores, prestadores de conta e outros profissionais que se interpõem entre os recursos e os artistas. Por isso não estavam presentes novos artistas e produtores independentes, que teriam muitas contribuições para o debate. O que se via era um estamento de pessoas que se profissionalizaram para ter acesso aos recursos intermediando uma relação que poderia fluir de forma mais direta e, por isso, menos onerosa. A fonte jorra dinheiro que vai sendo perdido em pequenos igarapés e vertedouros à margem da criação.

Levantamentos conservadores dão conta de que, de cada R$ 1 destinado a um projeto contemplado pelas leis de incentivo, apenas R$ 0,50 chegam de fato aos artistas, ficando a metade da verba na mão dos escritórios de “produtores”. Este é apenas um dos desvios plasmados pelo tempo. Não fosse um sorvedouro importante de recursos que poderiam ser mais bem aplicados, ainda representam uma transformação filosófica e política do setor, que hoje – como mostra a reunião na João Ceschiatti – põe burocratas falando em nome de artistas e artistas falando como burocratas para defenderem empresas das quais dependem.

O mais curioso é que há uma crítica universal às leis de incentivo. No entanto, quando se trata de modificá-la o discurso não é contra a norma, mas a favor de maior protecionismo. Em outras palavras, todos concordam que a lei é problemática, mas, em vez de acabar com ela em favor de novos mecanismos, preferem a lógica do “ruim com ela, pior sem ela”, com a defesa corporativa de setores que melhor transitam em sua lógica e balcões. Os chamados produtores querem, na verdade, que a lei jogue a favor deles, ainda que isso signifique prejuízo para o setor como um todo.

A Lei Rouanet e as legislações estaduais e municipais padecem da lógica de favorecer laranjas. Esse personagem finge que tem algo de seu para, com a posse vicária, anistiar o outro que não pode ter ou parecer que tem. Na cultura o processo é semelhante: o recurso público é repassado para empresa privada (na forma de isenção de impostos devidos), que o utiliza de acordo com seu interesse. Nos dois casos, o dinheiro não é de quem declara, mas de quem se retira do jogo por motivos torpes. Nos crimes de lavagem de dinheiro, a motivação é fugir da cadeia; nas leis de incentivo, fugir das responsabilidades.

O que o Estado, em todos os seus níveis de governo, faz é pegar dinheiro público e dar à iniciativa privada o direito de utilizá-lo em projetos culturais próprios, estampando para isso sua marca e auferindo ganhos sucessivos: tributários, de marketing e até comerciais (no caso da Lei do Audiovisual, as empresas utilizam recurso público e se tornam sócias de empreendimentos que podem se revelar lucrativos. Além disso, neste caso, para cada R$ 1 incentivado a empresa recebe R$ 1,25 de anistia fiscal). Com isso, o Estado abdica de sua função de formulador de política para se tornar sócio de projetos de exposição pública feito com sua grana (melhor: com o dinheiro do povo que repõe nos cofres o que as empresas deixam de pagar. E, o pior, ainda chamam esse processo de mecenato e os próprios produtores saem em defesa das empresas para ampliar seu patamar de isenção).

Mecenas de araque

Há, de acordo com a lei, três modalidades de recursos a serem aplicados na cultura: o fundo, o mecenato e outra modalidade de financiamento voltada para projetos lucrativos, que topariam receber “empréstimos” em condições facilitadas. Esta última modalidade, o Ficart, virou letra morta. Com isso, o que se arrecada de recursos para o setor fica destinado ao fundo e ao mecenato. No fundo estariam os projetos bancados diretamente pelo Estado, em razão da política cultural vigente. Na verdade, o fundo foi sendo engolido pelo mecenato, que são os recursos que as empresas “investem” em cultura e que formam a maior parte do bolo. O fundo, para a chamada “classe artística”, leia-se produtores vitaminados pelas leis de incentivo, é visto como território da experimentação e do folclore. Que não deve ser levado muito a sério.

Desvalorizar o fundo é, na verdade, exterminar a necessidade de uma política cultural digna do nome. O que o falso mecenato faz é, na verdade, financiar com recurso público interesses privados que atendem a um modelo quase sempre definido pelo que se chama de mercado. No entanto, os defensores do mercado são os primeiros a abrir mão do risco para se acobertar nos departamentos de marketing das empresas laranjas do setor cultural. E, quando surge alguma boa vontade, ela se dirige no máximo a defender a descentralização e o apoio a projetos mais ousados, como se isso fosse uma “concessão” à cultura.

A desfaçatez é ainda maior no caso dos institutos, fundações e centros culturais de empresas como a Fiat, Banco do Brasil, Petrobras, Itaú, Vale, Usiminas e outros, que capitalizam suas marcas com recursos públicos e posam de grandes mecenas. Na verdade, gastando o dinheiro do contribuinte, elas desenvolvem ações que fazem parte de sua política interna. O mesmo – e isso é ainda mais grave – se dá com a operação do setor público de cultura, que inscreve seus projetos na lei, aprova-os e capta recursos em empresas públicas e privadas com boa relação com os governos. O Estado faz minguar seu próprio orçamento e se iguala com outros produtores na busca de recursos que ele mesmo deixa de tributar.

Quem assiste a uma produção da Fundação Clóvis Salgado, por exemplo, vê sempre um filmete que diz que o espetáculo tem patrocinadores privados, quando na verdade tudo é produzido com dinheiro do povo. A mensagem correta deveria ser – como em todas as chancelas da lei de incentivo – “este espetáculo foi financiado com o seu dinheiro”. O povo é o patrocinador master da lei de incentivo, já que é seu dinheiro que cobre o que as empresas não pagaram e que o Estado gentilmente repassa para que a iniciativa privada faça sua graça com chapéu alheio. Ao triangular recursos para cumprir suas obrigações, o próprio Estado se tinge de laranja.

Por fim, as leis de incentivo estão quebrando mais duas pernas do sistema: a formação de público e o atraso na constituição de força de produção cultural sustentável. No caso da formação de plateias, pelo reforço da lógica da mesmice e do afastamento do público que não tem acesso a espetáculos incentivados e com ingressos muito caros. No caso do sistema de produção, pela postura “socialista reacionária” de tirar de todos para dar a poucos, fazendo da cultura um terreno defeso de riscos e, por isso, sem preocupação com o profissionalismo. Não é incomum nos projetos culturais “patrocinados” por empresas que quem menos ganhe seja o artista e o público. Fazer a roda girar gasta mais energia que deslocamento. A legislação de incentivo é entrópica.

As leis de incentivo contribuíram ainda para desmotivar o investimento direto das empresas (por que ela vai dar seu dinheiro se pode usar o que é devido como imposto, portanto recurso público?), prática que tem séculos na história da civilização, contribuiu para a formação do que entendemos como cultura e gerou um sentimento de reciprocidade entre a produção e a sociedade. Que as empresas não queiram dar sua contrapartida até se entende, mas que “produtores” se levantem para defender a isenção completa de impostos “investidos” na cultura é, pelo menos, de se estranhar. Foi, por exemplo, o que se viu na reunião de segunda-feira na João Ceschiatti. As empresas não precisam sequer levar seus pleitos de isenção total, os produtores fazem isso por elas.

Falta política


A lei de incentivo precisa ser extinta, a política cultural precisa ter mais recursos orçamentários, os mecanismos de controle devem ser mais rígidos e a participação social mais intensa. É a forma de começar a mudar o jogo. Para quem diz que a Lei do Audiovisual, com sua liberalidade extravagante, salvou o cinema, é bom lembrar que as produções, em sua maioria, não se pagam (cerca de 80% rendem menos na bilheteria do que custaram) e que o grande mérito do setor está na abertura de novos canais de exibição, sobretudo por meio de políticas públicas e cotas de exibição em salas de cinema e na televisão. Sem falar nos projetos para filmes de baixo orçamento, que multiplicaram as possibilidades não apenas em termos financeiros, mas também de linguagem. O que vem salvando o cinema é a política, não é a Globo Filmes.

