domingo, 18 de agosto de 2013

Só sobrou uma poça fedida e fumarenta - VIRGINIA WOOLF - tradução DENISE BOTTMANN - ilustrações QUENTIN BELL

folha de são paulo
IMAGINAÇÃO

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
Charlestonianos eminentes: Clive
SOBRE O TEXTO As páginas aqui reproduzidas integram edição fac-similar do que se acreditam ser os últimos inéditos da inglesa Virginia Woolf (1882-1941). "The Charleston Bulletin Supplements", recentemente editados em livro no Reino Unido pela British Library (org. Claudia Olk, 144 págs., R$ 57,80, sob encomenda), era o nome de um jornal doméstico produzido entre 1923 e 1927 pela escritora e seu sobrinho Quentin Bell (1910-96), que mais tarde se tornaria seu biógrafo. O teor humorístico e "nonsense" dos textos em que a dupla satirizava familiares, como Clive Bell, pai de Quentin, traz à luz um lado cômico quase desconhecido da autora de "Mrs. Dalloway" (1925).
VIRGINIA WOOLF
tradução DENISE BOTTMANN

1. CLIVE E O ACORDEÃO
Mr. Bell confundindo um acordeão com um gato, ou um gato com um acordeão; ninguém sabe direito, pois aquilo soltou um guincho e só sobrou uma poça mienta medonha, fedida e fumarenta.
2. RESGATA MARY
Súbito sumiço de Mrs. St. John Hutchinson, em Rodmell Brooks. Aqui, Mr. Bell aparece salvando o que sobrou: dois pés, uma mão, três dedos de uma anágua cor-de-rosa e uma Bíblia que a sra. H. tinha roubado de Leonard Woolf, Esquire.
3. 1) POR QUE CLIVE TEM POUCO CABELO
Ao analisar a calvície de Clive Bell, temos a tentação de atribuí-la à aplicação indiscriminada de bolas frescas de neve a um cocuruto não suficientemente protegido.
4. 2) POR QUE CLIVE TEM POUCO CABELO
Ou podemos arriscar a hipótese de que a dita depilação do crânio sobreveio após a descoberta da infestação de lepidópteros em seu segundo melhor traje de noite.
5. PROEZA
Sabe-se que Clive Bell, Esquire, alcançou sua inconteste proeminência no mundo das Artes & Letras graças à sua perícia na ciência da equitação e à sua ascendência vulpina, aqui mostradas, às quais seu empenho literário e conhecimento dos Clássicos de nossa língua, aqui mostrados, pouco ou nada acrescentaram de grande importância.
6-7. OS CHOCOLATES
Mr. Bell cedendo à sua paixão por doces. Uma caixa por vez, diz o entremez -- ele exclama, e o pobre Quentin vai triste p'ra cama.
8. PRÊMIOS DA VIRTUDE
Aqui temos a célebre cena em que, por causa de uma curiosa semelhança fisionômica natural, o conhecido parlamentar Churchill recebe a homenagem destinada ao crítico Bell.







Na véspera do meu aniversario: Meter inveja?! Eu? Não! - Paloma Jorge Amado

Crônica de Domingo
18 de agosto de 2013

Ouço rádio enquanto dirijo, sobretudo ouço a Rádio Bandeirantes. Adoro o Boechat e o Simão, tudo de bom! Pois, estava ouvindo a rádio quando uma jornalista, cujo nome esqueci, talvez pelo meu adiantado estado de demência senil ... Hehehe... ( Não acredite nisso, estou inteiraça!, como podem ver pelas fotos), ... a jornalista começou a falar de sobre quem posta suas alegrias na internet "exclusivamente para causar inveja nos outros". Falava cheia de raiva, rancorosa. Num primeiro segundo -- garanto que não passou disso -- fiquei horrorizada. Será que as pessoas pensam que eu conto coisas boas para me vangloriar e causar inveja? Um segundo depois, bem tranqüila, já sabia que não. Que percentual de meus amigos facebuquianos pensariam assim, invejosos? Praticamente nenhum. Das respostas que leio, todos sabem que compartilhar é para viver junto, dividir generosamente, e não para me gabar, rindo e dizendo: eu posso, você não.
Penso justo o contrário desta senhora jornalista. Posto textos no Facebook para dividir com meus amigos as minhas alegrias, para curtimos juntos tudo o que a vida tem me dado de bom. As respostas que recebo, no mais das vezes, me indicam que tenho razão, o compartilhar com generosidade ė recebido com carinho e amor. Nada de negativo, de inveja ou rancor. Ainda bem.
Pensando tudo isso, resolvi postar esta foto, que minha Cecília tirou hoje antes do almoço, onde estou frente ao lenço de Picasso, pintado para o Festival da Juventude em Berlim, que findou no dia 19 de agosto de 1951,dia em que nasci. Pura coincidência, ninguém inveje, apenas compartilhe comigo deste tesouro que mamãe guardou para mim, e que hoje tenho em minha parede. (Não tem valor comercial, é de série e não está assinado!) Me alegro por ter esse lenço, nada que valha ser roubado, mas com tantas recordações afetivas.
Amanhã encerro 62 anos de vida bem vivida. Me sinto ótima, feliz, dona da minha vida, sexy (vejam o auto retrato que fiz para comemorar a data!) e cheia de alegria. Obrigada pela amizade e compreensão.
Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu, mesmo que tatu seja palavrão em língua guarani,
significando uma coisa linda, a flor da vida!

PS. A foto sexy recusou-se sair, que pena
via 
 

Quadrinhos

folha de são paulo
CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
ADÃO ITURRUSGARAI
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
GARFIELD      JIM DAVIS
JIM DAVIS
HAGAR      DIK BROWNE
DIK BROWNE

"Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo" - crítica de João Pereira Coutinho e Idelber Avelar

folha de são paulo

Livro sobre a história do mundo completa trilogia best-seller e controversa

DE SÃO PAULO
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"Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo" (ed. Leya; R$ 39,90; 304 págs.), que chega agora às livrarias, traz novamente as investidas do jornalista Leandro Narloch contra o que ele chama de "mentalidade esquerdista" e "versões ultrapassadas da história". Os dois primeiros guias politicamente incorretos do autor, o do Brasil (2009) e o da América Latina (2011), venderam juntos 700 mil exemplares, segundo a editora Leya. No meio acadêmico, a série polariza opiniões.
Para uns, tira os fatos do contexto e chega a conclusões simplistas, sem embasamento real. Outros defendem os livros como um trabalho sério e atualizado.
Leia nos links duas resenhas sobre o novo volume.


Crítica: Em apenas duas horas, ri muito e aprendi bastante com o livro

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
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Depois do Brasil e da América Latina, era inevitável que Leandro Narloch se ocupasse da história do mundo. Aplausos para ele: em duas horas de leitura, ri muito e aprendi bastante.
Ri muito com o humor de Narloch, que tem um talento especial para o "understatement". A Roma Antiga foi invadida pelos bárbaros? O autor comenta: "Mais uma prova de que o Império Romano não ia bem". Observações dessas você não encontra na obra de Eric Hobsbawm.

Mas o texto de Narloch não é apenas divertido; é uma defesa vigorosa desse monstro que, na falta de melhor expressão, podemos designar simplesmente por "civilização ocidental".
Se você, leitor, não tem o hábito extravagante de pensar (ou de estudar) e come todo o lixo marxista/relativista/niilista que é servido nas manjedouras universitárias, é provável que a "civilização ocidental" seja vista como a origem de todos os males.
Narloch discorda. A queda de Roma foi um piquenique multiculturalista entre o império e a barbárie? Não foi, não: o autor relembra como a queda de Roma fez a civilização regredir mil anos até ao nível da Idade do Ferro.
O que não significa que a Idade Média tenha sido um caso perdido. Não foi. E não foi porque -oh blasfêmia!- parece que existiu uma coisa chamada cristianismo que apanhou os cacos da herança clássica e permitiu que a civilização seguisse em frente.
Se você acha que a Revolução Industrial terminou com o paraíso bucólico que existia, ler Narloch ajuda a entender o que a revolução permitiu: a criação do mundo moderno e uma qualidade de vida com que os nossos antepassados nem sonhavam.
Claro que o mundo moderno teve as suas páginas grotescas: a miséria da África depois do colonialismo (e não necessariamente por causa dele) foi uma dessas páginas. Os regimes totalitários do século 20 foram outra.
Por último, tiro o meu chapéu lusitano ao exótico capítulo que Narloch dedica aos samurais japoneses. Melhor: à forma como os portugueses, introduzindo as armas de fogo no Japão no século 16, acabaram com essa raça.
Durante anos, nunca perdoei aos meus antepassados essa grotesca falta de maneiras. Descubro agora, por meio de textos do jesuíta português João Rodrigues citados no livro, que a imagem romântica dos samurais não passava de uma falácia: os nobres guerreiros eram, na verdade, vagabundos sem caráter.
Depois de uma desilusão dessas, já removi da parede da sala a minha espada.
AVALIAÇÃO ótimo