O que é mais importante, e acredito que todos concordem com isso, é que a cultura deve ser o principal. Assim, é preciso aumentar o orçamento do setor (todos se lembram da briga de Gilberto Gil para elevar o orçamento a ínfimo 1% do bolo da União) e, sobretudo, fazer com que seja dirigido pelo interesse público. Isso significa desvincular o setor totalmente do marketing empresarial, preparar a infraestrutura, formar pessoal qualificado para a gestão, investir na diversidade e dar transparência em todos os passos do processo.

Outro desafio é criar novos parâmetros de financiamento, dos espetáculos às instituições (como os pontos de cultura), além de criar mecanismos de financiamento que dialoguem com o mercado e ajudem na formação de público, como o incentivo à gratuidade em espetáculos feitos com recursos públicos, vale-cultura, parceria com o setor educacional e outros. A política cultural precisa ainda – e não tem mostrado capacidade para isso – acompanhar as mudanças tecnológicas e políticas, que geraram novos processos e agentes. As bandeiras antigas do setor, sideradas pelo consumo, estão rotas, não servem mais. Por isso é até curioso ver velhos produtores falando tanto em desenvolver a indústria cultural, com a amnésia histórica que lança mão de um conceito frankfurtiano de forte potencial negativo (cultura produzida industrialmente, sem potencial inovador ou crítico) como sendo um horizonte desejável. Deus, o diabo e a Terra do Sol nos livrem da indústria cultural.

O exemplo de outros países pode servir para o debate sobre novos mecanismos. Outro caminho é ouvir a geração que vem fazendo arte de qualidade, democrática e consequente, com novos meios e estratégias de chegar ao público. Por fim, é preciso defender que a parceria não deve se limitar ao mercado ou aos ministérios da área econômica – o que é importantíssimo – mas também com o setor da educação. Quanto melhor a educação, mais abrangente a cultura. A Lei Rouanet já vai tarde. Que o Procultura seja uma transição a um novo tempo em que a arte seja mais importante que o marketing e o artista criador mais central que o captador.

Cultura é questão de interesse público, e assim deve ser tratada. A única saída republicana e democrática é a criação de fundos públicos de financiamento que permitam uma transição que deixe no passado o modelo que criou uma casta de atravessadores, deseducou a sociedade e viciou o mercado. Com a colaboração desinformadora dos meios de comunicação, é bom reconhecer. A cultura sempre soube se reinventar. A hora é agora.


 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

Pequena utopia - Carolina Braga

Livro organizado por Milton Ohata reúne textos e entrevistas de Eduardo Coutinho, além de artigos e ensaios sobre sua obra cinematográfica, escritos por especialistas de várias gerações



Carolina Braga


Estado de Minas: 09/11/2013 



Eduardo Coutinho não é de falar muito nem de se manifestar sem ser perguntado: respeito ao valor da palavra que está na origem de seu cinema   (Walter Craveiro/Divulgação)
Eduardo Coutinho não é de falar muito nem de se manifestar sem ser perguntado: respeito ao valor da palavra que está na origem de seu cinema


Ele diz que escolheu o documentário para não ter que decidir, soberanamente, onde colocar a câmera. Também costuma falar que fazer cinema é uma coisa muito chata, já que não dá status e, ultimamente, nem dinheiro. Mas Eduardo Coutinho é Eduardo Coutinho. É aquele que se diz angustiado toda vez que precisa falar em público ou explicar seu método de trabalho. Evita aviões e, por isso, não faz a menor questão de sair por aí badalando sobre suas criações. Foi seduzido pelo documentário no fim da década de 1960 e desde então enfrenta cruzadas a cada novo projeto. Afinal, como também costuma afirmar, “se você não se surpreender com o que faz, é melhor não fazer”.

No ano em que completa 80 anos, as esperadas homenagens fizeram fila. O cineasta ganhou reverências na Festa Literária de Paraty e na Mostra de Cinema de São Paulo, mas é em forma de livro que a celebração se dá de maneira digna e completa. Com 704 páginas, o calhamaço Eduardo Coutinho, organizado por Milton Ohata, está sendo lançado pela Cosac Naify e Edições Sesc. A publicação disseca a obra tanto da perspectiva do autor, como também da de 40 convidados, entre críticos e pesquisadores.

Não é um tipo de livro para ser encarado de forma linear. Isso depende da vontade do leitor. Você pode começar de onde quiser. Se entregar a uma leitura longa, detalhada, ou apenas consultar um trecho. A obra foi pensada para atender tanto quem quer conhecer como Coutinho pensa o próprio ofício, acompanhar a construção do raciocínio cinematográfico dele, como também descobrir os filmes e seus bastidores. Não tem nada cronológico.

O diretor de Cabra marcado para morrer, Edifício Master, Jogo de cena e tantos outros documentários marcantes é conhecido por estabelecer uma relação muito próxima com seus personagens, geralmente figuras anônimas. Daí nascem estilos – por que não falar em gêneros? – como o “cinema de conversação”, que o próprio Eduardo Coutinho também faz questão de reinventar. Se a ele o que mais interessa é o real, o livro procura revelar a verdade por trás da realidade. Não foi um caminho simples.

Antes de ser conhecido como cineasta, Coutinho trabalhou como copidesque do Jornal do Brasil. Naquela época, entre 1973 e 1974, atuou como crítico do periódico. Foi uma experiência breve: apenas 40 textos lançados pela primeira vez em livro. É curioso ter contato com as análises que fez para trabalhos de gêneros e nacionalidades variadas, inclusive a produção hollywoodiana da época.

Como Milton Ohata observa o conjunto de textos mostra os “altos e baixos da experiência rotineira de um espectador” que, de uma forma ou de outra, também reverberou nele enquanto cineasta. “Seus textos de crítica mostram quão armado ele estava para realizar bem”, pontua Milton. Coutinho abandonou a crítica quando entrou para a equipe do Globo repórter, experiência também marcante na carreira dele.

Coutinho carrega a fama de ser avesso a entrevistas. Faz sentido, para alguém que assegura não sair por aí falando sozinho. “Não sou louco; só falo se me perguntam. Só uma pessoa louca é que sai falando pela rua sem pedirem.” Eis outro valor do livro. Milton compila entrevistas publicadas entre 1976 e 2012. O diretor iniciou a trajetória no cinema no Centro de Estudos Cinematográficos em São Paulo, com passagens pelo Museu de Arte Moderna e pelo Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris, entre 1958 e 1960. Foi nessa época que começou as pesquisas para fazer Cabra marcado para morrer, longa que ficaria pronto 17 anos depois.

Além deste filme, considerado uma de suas obras-primas, as entrevistas tratam de Santo forte (1999) – o longa que o tirou do ostracismo – Edifício Master (2002), Peões (2004), Jogo de cena (2007) e Moscou (2009). São conversas publicadas em jornais e revistas do Brasil e exterior. “O meu cinema se interessa pelo que é precário. É um cinema que fala sobre o que é fazer cinema. Meu cinema não é heroico nem tem heróis. Muitos dizem que eu abandonei a política, que não faço cinema político. Eu sempre odiei o cinema militante”, afirmou em entrevista em julho de 2009.

Olhar alheio

Depois do resgate histórico na própria “voz” de Coutinho, Milton Ohata reuniu depoimentos de companheiros de jornada como Rolf Orthel, Zelito Viana, Ferreira Gullar, Vladimir Carvalho, Sérgio Goldberg, Jordana Berg, Cristiana Grumbach, Laura Liuzzi e outros. A eles coube a tarefa de descrever Coutinho. Já aos 27 críticos, professores e pesquisadores convidados ficou o encargo da produção de ensaios inéditos sobre a produção propriamente dita.

“A história de Eduardo Coutinho não autoriza otimismos apaziguadores. Nada mais distante dele do que narrativas que oferecem a ilusão de que é possível escapar do drama da condição humana. A cada filme que termina – muitas vezes antes de terminá-lo –, a dúvida retorna e se impõe. Não existem garantias de que sempre haverá uma saída. Ele gosta de uma ideia que atribui a Benjamin, segundo a qual os deuses só deram a esperança aos homens em consideração aos desesperançados: ‘Você precisa estar perdido para se achar, precisa ter perdido a esperança para ter esperança, precisa ter perdido tudo para que alguma coisa sobre. Senão é otimismo beato, é bobagem, é dialética vulgar, é deixar de ver as ruínas’. Avesso a projetos de redenção, seu cinema se contenta em tentar enxergar as coisas”, afirmou o cineasta João Moreira Salles.