Crítica: Trabalho é tão ideológico quanto a ideologia que quer combater 

IDELBER AVELAR
ESPECIAL PARA A FOLHA
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"Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo", de Leandro Narloch, é o livro de um prosador hábil.
De Galileu a Gandhi, da Revolução Industrial a Maio de 68, o autor elege bem os moinhos de vento contra os quais lutará. Da tese de que a era medieval teria sido de trevas à de que o socialismo real fora desprovido de atrocidades, as narrativas contra as quais Narloch se insurge são caricaturas, bichos-papões.
Nessa insurgência opera uma lógica rudimentar, que isola dois elementos no tempo ou no espaço e pressupõe a conexão causal que quer demonstrar, ignorando toda a contraevidência.
Ao listar bizarrices dos regimes comunistas, o livro encontra uma de suas boas vocações, a de ser libelo satírico. Quando tenta argumentar, é de um simplismo atroz.
O livro isola casos de ditaduras africanas de seu contexto anterior de colonialismo e escravidão, lista absurdos de ditadores reais e conclui que "quem destruiu a África foram os líderes africanos".
Justapõe as expectativas de vida antes e depois da Revolução Industrial, constata o aumento, ignora o que possa perturbar a equação entre qualidade e quantidade e conclui que a mecanização foi a melhor coisa que poderia ter acontecido aos pobres.
Lista o número de pessoas a quem a comida com agrotóxicos alimenta hoje para sugerir quanta gente estaria faminta caso o mundo ainda dependesse da agricultura orgânica familiar.
Arrola superficiais coincidências na linguagem sobre o Estado nos textos nazista e comunista para propor uma equivalência entre os dois. No limite do mau gosto, lista as baixas de uma possível invasão por terra dos EUA ao Japão em 1945 e deduz quantas vidas foram "salvas" pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki.
E assim por diante, em operações de penoso primarismo argumentativo, pelas quais o livro termina sendo tão ideológico quanto a ideologia que quer combater.
Como sempre ocorre quando o epíteto "politicamente incorreto" é usado com pretensão de heroísmo, apresenta-se uma versão dominante da história, a que confunde os interesses dos poderosos com os da humanidade, como se essa versão fosse minoritária, maldita e, ao mesmo tempo, a única sensata.
Daí não se conclua que o livro é desprovido de interesse. Pelo talento narrativo do autor, ele deve fornecer os exemplos preferidos de história universal dos comentaristas de portais da internet.
IDELBER AVELAR é professor de literatura na Universidade Tulane (Estados Unidos).
AVALIAÇÃO regular

O lado escuro de Getúlio - Otavio Frias Filho

folha de são paulo
Cesarismo camaleônico fez do líder popular um ditador
RESUMO Segunda parte da biografia de Getúlio Vargas aborda seu lado "ruim", concentrando-se nos anos que levaram à ditadura do Estado Novo. Apesar de certo tom oficialesco, livro se destaca pela narrativa da Revolução de 32 e da Intentona Comunista e ajuda a desfazer maniqueísmo ingênuo em torno da figura do líder.
OTAVIO FRIAS FILHO
ASSIM COMO o colesterol, pode-se dizer que existe um Getúlio Vargas "bom" e outro "ruim". O primeiro é o líder de uma revolução democrática, o campeão dos direitos sociais, o governante nacionalista. O segundo é o chefe da única ditadura pessoal que o Brasil conheceu e o político inescrupuloso aferrado ao exercício do poder.
Claro que esse maniqueísmo ingênuo se desfaz conforme conhecemos mais sobre personalidade tão ambígua e sua complexa inserção numa época conflagrada como os meados do século passado. Fomentar essa compreensão isenta é o maior mérito da biografia em três volumes empreendida pelo jornalista e pesquisador Lira Neto, da qual se publica agora a segunda parte, "Getúlio - Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo (1930-1945)" [Companhia das Letras, 632 págs., R$ 52,50].
Nela se concentra o Getúlio "ruim", o equilibrista ardiloso que sobrenada em meio às tormentas ideológicas da década de 1930, jogando uns contra outros, sempre aliado ao adversário da véspera --chefe do governo provisório (1930), presidente eleito pela Constituinte (1934) e enfim ditador a partir de 1937.
É natural que o protagonista comande o espetáculo numa biografia; mesmo no caso de figura decisiva como Vargas, porém, é fascinante o grau em que sua trajetória foi antes comandada pelas circunstâncias. Mestre da paciência e do silêncio, ele esperava que se consolidassem à medida que tratava de se amoldar a elas.
Não eram apenas circunstâncias locais, pois os anos 1930 ilustram com nítida evidência que não existe o "nacional", no sentido de que ele é sempre uma variante particular de fenômenos mais amplos, de dimensão internacional.
Impulsionada pela catástrofe da crise econômica de 1929, por toda parte a revolução social parecia iminente. Sua ponta de lança eram os partidos comunistas, organizados sob disciplina militar e obedientes à União Soviética.
O fascismo foi, como se sabe, uma defecção nacionalista e racista desse movimento revolucionário, logo apropriada pelos setores interessados em preservar a propriedade e a hierarquia ameaçadas. Desde os anos 1920, hordas de fanáticos das duas seitas --opostas nos propósitos, iguais em método e estética-- se enfrentavam em arruaças nas principais cidades do mundo.
Quando duas forças políticas se empenham num confronto violento e prolongado sem que nenhuma submeta a outra, torna-se provável um desenlace cesarista (também chamado bonapartista). Incapaz de um compromisso estável, exaurida pelas lutas intermináveis, a sociedade vê um ditador enfeixar o poder absoluto para restabelecer a ordem periclitante, ainda que sob uma retórica revolucionária.
Nada muito diverso ocorreu no Brasil da época. Mas a comparação é instrutiva porque permite isolar, quase como num experimento químico, as peculiaridades que distinguem o cesarismo tupiniquim, getuliano, do padrão mais geral.
A mais notável, talvez, é seu caráter camaleônico. Embora formado no positivismo autoritário e reformista que fez longa escola na política gaúcha, Getúlio nunca aderiu a qualquer doutrina ideológica. Conforme as conveniências, manipulava este ou aquele aspecto de todas elas, reivindicando para si o centro de gravidade da política, afastado de ambos os extremos.
Característica psicológica da personagem? Certamente. Mas também sintoma de uma sociedade onde ideologias têm função decorativa, na qual as ideias não são levadas ao pé da letra nem sequer a sério, em que programas e compromissos são "para inglês ver".
Esse traço cultural do país responde por mazelas (sucessivas constituições, leis e orçamentos que não se respeitam, partidos de araque, política inautêntica) e também por subprodutos benfazejos (ausência de racismo politicamente articulado, tolerância religiosa e sexual, descrença em relação a dogmas).
Tortura e assassinatos políticos faziam parte da rotina da repressão policial, sobretudo após o golpe do Estado Novo, em 1937. Não podem ser quantificados porque os registros foram destruídos a tempo, mas as revoltas armadas do período deixaram um saldo reduzido de baixas.
Foram 22 mortos na Intentona Comunista (1935); ainda menos na tentativa de golpe integralista (patética versão nativa do fascismo) em 1938. Mesmo a Revolução Constitucionalista de 1932, o maior conflito armado na história republicana depois das sangrentas campanhas de Canudos e do Contestado, deixou menos de mil mortos.