Para Claudia Mesquita e Leandro Saraiva, o cinema de Coutinho é forte candidato a se transformar em régua e compasso da produção nacional, já que ele “vem burilando um ascetismo que, limitando ao máximo os recursos cinematográficos empregados, acaba por deixar exposta a relação básica, constitutiva de qualquer filme (documental ou não): a relação entre quem filma e quem é filmado”.

O que o livro organizado por Milton Ohata revela de maneira muito clara é o quanto Eduardo Coutinho procurou ser uma pessoa coerente com o que pensa. E como ele mesmo diz: não há nada fechado. As coisas, as pessoas e a vida estão sempre se contaminando. Transformando. Eduardo Coutinho não faz cinema por vaidade. É muito mais uma questão de sobrevivência.

“Eu não sou a escola, não sou a polícia, não sou político, mas queria encontrar uma forma para que possamos entender como é esse mundo de que tanto falamos. Por isso não falo de política. Como cidadão, tudo bem. Mas eu não estou interessado na utopia daqui a 100 anos. A pequena utopia é a seguinte: conseguir fazer cinema, conseguir sobreviver e tentar mudar a visão do mundo sobre certos temas. Se conseguir mudar alguma coisa no documentário, já será algo.”

Trechos
“Creio que a principal virtude de um documentarista é a de estar aberto ao outro, a ponto de passar a impressão, aliás verdadeira, de que o interlocutor, em última análise, sempre tem razão. Ou suas razões. Esta é uma regra de suprema humildade, que deve ser exercida com muito rigor e da qual se pode tirar um imenso orgulho.” Texto escrito para o catálogo do Festival Cinéma du Réel em 1992

“Eu não faço roteiros escritos, inclusive porque acho que se eu fizer um roteiro escrito não preciso mais filmar, já está feito o filme. Tento fazer filmes em que tenho perguntas a colocar e vou tentar saber quais são as respostas fazendo o filme. Geralmente o filme, quando dá certo, não termina com uma resposta-síntese. Então, eu não faço cinema para militantes, graças a Deus, e meus filmes terminam, suponho eu, com perguntas e reflexões e não com uma resposta.” Publicado em Projeto História, nº 15, PUC-SP, 1997.

FILMOGRAFIA

As canções (2011)
Um dia na vida (2010)
Moscou (2009)
Jogo de cena (2007)
O fim e o princípio (2006)
Peões (2004)
Edifício Master (2002)
Porrada (2000) – curta
Babilônia 2000 (1999)
Santo forte (1999)
Boca de Lixo (1993)
O fio da memória (1991)
Santa Marta – Duas semanas no morro (1987)
Cabra marcado para morrer (1985)
Exu, uma tragédia sertaneja (1979) – curta
Teodorico, o imperador do sertão (1978)
Seis dias de ouricuri (1976)
Faustão (1971)
O homem que comprou o mundo (1968)
O pacto – episódio de ABC do amor  (1967)

EDUARDO COUTINHO


. Organizado por Milton Ohata
. Editora Cosac Naify/Edições Sesc, 704 páginas, R$ 69,90

História pública no Brasil - Juniele Rabêlo de Almeida

Universidade e outros setores da sociedade articulam projeto em torno de novo relacionamento com o passado e a memória e apontam para a construção de uma rede de abrangência nacional



Juniele Rabêlo de Almeida


Estado de Minas: 09/11/2013 


Retratos de trabalhadores por Assis Horta: a história é feita por gente de verdade     (Assis Horta/Divulgação)
Retratos de trabalhadores por Assis Horta: a história é feita por gente de verdade


O conceito de história pública não é novo, mas a reflexão sobre sua especificidade no Brasil se expandiu nos últimos anos. Para além da divulgação de um conhecimento organizado e sistematizado pela ciência, a história pública revela a possibilidade de construção e difusão do conhecimento histórico – de maneira dialógica, integrada e responsável – por meio de centros de memória, museus, arquivos, televisões, rádios, cinemas, teatros, editoras, jornais, revistas, organizações governamentais e não governamentais, consultoria, entre outros espaços.

O debate sobre história pública no Brasil estimula reflexões sobre a atuação dos diferentes profissionais que lidam diretamente com as chamadas representações históricas. Vislumbra-se, ao integrar múltiplos campos e recursos, a história e seus diversos públicos em um caminho de conhecimento e prática. Experiências diversas dão mostra de como o debate sobre história pública continua a render frutos e pode ser ampliado e enriquecido, dentro e fora da academia.

Os pilares para construção da Rede Brasileira de História Pública foram construídos durante o curso de introdução à história pública, ocorrido na Universidade de São Paulo (USP), em fevereiro de 2011, promovido pelo Núcleo de Estudos em História da Cultura Intelectual. O curso resultou no lançamento do livro Introdução à história pública, que reuniu autores brasileiros e estrangeiros. Tais iniciativas demonstraram a fertilidade do tema e a disposição de um número expressivo de pessoas em constituir um foro que acolhesse os diversos trabalhos já em curso.

Em janeiro de 2013, foi lançada na internet a página da Rede Brasileira de História Pública (RBHP). No intuito de divulgar a RBHP, em julho, se realizou o simpósio temático “A história pública e os públicos da história”, durante o 27º Simpósio Nacional de História. E, em setembro de 2013, se reuniu o grupo de trabalho História pública e oralidades, no 10º Encontro da Regional Sudeste da Associação Brasileira de História Oral.

A expressão história pública ultrapassa a ideia de acesso e publicização de concepções em vigor na academia. É necessário o estabelecimento de pontes entre o saber acadêmico construído e o trabalho não científico, promovendo a difusão e o desenvolvimento de uma história que estimule a participação e colaboração das diversas comunidades fora/dentro do espaço universitário. Considera-se, assim, a necessidade da não supressão da ciência em favor da história pública, porém, o desejo de diálogo com as práticas e reflexões não acadêmicas compromissadas com a problematização da cultura histórica.

A história pública sugere práticas de responsabilidade político-social com a memória coletiva. Nesse sentido, a narrativa fílmica, a história oral e as inúmeras articulações visuais, verbais, sonoras e textuais podem contribuir para a elaboração e socialização da produção do conhecimento histórico. As necessidades e os interesses de uma comunidade podem inspirar projeto sem história pública envolvendo os membros dessa coletividade, pesquisadores acadêmicos e não acadêmicos em colaboração.

Buscam-se no Brasil, diante da elasticidade da expressão história pública, oportunidades para abordar temas como: a relação entre o saber histórico e a diversidade de seus públicos; o impacto social da produção acadêmica brasileira na área de história; o papel dos intelectuais no espaço público; a função da história pública na divulgação e no gerenciamento do patrimônio material e imaterial; o impacto das novas mídias sobre as estratégias de produção e publicização da história; os diálogos entre a história e outras áreas de conhecimento aplicado, como o jornalismo, o cinema, a gestão de organizações, o turismo; a relação entre história e literatura, em múltiplos âmbitos da narrativa histórica: as biografias, os testemunhos, a ficção histórica. Nessa seara se estabelecem os pressupostos para a coprodução do saber problematizado sobre o passado, em um exercício no qual diferentes linguagens e metodologias se complementam e ajudam na percepção histórica para além dos espaços acadêmicos e escolares.

A diversidade de leituras e procedimentos da história pública incide sobre o conhecimento histórico, não apenas preocupada em atingir um público maior, mas aprender com ele, com suas mudanças e demandas. A história pública deve levar em conta as necessidades, os movimentos e os imaginários das comunidades nas quais está inserido, e pode contribuir na organização e divulgação de interesses múltiplos.