Esse cômputo integra um padrão reiterado na formação brasileira, uma sociedade mais violenta do que a maioria das demais, desde logo pela extensa deformação da escravatura, mas onde a violência encontra escassa expressão política.
Cada um é livre para especular sobre esse enigma nacional. Resultado da profunda desarticulação social que é própria do legado escravocrata? Hábito adquirido da conciliação, dos acertos "pelo alto", a fim de não despertar o vulcão adormecido da desigualdade? Anemia da sociedade civil, o que deixa as forças políticas quase sempre à mercê do bloco que controla o hipertrofiado poder central? Porosidade à ascensão individual, que impede a pressão coletiva de atingir um ponto crítico?
PROTESTOS Na opinião deste resenhista, dois episódios se destacam na narrativa de Lira Neto. O primeiro é a Revolução de 1932, a começar pela extraordinária descrição do incidente --os protestos de 23 de maio nas ruas em São Paulo-- que a prenunciou. Ainda que o livro nunca abandone a perspectiva da personagem incrustada no Palácio do Catete, seu relato transmite a sensação de que a revolta se desenrola diante de nossos olhos.
Fica patente o quanto havia de reacionário no movimento, que mobilizava um sentimentalismo nostálgico da supremacia política paulista. Ao mesmo tempo, deflagrada pela elite econômica e cultural, a insurreição teve substancial apoio popular e conduziu à breve democratização de 1934, que adiou a ditadura.
Esta seria inevitável em decorrência do outro episódio proeminente, o infausto levante militar organizado no ano seguinte pelo Partido Comunista. Por volta de julho de 1935, Josef Stálin, o ditador soviético, finalmente atinou que o nazifascismo era a ameaça prioritária. Os partidos comunistas, até então instruídos a incitar a revolução armada, passaram a adotar uma política defensiva de frente ampla com as demais forças antifascistas. No Brasil, o golpe em preparação não foi abortado, em parte por causa das estimativas delirantes sobre a chance de vitória que seu líder, Luís Carlos Prestes, repassava a Moscou.
Detonada em novembro no Recife e em Natal, e dias depois no Rio, a intentona foi facilmente estrangulada pelo governo. Concebida por uma potência estrangeira, converteu-se no fantasma a ser invocado como eterno pretexto pelas duas ditaduras do século, a de 1937 e a de 1964. Foi o maior dos muitos erros de Prestes, tido por militar capaz, mas politicamente obtuso.
Seu fracasso aproximou perigosamente o Brasil do Eixo, tendência revertida para um tardio realinhamento com os Estados Unidos que só seria consumado em 1942, quando aquele país compeliu o nosso a ceder bases aéreas no Nordeste como apoio logístico para a campanha no Atlântico. Na barganha, Getúlio obteve dos americanos financiamento para a primeira siderúrgica, Volta Redonda.
Premido por manifestações populares, provocadas pelo afundamento de navios brasileiros que violavam o bloqueio naval imposto pela Alemanha à Inglaterra, o governo enviou uma força expedicionária à guerra na Itália. O engajamento com as potências democráticas desencadeou a dinâmica que levaria os militares à primeira deposição de Getúlio Vargas (1945).
Como saldo, o Estado Novo deixava um aparelho federal modernizado, uma legislação trabalhista que renderia ao getulismo dividendos eleitorais por muitos anos e incipientes processos de industrialização e urbanização que se fariam avassaladores nas décadas seguintes.
Não faltam amenidades ao livro. Desde o apreço de Getúlio Vargas por pontualidade, churrasco, cavalos, charutos, golfe e pingue-pongue até detalhes de sua estreita relação com a filha Alzira, confidente e secretária particular que organizou os arquivos do pai, esta biografia não perde o fio do pitoresco, do íntimo e do prosaico. O antiquado romance com a mulher de um hierarca do regime --a "bem-amada" que aparece nos diários secretos do presidente-- é contado em tom picante.
Duas ressalvas num livro de resto admirável. A pouca familiaridade do biógrafo com temas econômicos deixa lacunosa essa importante faceta na atuação do ditador.
E as principais fontes do livro --as recordações filtradas pela devoção de Alzira Vargas e os diários mantidos pelo pai (1930-42), que mesmo ali ostenta a compostura protocolar de quem calcula sua revelação póstera-- às vezes conferem uma tonalidade oficialesca ao conjunto, que não deixa de refletir, entretanto, o pesado clima cartorial da época.
Na segunda parte da biografia de Vargas, se concentra o Getúlio "ruim", o equilibrista ardiloso que sobrenada em meio às tormentas ideológicas da década de 1930
No livro, fica patente o quanto havia de reacionário no movimento de 1932, que mobilizava um sentimentalismo nostálgico da supremacia política paulista
Getúlio nunca aderiu a qualquer doutrina ideológica. Conforme as conveniências, manipulava este ou aquele aspecto de todas elas, afastado de ambos os extremos