. Juniele Rabêlo de Almeida é professora-adjunta da Universidade Federal Fluminense

José Newton Coelho Meneses - O sentimento de herança‏

O sentimento de herança
José Newton Coelho Meneses

Estado de Minas: 09/11/2013


Com frequência surgem discussões acaloradas motivadas por interpretações díspares da história. Há poucos dias, por ocasião da Feira do Livro de Frankfurt, em que o Brasil era destacado, o escritor Luiz Ruffato fez um discurso agressivo, associando nossa cultura, e nossa história a um genocídio inicial na colonização e a uma herança dessa prática na tradição construída por nós. Segundo o escritor, um costume fundamentado neste genocídio inaugural permaneceu na longevidade histórica de nossa constituição como nação. A aparente superficialidade desta interpretação histórica, em que se negligencia a força dinâmica da mudança no tempo e se apega a uma ideia de origem, a marcar indelevelmente o nosso repertório cultural é, para um historiador, assustadora. No entanto, ela compõe uma visão geral que se faz da história. À parte a busca agressiva de uma retórica comunicativa com propósitos políticos, o literato expressou, portanto, perspectivas comuns na construção pública da história, com força primordial na origem, no nascimento, na sequência cronológica de fatos, na herança, na permanência, na memória construída socialmente, nas oralidades.

Como ressalta Henri-Pierre Jeudy em O espelho das cidades, “o futuro do homem continua sempre pensado em referência a seu passado”. Neste ponto, público em geral e acadêmicos agem sob a mesma premissa: o passado é interpretado para o entendimento do nosso tempo presente e daquilo que pensamos construir como devir. A ideia de patrimônio tem o substrato da construção histórica e da memória social construída como ética, como representação da sociedade e, sobretudo, como diálogo interdisciplinar. Patrimônio cultural, assim, é interpretado como bem identitário, como herança e, até, como relíquia que se quer guardar. O exemplo de nossas cidades antigas, coloniais, equivocadamente chamadas de “históricas”, como se apenas elas o fossem, é exemplar da forma como populações preservaram suas paisagens na dinâmica da construção temporal com sentimentos de heranças e de relíquias, mas, sobretudo, como bens a serem memorizados.

E o que guardaram os habitantes de cada uma dessas cidades antigas? Guardaram sua história vivenciada socialmente no decorrer do tempo. Sim, essas cidades foram guardadas antes de qualquer lei patrimonialista, antes de qualquer política de educação patrimonial. Alguns argumentam que essa preservação foi devida à decadência econômica pela qual passaram essas urbes, o que é apenas uma mínima parcela de percepção das realidades e das histórias desses lugares. A falta de pujança desenvolvimentista é um dos inúmeros elementos que devemos considerar na análise dessa conservação. Outros tantos fatores, e dentre eles o valor identitário de uma herança que não se quis esquecer, é de fundamental importância em nossa consideração e em estudos sobre o patrimônio das cidades coloniais ou das cidades antigas de Minas Gerais, do Brasil ou do mundo.

O bem com valor de patrimônio, qualquer que seja a sua natureza, tem menos a ver com as interpretações de historiadores, etnólogos, arqueólogos, arquitetos etc. e mais ligação com o sentimento de herança, de legado, de identidade, embora não se possa diminuir à importância das interpretações acadêmicas. Essas devem seguir um percurso de identificação e submeterem-se, serem sensíveis, á memória social construída e em construção pelas comunidades que guardaram os bens interpretados. Aí, qualquer pasteurização interpretativa é execrável e não contribui com a preservação e muito menos com a sustentabilidade dela e sua valorização por quem quer conhecer e entender o sentido das construções identitárias.

A ideia de patrimônio deve nos dar a dimensão da consistência complexa da cultura. E, então, fica difícil separar o patrimônio cultural em categorias como “material” e “imaterial”. A vivência, a experiência humana não os separa. É preciso considerar essa ideia na sua construção social, na configuração de sua memória e de sua ética, na perspectiva da política e das escolhas coletivas. Para Hannah Arendt, em A crise da cultura, essas dimensões “imbricam-se mutuamente porque não é o saber ou a verdade que está em jogo, mas, sobretudo, o julgamento e a decisão, a troca criteriosa de opiniões incidindo sobre a esfera da vida pública e sobre o mundo comum”. Não se pode, assim, dimensionar o patrimônio de uma sociedade sem considerar as suas escolhas, a construção seletiva da memória social. É, portanto, em um fundamento ético que se percorre o caminho da interpretação dos patrimônios culturais. Tornar inteligível o patrimônio de um grupo social ou de um povo é, em síntese, dar sentido a um repertório de valores que identificam essa sociedade, pelo que ela construiu como sua identidade.

A leitura pública do que é história, do que a memória social guarda e do valor identitário das escolhas patrimoniais marca a interpretação pública do que é história e do que é patrimônio histórico. Os registros e tombamentos têm, necessariamente, que atentar-se para essa leitura social. É a experiência, a vivência que dão o norte interpretativo do que queremos patrimonializar.

Rede brasileira

A mesa-redonda História: vários públicos, várias narrativas, que será realizada dia 14, às 14h, no Museu Histórico Abílio Barreto, em Belo Horizonte, marca o lançamento da Rede Brasileira de História Pública (RBHP). O evento é organizado pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFF e pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Participam da programação o cineasta Helvécio Ratton, o jornalista João Paulo, a professora de museologia da UFMG Letícia Julião e o professor Pablo Oliveira Lima, da Faculdade de Educação da UFMG. Às 17h30 haverá entrevista pública e apresentação musical de Titane.


. José Newton Coelho Meneses é professor associado da UFMG

Fábulas fabulosas - Paulo Bentancur

Edição primorosa da obra de Esopo, com tradução feita diretamente do grego e ilustrações de Eduardo Berliner, revela um dos clássicos da literatura ocidental



Paulo Bentancur


Estado de Minas: 09/11/2013 


Ilustração de Eduardo Berliner para a fábula %u201CO burro, o corvo e o lobo%u201D, de Esopo   (Eduardo Berliner/Reprodução)
Ilustração de Eduardo Berliner para a fábula %u201CO burro, o corvo e o lobo%u201D, de Esopo
 

Nascido em Amório, hoje Turquia, não se sabe onde Esopo morreu (620 a.C. – 564 a.C), o que se sabe, e muito bem (a mesma certeza e quase as mesmas dúvidas que pairam sobre Homero), é que foi um gênio. Criou um gênero: a fábula. Histórias brevíssimas (no melhor volume já publicado em língua portuguesa, nada menos de 382 mini-histórias). Seria, também, uma espécie de precursor do miniconto (suas narrativas não passam, em média, de 20 linhas, com raras exceções). O que impressiona é, simultaneamente, enquanto encanta com a criatividade narrativa (atingindo a transcendência tanto do encantatório quanto do poético, tal a riqueza de imagens) também alcança um extenso sentido moral, ético, social, econômico, político e filosófico. Com tantos recursos e impactos, como abrir mão de ler simplesmente... fábulas?

Pelo menos as de Esopo, e completas!

No admirável ensaio introdutório, com fôlego e precisão, Adriane Duarte conta acerca de uma reunião entre o povo e um orador, e o orador sem receber a menor atenção do público. Até que se lembrou de uma fábula de Esopo e perguntou se queria escutá-la. Imediatamente a resposta foi afirmativa. E o orador lhes narrou que certa vez uma andorinha, uma enguia e Deméter iam por um mesmo caminho. Todos quiseram saber o que cada um fez. Resposta: a andorinha voou e a enguia mergulhou no rio. E Deméter, quiseram saber logo. “Ela está zangada com vocês, que deixaram de lado os assuntos políticos para se ligar em fábulas esópicas.” E assim a ensaísta realiza o belo desfecho no qual explica a força das fábulas e o quanto assuntos graves, comparados a elas, podem ser deixados de lado.

E mais: a verdade é que as fábulas, que na cuidadosa edição brasileira trazem sempre no fim uma conclusão moral, servem exatamente para isso, para acordar-nos, para alertar-nos. Vejamos esta: “O abeto e o espinheiro”:

“Competiam entre si um abeto e um espinheiro.
O abeto, para se vangloriar, disse: ‘Sou belo, alto,
de bom porte e útil na construção de navios e de
coberturas de templos. E você ainda tenta medir-
-se comigo?’. Ao que o espinheiro respondeu: ‘Se
você se lembrar dos machados e dos serrotes que
te abatem, também vai preferir ser um espinheiro’.”

Qual seria a conclusão? Elementar mas convincente: “A fábula mostra que na vida as pessoas não devem se deixar tomar pelo orgulho, uma vez que a existência dos simples é que se encontra realmente livre da maioria das ameaças”. Boa, não?