    Ao mestre, com rapadurinhas - Carlos Castelo

    folha de são paulo
    ARQUIVO ABERTO
    MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
    Ao mestre, com rapadurinhas
    São Paulo, 1994
    CARLOS CASTELO
    EU NÃO SUPUNHA que 1994 seria um ano de ensinamentos tão importantes para mim. À época vivia num limbo. Nos anos 1980 participara ativamente, como compositor, no movimento conhecido como vanguarda paulistana.
    Mas o cenário musical estava mais morno na década seguinte e eu buscava me inscrever numa outra categoria artística: a de escritor. Foi quando soube que um colega, o jornalista Mylton Severiano, era muito próximo ao contista João Antônio (1937-96).
    Na noite de 23 de dezembro de 1993, fui apresentado ao próprio no restaurante Consulado Mineiro, no bairro de Pinheiros, em São Paulo.Por algumas horas ele dissertou sobre temas que iam de Garrincha a padre Vieira, passando por sua experiência como autor-residente na Alemanha.
    Queria muito fazer parte da confraria de missivistas que se correspondiam com ele. Já no dia seguinte preparei um texto impressionista sobre a noite no Consulado e pedi que Mylton Severiano o entregasse ao mestre.
    No "Panegírico a João Antônio", em determinado trecho, redigi:
    "Eu vi um homem. Eu, tão cultura rock. Um Mário Reis literário, um três-bês: branco, besta, bem-nascido... eu vi um homem esbravejando por um ideal. Meu Deus, e esbravejar por um ideal é a antítese do pop que me foi vendido."
    Adicionei à carta uma caixa de rapadurinhas. Em 17 de janeiro de 1994, Mylton me enviou um fax da última carta que recebera de João Antônio. Havia nela uma menção a mim.
    "Eis aí um Castelo que promete escrever com a alma e o coração. E, então, já se adentrou em terreno sagrado. Vamos dar um jeito no Castelo, vamos lhe dar uma boa ripada', talvez uma esculhambação'? Direta ou indiretamente, ele é um nosso irmão, mais novo, em Noel Rosa, não é?
    É de se tentar construí-lo. Ele precisa cair na vida, vidão? Primeiro: ele não tem culpa nenhuma de ser um filho da classe média. Chico Buarque ou Noel Rosa são exemplos."
    Em 25 de janeiro de 1994 fui aceito no grupo e recebi do contista a primeira de uma série de mensagens.
    "Não me cabe, por direito ou por torto, evangelizar a vida de quem quer que seja. Assim, pouco tenho a lhe acrescentar. Já lhe falei sem parar lá no Consulado Mineiro."
    Contudo, mais à frente, ele passaria a dar aconselhamentos que me surpreenderam pela disposição, quase didática, no ensino de seu "métier".
    "Descubra o de que você gosta. E dentro dele, o de que você gosta mais. E dentro dele, o que você ama. Então, será aquilo. Procure escrever sobre o que você ama. E as variações do amor são um leque enorme. Você poderá ser um gigante nesse sentido."
    Durante vários meses, vieram mais outras correspondências da mesma natureza. Quando lhe escrevi afirmando que chegara à conclusão de que o meu veio era o humor, aconselhou-me a ler Rabelais "" "ele é pai e avô de muitos grandes do humor".
    E ainda grafou uma definição notável sobre o tema: "Nada mais sério que o humor. É a quinta-essência da seriedade. Acima dele, só o pensamento, em termos filosóficos. E acima de acima (a meu pobre entender) só a poesia. E acima, mais acima, a profecia".
    Do primeiro ao último, todos os seus textos demonstravam uma grande generosidade com um aspirante a ficcionista como eu. A atitude era contrastante com algumas opiniões que diziam que o criador de "Malagueta, Perus e Bacanaço" seria um gênio difícil.
    Depois de algum tempo, o filósofo da malandragem, para minha surpresa, passou a me pedir insistentemente que telefonasse à sua mãe, dona Irene. Como bom discípulo, obedeci.
    "Elogie muito o filho primogênito dela, diga que sou um valor das letras pátrias, um caso de talento inefável, um senhor texto, uma senhora cultura e outras loas. Mesmo que você minta há de ser virtude. Haverá um humanismo porejante nessas mentiras e, assim, havemos de ficar mais amigos. Dei muito trabalho a meus pais e sempre fui um desgarrado." Até hoje me pergunto: teriam sido as rapadurinhas que o adoçaram?