Impossível, assim, não seguir essas mais de 300 fábulas com um olhar que transcende o da imaginação. Ao prazer que elas proporcionam soma-se a consciência que elas trazem.

Literatura

Indo mais para o lado da análise literária, convém lembrar que basicamente essas fábulas trabalham com animais como protagonistas, e esses animais agem e reagem como seres humanos, vivendo a realidade precária da vida selvagem, do mato, dos elementos que os cercam, suas condições de conviver e sobreviver. No entanto, é exatamente dessa realidade pobre, limitada, que são extraídas lições que em muito palácio não seriam encontradas.

Além do mais – o que é fundamental para a história da literatura – é lembrarmo-nos que Esopo inventou um gênero. E por inexistente, aparentemente ingênuo. Ingenuidade de quem pensasse tal coisa. Tanto que as fábulas rapidamente ganharam o generoso espaço da divulgação, da visibilidade.

Mais populares, impossível.

Com o passar do tempo, dos séculos, influenciaram novos fabulistas, contadores de histórias e até o teatro.

Exemplos? Jean de La Fontaine (1621-1695), Hans Cristian Andersen (1805-1875), e, na cena teatral, Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière (1622-1673).

Embora a consistência da obra, não obstante um gênero quase discriminado, até o ilustrador e designer Eduardo Berliner pareceu muito bem compreender a grandeza do projeto. O volume é mais que lindo e moderno. Os traços das ilustrações são livres, se soltam – bem ao contrário do que estávamos habituados a ver em livros de fábulas, tudo “amarradinho”, bem-comportado.

Esopo – Fábulas completas, produzido numa edição luxuosa no melhor sentido e provocadora visualmente, tem tudo para ser um dos lançamentos do ano.



. Paulo Bentancur é escritor e crítico


 (Cosac Naify/reprodução)

Esopo – Fábulas completas

. De Esopo, tradução de Maria Celeste C. Dezotti
. Editora Cosac Naify, 564 páginas, R$ 69,90

Um lugar para cada verso [Fabiano Calixto] - André di Bernardi Batista Mendes

Um lugar para cada verso 

Fabiano Calixto reúne poemas de sua produção literária no volume A canção do vendedor de pipocas, que lança hoje em Belo Horizonte
André di Bernardi Batista Mendes

Estado de Minas: 09/11/2013


Lançamento do livro de Fabiano terá clima de sarau, com versos lidos por escritores e poetas       (Regiane Coelho/Divulgação)
Lançamento do livro de Fabiano terá clima de sarau, com versos lidos por escritores e poetas


Um poeta que entende, que gosta e vive a poesia. Um anarquista. Um poeta que sabe de cor o nome do vento. Fabiano Calixto acaba de lançar, pela Editora 7 Letras, A canção do vendedor de pipocas, livro que reúne sua múltipla produção poética, de 1998 a 2012, com poemas retirados dos livros Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Um mundo só para cada par (Alpharrabio Edições, 2001), Música possível (Cosa Naify/7 Letras, 2006) e Sanguínea (Editora 34, 2007).

Fabiano deixa impresso, no cimento, nos edifícios, nas entrelinhas, no substrato do real uma profusão de sons e tons que marcam e revelam intensidades e a crueza da paisagem urbana. Cada poema concentra grandes doses de vigor, de intensidades. Mas Fabiano, contudo, não deixa de lado algo importantíssimo, uma ternura, uma paixão que atinge o leitor com força e vigor. Poesia é, antes de tudo, também, celebração. Fabiano capta a força de ruídos, de rostos, o poeta capta , com sua rede feita de sonhos, a velocidade – a voracidade – e a melancolia que desce dos amores mais genuínos. Fabiano encontra, em sua utopia, um lugar para cada coração, para cada amante, para cada coisa. Existe um céu para cada verso. Mas, poesia é isto, o poeta alardeia: um grito lançado para um mundo surdo.

A cidade é fonte para a poesia de Fabiano, como também um pardal no telhado, a porta de um bar, fiapos de garoa, tiros imaginários, risadas, córregos fétidos, guimbas de cigarros e um carro de entulhos. As coisas escondem segredos. A poesia de Fabiano é propícia e faz surgir pássaros para o corpo das meninas.

O poeta sofre de uma “noite crônica do organismo”, sabe de situações que acordam todas as fomes, sabe que “na pior das hipóteses/ ainda há uma chuva/ que, de vez em quando,/ cai sobre esse declínio civilizado/ sobre essas palavras que saem ocas/ sobre essas máquinas”. O poeta, anárquico, contudo se abre, pronto para tudo que é verde. Fabiano sabe e tem ouvidos de ouvir o som da garoa, e tantos ecos de canções. O poeta tem braços, e neles cabem “um abraço/ um abraço não dicionarizado/ um abraço sem contusão/ abraço de silêncios e vácuo”. O que de melhor existe, nos poemas: um cheiro de grama depois da chuva, e várias tempestades. O poeta quer, no fundo, “adormecer os poemas”.

Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 1973, mas vive em São Paulo. Tem poemas publicados em vários jornais e suplementos no Brasil e no exterior. Traduziu poemas de Jim Morrison, Allen Ginsberg, John Lennon, Roberto Bolaño, Laurie Anderson, entre outros. Fabiano foi também editor da revista de poesia Modo de Usar. Seu próximo livro de poemas, Nominata morfina, será publicado em breve.

A canção do vendedor de pipocas tem lançamento hoje, com direito a boas surpresas: os poemas de Fabiano Calixto vão ser lidos por escritores e poetas mineiros como Ana Martins Marques, Fabrício Marques, Kiko Ferreira, Júlio Abreu, Michelle Campos, Renato Negrão, Simone Andrade Neves, entre outros.

A CANÇÃO DO VENDEDOR DE PIPOCAS
. De Fabiano Calixto
. Editora 7 Letras, 132 páginas, R$ 39
. Lançamento hoje, às 11h30, na Scriptum, Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi 

Mobilidade pós - Pateta Roberto Andrés‏

Mobilidade pós-Pateta 

Roberto Andrés

Estado de Minas: 09/11/2013


Roberto Andrés é arquiteto, organizador do Guia morador e editor de Piseagrama.     (León Ferrari/Reprodução)
Roberto Andrés é arquiteto, organizador do Guia morador e editor de Piseagrama.


Drummond foi o poeta das pernas e do bonde – e de mais algumas coisas. Captou em versos a presença social do carro elétrico que durante décadas circulou em Belo Horizonte e em outras cidades brasileiras. Uma genealogia do fracasso urbanístico no Brasil deveria se debruçar sobre o momento em que os bondes foram substituídos por “modernos ônibus”, em que o lobby do petróleo e a ânsia modernizante atropelaram um sistema eficiente, estruturado, não poluente e bastante simpático.

O bonde de Belo Horizonte chegou a ir à Pampulha, circulando sobre grama, como hoje fazem em diversas cidades os modernos VLTs – Veículos Leves sobre Trilhos, que é a sigla moderna para o velho bonde. As cidades europeias preservaram seus bondes. No Brasil, nosso ímpeto ultramoderno é de substituição e “progresso”, e acabamos não percebendo que somos nós os anacrônicos. Depois de muita quebradeira e reconstrução de vias, Belo Horizonte chegou ao “novo” BRT, uma cópia não atualizada do sistema de Curitiba nos anos 1970 – que hoje não precisaria das plataformas elevadas, porque já existem ônibus de piso baixo. Tudo parece construção mas já é ruína.

Adoniran Barbosa é conhecido por cantar o trem que sai às 11 para Jaçanã, mas sua cidade já é outra: a moça que vê do coletivo seu namorado plantar grama no barranco da avenida; Iracema atropelada por que andou na contramão; o ronco do trator que demole a favela; o Viaduto Santa Efigênia. Na década de 1950, quando o sambista começava a gravar seus discos, os bondes agonizavam em São Paulo e o recém-implementado Plano de Avenidas, de Prestes Maia, sacramentava que dali em diante o transporte seria sobre pneus.

Nos sambas de Adoniran, a modernidade brasileira já desceu mais um degrau na segregação social e urbana: o dono do terreno mandou derrubar a maloca, o oficial de Justiça entregou a ordem de despejo. Seu olhar tragicômico para a dinâmica da cidade se diferencia bastante do olhar dos poetas modernos, principalmente porque Adoniran olha pelo lado de quem perdeu, conta a versão dos afogados. E pergunta, solidário: mas essa gente aí, como é que faz?

O mundo de Adoniran soava nostálgico quando Itamar Assumpção compôs, nos idos dos 80, os versos que melhor resumem o resultado de décadas de progresso rodoviarista em São Paulo:

“Sampa / não há saídas / só ruas, viadutos, avenidas”.

Lacônica, a canção diz tudo com muito pouco. O duplo sentido da palavra saída esvazia de sentido a construção e alargamento contínuo de ruas, viadutos e avenidas. O colapso dos carros chegou. A ampliação impensada da malha rodoviária urbana já revela sua falência. Na mesma época o artista argentino León Ferrari, recém-chegado a São Paulo, realiza a heliografia Autopista del sur, um desenho de uma estrada em espiral abarrotada de carros. Como uma cobra que come o próprio rabo, o grande engarrafamento não sai do lugar. O progresso motorizado gira em círculos.

Trinta anos depois de Itamar e León, a situação chegou ao limite do suportável, embora o pensamento político tenha avançado pouco. Obras recentes em Belo Horizonte como a Linha Verde, a duplicação da Avenida Antônio Carlos e o Boulevard Arrudas poderiam ter sido gestadas no desenvolvimentismo do biônico Paulo Maluf nos anos 70. E o novo plano de mobilidade da BHTrans prevê mais de R$ 1 bilhão para outras obras de construção, alargamento e manutenção de vias, enquanto pouco investe na melhoria do transporte público.

Viadutos colossais cortam bairros inteiros, arrasam vizinhanças, torram milhões em construção e manutenção, e logo que são inaugurados já abrigam engarrafamentos cada vez maiores. Não bastasse, na maior piada de mau gosto da história literária, a essas “obras de arte” foram dados os nomes dos escritores e poetas modernos, o que deve ter causado tremores de terra em notáveis cemitérios estado afora. Pior que ser difamado em biografia não autorizada é virar nome de viaduto.

Um viaduto é a melhor maneira de conectar dois engarrafamentos. Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, não se cansa de repetir: “Nenhuma cidade no mundo melhorou o trânsito aumentando espaço para carros”. Hoje cidades como Paris, Seul e Nova York estão demolindo grandes estruturas rodoviaristas e devolvendo para os pedestres os espaços da cidade. Como aquela Iracema que “hoje vive lá no céu”, as políticas de mobilidade em Belo Horizonte estão andando na contramão.

Quem seria o poeta deste mundo caduco? Em nossas cidades doentes, muitos passam mais de um mês do ano no trânsito. Os acidentes crescem e a poluição do ar gerada pelos carros já mata mais do que o cigarro, a Aids ou a dengue. Os espaços públicos ficam relegados e destruídos, rios são cobertos pelo asfalto triste e cinza. Não é por acaso que o transporte foi a fagulha das manifestações de junho. Será preciso uma revolução na mobilidade’’.

Aparece então a canção da banda Graveola, hit de um tempo e de uma geração que quer se libertar das catracas e do desamor engarrafado: “Mobilidade pelo mundo/ Amabilidade/ Amabilidade pelo mundo/ mobilidade.”

É preciso superar a síndrome do Pateta, o personagem afável que fica raivoso e intolerante logo que entra em um carro, para que a mobilidade volte a ser um gesto afetivo, uma disponibilidade para a convivência e o encontro. Uma ideia cujo tempo chegou é a Tarifa Zero, a coletivização dos custos do transporte. Um sistema mais eficiente e justo, que aponta para uma cidade mais saudável, segura e com mais riqueza. Mas é também uma superação da ênfase operária do transporte, um convite ao deslocamento descompromissado, à liberdade de ir e vir, a uma cidade mais afetiva, em que o ócio extravasa o tédio televisivo e ganha as ruas. Assuntos para um próximo texto.

PERFIL/FERNANDO BICUDO/DIRETOR DE ÓPERA » Tudo e mais um pouco

Responsável pela concepção e direção cênica de Um baile de máscaras fala de sua trajetória na arte



Ana Clara Brant


Estado de Minas: 09/11/2013 


Anote as atividades que Bicudo já desempenhou: cantor, bailarino, apresentador de TV, economista, diplomata, fazendeiro, estilista e cenógrafo, entre outras (Rodrigo Clemente/EM/D.A Press)
Anote as atividades que Bicudo já desempenhou: cantor, bailarino, apresentador de TV, economista, diplomata, fazendeiro, estilista e cenógrafo, entre outras

Um especialista em generalidades. Um pesquisador da vida. Um guerrilheiro do belo. Essas são três expressões que resumem com propriedade quem é o carioca Fernando Bicudo, de 67 anos, que desde o fim do setembro está em Belo Horizonte, onde é o responsável pela direção cênica e a concepção da ópera Um baile de máscaras, que tem última récita hoje, no Palácio das Artes.

Se bem que para quem já foi cantor, bailarino, apresentador de televisão, economista, diplomata, fazendeiro, negociador internacional, estilista, figurinista, cenógrafo, diretor de teatro e de ópera e produtor de cinema, teatro e televisão, até que essas definições caem muito bem.

“Ah, e ainda tem arqueólogo amador, já que estou escrevendo um livro que deve se chamar Pré-Brasil e vai contar um pouco da história de vários sítios arqueológicos do país. Além dele, estou escrevendo as minhas memórias, com o nome previsto de Meus primeiros 70 anos, que devem ser lançadas em 2016, quando vou virar um setentão”, avisa.

 Bicudo sempre viveu intensamente e adianta que ainda tem muito a fazer. “Depois que você chega numa certa idade vai acumulando um monte coisas. E sempre fui curioso, por isso fiz muita coisa. A vida é uma só e tenho vários interesses”, completa.

Na temporada mineira, além de colecionar aplausos, críticas elogiosas e boa repercussão de sua ópera, Fernando Bicudo ainda leva na bagagem para o Rio o carinho dos familiares que vivem aqui, uma irmã e um irmão. BH também marcou sua infância, já que uma tia morava na capital mineira nos anos 1950. “A casa dela era na Avenida do Contorno, e eu jogava bola lá. Meu avô tinha uma fazenda em Bicas, onde passávamos as férias. Sempre tive uma ligação forte com Minas, tanto na vida pessoal quanto na profissional”, destaca.

Filho de militar e bailarina, ele acabou satisfazendo o desejo do pai, que fazia questão que Bicudo tivesse um diploma. Ele optou pela economia, porque queria entrar para o Itamaraty, e ganhou a vida com essa profissão. No entanto,  descobriu-se mesmo nas artes, ofício da mãe. “As minhas memórias mais antigas são artísticas. Mamãe era bailarina, pintora, estilista, e ela é, até hoje, minha musa, incentivadora e minha maior inspiração. Mas nunca quis ser artista; achava que arte era algo sublime, uma espécie de sacerdócio. Tinha uma admiração muito grande, mas não achava que ia dar conta de ser assim”, conta.

Nos anos 1970, com o endurecimento do regime militar no Brasil, Fernando Bicudo decidiu se autoexilar no Canadá, onde foi chefiar a trading do Banco do Brasil em Toronto e, posteriormente, trabalhar na embaixada do Canadá. E foi lá que acabou conhecendo as grandes companhias. Um belo dia, a esposa do cônsul sugeriu que Bicudo, notório por ser festeiro, organizasse um baile de carnaval. Era o início dos grandes eventos. “Fiz a festa em benefício da Ópera do Canadá. Eles emprestaram roupas e foi um sucesso. Até hoje tem esse baile em Toronto. A partir dali as coisas foram acontecendo. Nunca planejei nada. Sempre foi assim na minha vida”, frisa.

Renovação Depois de cinco anos na América do Norte, ele regressou ao Brasil nos anos 1980. Deixou uma empresa que abriu em Nova York, onde era estilista de calçados, e veio assumir a direção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi durante sua gestão que o diretor Gerald Thomas despontou na produção O navio fantasma, de Richard Wagner. Bicudo lembra que já conhecia e admirava o trabalho do casal Daniela e Gerald, e foi então que os convidou para produzir a ópera. “Queria um Navio... que não fosse muito careta e os dois adoraram a ideia. Estavam acostumados com teatro alternativo e público de 60, 70 pessoas, e de repente se viram no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com plateia de 2,5 mil pessoas. Foi um risco que deu certo. O navio fantasma deu o que falar”, recorda.

Fernando Bicudo tem outros feitos importantes, como a reabertura do Teatro Amazonas, nos anos 1990, que causou imensa repercussão nacional e internacional, e a restauração do Teatro Arthur Azevedo, de São Luís, onde ficou por 12 anos. “Foram dois trabalhos dos quais me orgulho. No caso do Amazonas, por exemplo, foi um momento tão importantes que tivemos mais de 60 veículos de comunicação do mundo todo cobrindo a reinauguração. Para se ter uma ideia, foi na mesma semana em que o Collor assumiu a Presidência. Ele era o primeiro presidente eleito em 30 anos e ganhou uma coluna sem foto na revista Times. E eu ganhei uma página inteira e uma foto”, lembra.



Arte sofisticada para multidões


Também é o responsável pelo recorde mundial de público de ópera, meio milhão de pessoas em Aida, de Verdi, apresentada na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, em 1986. A produção foi  montada no Metropolitan Opera House de Nova York e ganhou o Grammy de Melhor Gravação de Ópera, em 1989, com Placido Domingo e Aprile Millo. “Lembro-me de que ela foi encenada num domingo, no mesmo dia da final do Campeonato Carioca, entre Flamengo e Vasco. Enquanto a ópera deu 500 mil pessoas, o Maracanã teve 65 mil”, gaba-se ele, que é o atual residente da Associação Brasileira de Artistas Líricos, presidente da Associação de Canto Coral do Rio de Janeiro e também da Ópera Brasil, projeto cultural que se propõe a ser a primeira escola do Brasil a formar artistas completos, com cursos de teatro, dança clássica e popular, artes circences e música (canto e instrumentos).

Produtor de filmes como Kuarup, de Ruy Guerra, e A grande arte, de Walter Moreira Salles, o ex-diplomata e economista comandou a abertura da Eco-92, o espetáculo Amazônia viva, no Maracanãzinho, que foi transmitido para 55 países. E quando questionado qual trabalho que mais o enche de orgulho, confessa que ainda não está em seu currículo. “Ainda tenho um sonho dourado que, infelizmente, não posso falar. Se Deus quiser, hei de realizá-lo. Não posso nem dar dica. É um sonho que tenho, que talvez seja até uma missão. A cultura tem uma importância que os nossos políticos não reconhecem. E acho que uma das minhas missões de vida talvez seja justamente trazer essa consciência para os nossos governantes”, conclui.


Três perguntas para...
Fernando Bicudo


Como a ópera surgiu na sua vida?
Como mamãe era bailarina e cantora, frequento o Theatro Municipal do Rio desde os 6 anos. A primeira ópera que vi foi Madame Butterfly. Quando entrei no Municipal, parecia que estava entrando no céu. Olhei aquele teatro e fiquei deslumbrado. Era o paraíso. Como o frequentava semanalmente, era rato do teatro, me chamaram, quando tinha uns 12 anos, para fazer parte da claque. Tinha uma pessoa que comandava e assim que ele batia palmas a gente imitava (risos). Era um barato e ainda entrava de graça. E, curiosamente, muitos anos depois acabei virando diretor do Theatro Municipal.

Como vê o atual cenário do gênero no Brasil?
Sou de um tempo em que o Theatro Municipal recebia 25, 26 óperas por ano. Quando era garoto, vi temporadas incríveis com grandes artista brasileiros e estrangeiros. Cresci nesse ambiente. E depois foi só diminuindo… Nos anos 1950, o Municipal do Rio era considerado um dos cinco melhores do mundo. Todos os cantores do planeta queriam vir para cá e para o Colón, de Buenos Aires. Hoje, infelizmente, não temos mais isso. Mas acho que Belo Horizonte está ótima nesse sentido. Tem tido montagens incríveis nos últimos tempos. É até mesmo melhor que o Rio de Janeiro.

Como está sendo para você a temporada de Um baile de máscaras?
Olha, fiquei tão satisfeito que gostaria de levar Um baile de máscaras para o Rio. Mas é complicado, porque é uma grande produção e tem toda uma logística. Essa montagem tem tido uma repercussão maravilhosa. Muita gente veio do Rio, de São Paulo, e não só os ‘‘operamaníacos’’. Acho que isso é um demonstrativo de que Minas precisa se valorizar mais. Mineiro é meio tímido e nas artes você não pode ser assim. E aqui tem exemplos maravilhosos, como o caso do Grupo Corpo, que viaja o mundo inteiro. Mas com companhia de dança isso fica mais fácil. No caso da ópera, por envolver muito mais gente, é difícil. Mas é hora de ter um reconhecimento maior do que é feito aqui. 

Arnaldo Viana-Viagem da delicadeza‏

Arnaldo Viana - arnaldoviana.mg@diariosassociados.com.br


Estado de Minas: 09/11/2013 



Faltava pouco para as 22h. Cidadão, na faixa dos 60 anos, faz sinal para ônibus circular Contorno, perto da Praça Floriano Peixoto, no Bairro Santa Efigênia. Manca da perna esquerda e sobe com dificuldade a curta escada para entrar no coletivo, que roda no sentido Saudade. Depois de se sentir firme, com as mãos agarradas ao balaústre, encara o motorista e dá boa-noite. A resposta é um olhar espantado, seguido de um grunhido. Passa pelo cobrador, paga a passagem e não se sente estimulado e dar outro boa-noite.

O veículo amarelo arranca. A carroceria montada sobre chassis de caminhão sacoleja e o barulho de lata batendo sobre lata fica mais perceptível com o coletivo quase vazio. O passageiro sessentão fica de pé. Vai descer logo. Depois de o ônibus cruzar a Avenida Getúlio Vargas, puxa a corda do sinal de parada. Quer o ponto que fica adiante, na esquina da Rua Gonçalves Dias.

O carro encosta, o cidadão começa a descer devagar por causa da perna dolorida. Quando mal encosta o pé esquerdo no asfalto, a porta do coletivo é fechada. O passageiro meio idoso fica com a perna e o ombro direito presos. Não consegue se desvencilhar. Vem o pânico. E se o chofer der a arrancada? Esforça-se ao máximo para escapar, enquanto pessoas que esperavam outro ônibus começam a gritar para o motorista, que finge não ouvir. Um safanão, que quase o joga no chão, o livra do incômodo.

As pessoas perguntam se está machucado. Responde que não. Mas o que houve?, quis saber alguém. “Talvez porque eu tenha sido atrevido a ponto de dar boa-noite ao motorista”, respondeu o passageiro, sentindo ainda mais forte a dor na perna esquerda por causa do esforço para se livrar da porta. Mas o senhor parece ferido”, diz uma senhora. “Não, não é consequência do incidente. É excesso de ácido úrico no sangue”, responde o cidadão antes de seguir avenida abaixo arrastando a perna.

O relato é verídico e tem o propósito de ilustrar a falta de intimidade do brasileiro com a delicadeza. Falta de intimidade na prática e no recebimento. O motorista do coletivo, não acostumado a receber cumprimentos durante a jornada de trabalho, recebe um boa-noite com espanto e resmunga uma resposta não por má educação, mas por constrangimento. No caso do circular Contorno, deixou o passageiro à vontade para a ironia, porque o incidente da porta nada teve a ver com o boa-noite.

Há exatas duas semanas, este jornal publicou reportagem da menina Julia Fernandes Rodrigues Macedo, de 9 anos, que juntou lacres de latinhas de refrigerante e cerveja para encher 80 garrafas PET de dois litros e trocá-las por uma cadeira de rodas, que foi doada a uma creche para crianças com paralisia cerebral. A menina definiu a iniciativa como um ato de delicadeza. Mas não apenas se expressou. Demonstrou no olhar o que estava dizendo.

Então, não adianta ser apenas caridoso, educado, cortês, estender a mão a alguém ou comportar-se como um cavalheiro. É preciso completar a ação com delicadeza também no olhar, nos gestos. Os orientais, com seus mais de 4 mil anos de cultura, sabem fazer isso muito bem. Cedem o lugar no ônibus ou no trem a um estrangeiro e pode conferir que o gesto está expresso na forma de falar, no brilho do olhar e no sorriso de satisfação. Não o fazem por dever ou por obrigação. É apenas delicadeza, pura delicadeza.

O senhor meio idoso talvez não tenha demonstrado delicadeza no cumprimento ao motorista. Compreensível. Deve-se levar em conta o sacolejar do ônibus, que exige atenção e cuidado redobrado do passageiro para não se desequilibrar. Não foi delicado a ponto de lembrá-lo da delicadeza. E que delicadeza está acima de todas as coisas, inclusive da pressa, do estresse e do cansaço. Delicadeza… coisa para se pensar, cultivar…

Com amor e dor [Marcelo Jeneci] - Carolina Braga

Marcelo Jeneci lança seu segundo disco, De graça, com parcerias com Arnaldo Antunes e Luiz Tatit. Show tem estreia nacional em Belo Horizonte na semana que vem


Carolina Braga

Estado de Minas: 09/11/2013 



O que eu tento dizer no De graça como um único recado é: presta atenção na sua vida. Se jogue. Tem intensidade, tem sofrimento, mas vai porque é extraordinário viver, ser e não ser    . Marcelo Jeneci, músico     (Daryan Dornelles/Divulgação)
O que eu tento dizer no De graça como um único recado é: presta atenção na sua vida. Se jogue. Tem intensidade, tem sofrimento, mas vai porque é extraordinário viver, ser e não ser . Marcelo Jeneci, músico


De bermuda, sem camisa, deitado no sofá, ao telefone. Rindo. Para Marcelo Jeneci, a cena sintetiza a sensação de dever cumprido. A merecida calmaria depois da tempestade. “Foi um inverno maluco. Tive uns surtos”, reconhece. Digamos que eles foram necessários para De graça, o segundo disco de carreira, existir. No momento em que poderosos brigam por migalhas de uma indústria já falida, Jeneci aparece com uma constatação simples: o melhor da vida é de graça.

E é assim, sem cobrar um centavo, que disponibiliza a audição do novo álbum na internet. No dia 15, ele estará no Sesc Palladium apresentando o novo repertório. O nome, porém, vai além da gratuitade monetária. “Tem a ver com o impulso da criação, que é de graça. É como a paixão, a necessidade da fala, a amizade. Tudo isso é de graça”, ressalta. É a exaltação da graça como brincadeira, como dom, como humor. Uma síntese do que ele pensa sobre a vida. “Tô te chamando pra acordar/ e desfrutar a graça de viver/ aumente o sonho devagar/ e olhe em volta/ Para perceber /Que o bom da vida /é de graça /e acha graça/ quem quiser achar”, canta na música que dá nome ao álbum.

Aos 31 anos, Marcelo Jeneci tem estrada na música. Gravou e tocou com Arnaldo Antunes e Chico César e compôs com Vanessa da Mata, José Miguel Wisnik e Luiz Tatit. Compositor nato, logo percebeu que poderia também interpretar. Com a expectativa de estreante, lançou o primeiro disco, Feito pra acabar (2010). Vendeu 30 mil exemplares. Pra sonhar virou trilha sonora de casamento com mais de 2 milhões de visualizações no YouTube.

Porém, sempre chega aquele momento de virar a página. “Feito pra acabar ficou com uma cara muito alegre, fofa. Para mim já não era mais isso”, comenta. De graça chega com a missão de fazer contrapeso à alegria. “Porque já sofreu, já doeu, já foi lá no fundo, voltou e está aprendendo a lidar com isso”. Se tem uma palavra que define bem o álbum, para Jeneci é imersão.

“Todo trabalho que carrega profundidade depende de mergulho”, garante. Assim foi feito. Para gravar o disco, Jeneci deixou a São Paulo natal e passou o inverno no Rio de Janeiro. A única coisa que fazia era pensar, experimentar e gravar as novas canções. O multi-instrumentista não é o tipo que acredita na inspiração mágica. Ela pode até vir de graça, mas depois de muito esforço. “Você ficar fazendo, refazendo a mesma ideia, insistindo na elaboração. Acredito muito mais no trabalho de fazer, na insistência do refazer, do que na espera por uma inspiração.”

Influências


Nas 13 faixas é impossível não reconhecer na sonoridade referências de Roberto Carlos e da Jovem Guarda, influências que ele nunca renegou. Os parceiros são antigos. Com Isabel Lenza fez seis canções (Alento, De graça, Temporal, Pra gente se desprender, A vida é bélica e Julieta); duas com Arnaldo Antunes (Alento, Tudo bem tanto faz); e uma com Arthur Nestrovski (Só eu sou eu), Rafael Costa (9 luas) e Luiz Tatit (O melhor da vida). Sozinho assina três faixas: Nada a ver, Um de nós e Sorriso madeira. Os arranjos orquestrais são de Eumir Deodato.

“Ser músico é uma coisa, ser compositor é outra. A maioria dos compositores não é músico. É uma linguagem diferente, coisa de prática mesmo. Quanto mais o tempo passa, percebo que tem a ver com observação, busca por uma ideia. É um trabalho de pesquisa. Meus parceiros nesse disco são os que mais estavam convivendo comigo”, conta. Embora possa parecer que há um conceito que perpassa todo o disco, Jeneci garante que não seguiu regras para fazer De graça. “Brinco dizendo que esse disco me fez um bem horrível. Ao mesmo tempo que me fez um bem danado, mas foi um processo bem pesada”.

Marcelo Jeneci se considera um artista popular e, como tal, a única expectativa que tem é que suas criações possam chegar ao maior número de pessoas. Daí ganha força a ideia da audição gratuita, do planejamento de um show que seja viável para poder rodar o país inteiro. “Vou adorar que ele se multiplique”. Jeneci confessa que na época do primeiro disco sentiu um frio na barriga pensando no tipo de retorno que poderia receber. Fruto de insegurança e ingenuidade.

“Fiz nesse disco tudo que podia fazer. É muito verdadeiro. É uma fotografia muito honesta. Queria muito ouvir com os meus pais, meus amigos e distribuir na rua”, diz. Como ele já disse muito bem: felicidade é só questão de ser. Mesmo que seja simplesmente estar de bermuda, sem camisa, jogado no sofá, ao telefone. “Estou muito bem!”

Cenário em transformação

Para Jeneci e outros músicos de sua geração, a transformação no modo como se consome hoje uma obra intelectual tem a ver com a sociedade. Crise não seria uma palavra adequada. Melhor falar em resgate, retorno de uma lógica vigente nos anos 1950 e 1960. “Esse boom do showbusiness dos anos 1980 e 1990 é que deixou tudo descompensado”, garante.

Na visão dele, à medida que a música embarcou na onda da indústria, entraram no circuito profissionais que têm mais a ver com o dinheiro do que com a arte. “Como o dinheiro está saindo desse lugar, só está restando quem ama fazer música.” Como a injeção financeira já não é mais a mesma, o cenário está sendo redesenhado.

“Estamos em um novo século, um novo momento, um novo contexto, contando com a velocidade da informação. As coisas vão se adequando. Não me desespero”, diz. O próprio Jeneci cuidou dos detalhes de como o disco seria disponibilizado na internet. No site oficial não é possível ouvir as faixas separadamente. Foi uma decisão dele colocar o disco inteiro, em sequência, para a audição gratuita. “Oferecer o disco para a pessoa ouvir e depois avaliar se quer comprar é um bom caminho. Quem quiser comprar vai ter motivo para isso”, conclui.

No palco

Belo Horizonte será a primeira cidade a receber o show de De graça. Será dia 15, no Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro, (31) 3270-8100). “Algumas coisas que não deram tempo de ajeitar no disco estou melhorando para o show”, adianta. Apesar do nome do espetáculo, anote o preço dos ingressos, que já estão à venda: plateia 1, R$ 90 (inteira) e R$ 45 (meia); plateia 2, R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia); e plateia 3, R$ 60 (inteira) e R$ 30 (meia).