      Arte fora de controle - Violência e paixão povoam a cena alemã - SILVIA BITTENCOURT

      folha de são paulo
      DIÁRIO DE BERLIM
      O MAPA DA CULTURA
      QUAIS SÃO OS limites da arte? É o que vêm perguntando os críticos alemães sobre dois artistas famosos do país, o rapper Bushido e o performer Jonathan Meese.
      Bushido, 35, acaba de ver sua música "Stress ohne Grund" (estresse sem motivo) entrar temporariamente para o "índex" de obras prejudiciais à juventude.
      O texto incita a violência contra homossexuais e políticos alemães, entre eles a líder do partido verde: "Atiro em Claudia Roth e ela ganha buracos como num campo de golfe", diz um dos versos.
      Quando ficou famoso, cerca de dez anos atrás, o berlinense Bushido, filho de pai tunisiano, tornou-se um exemplo para a integração de imigrantes na Alemanha.
      Fato é, porém, que ele sempre esteve na mira da polícia: na juventude, por pequenos delitos; agora por envolvimento no crime organizado e por suas declarações homofóbicas, antissemitas e machistas.
      Já o pintor, escultor e artista performático Jonathan Meese, 43, está sendo processado porque fez nas suas últimas aparições o chamado "Hitlergruss" --a saudação nazista, com o braço direito esticado, proibida na Alemanha. É acusado de empregar "sinais de organizações inconstitucionais".
      Meese é conhecido por suas performances caóticas e megalomaníacas, nas quais frequentemente se ocupa de personalidades controvertidas como Hitler, Friedrich Nietzsche e Richard Wagner. O "Hitlergruss", diz ele, seria apenas um elemento de seu show e não uma declaração política.
      Bushido e Meese não foram os primeiros artistas a passar dos limites, na visão das autoridades. Em 1997, o diretor Christoph Schlingensief (1960-2010) foi preso ao divulgar um cartaz, na exposição Documenta de Kassel, contra o então chanceler do país: "Matem Helmut Kohl". E em 2008 foi a vez de Anselm Kiefer polemizar, expondo oito autorretratos com a saudação nazista.
      ROMANCE DE VERÃO
      Königsallee (alameda do rei) é o nome do mais famoso boulevard de Düsseldorf. E é o título e o palco do último romance de Hans Pleschinski, que ali conta um episódio (fictício) da vida do escritor e Prêmio Nobel Thomas Mann (1875-1955).
      A história se passa em 1954, poucos anos depois de Mann retornar do exílio americano à Europa. O escritor visita Düsseldorf para apresentar o livro "Confissões do Impostor Felix Krull". E ali encontrará, para sua surpresa, o comerciante Klaus Heuser, uma antiga paixão do final dos anos 1920.
      Pleschinski mistura ficção e não ficção (a visita de Mann a Düsseldorf e o reencontro com Heuser não aconteceram, mas o seu antigo caso de amor, sim), traz passagens divertidas sobre o circo montado em torno do escritor e anotações tiradas dos diários de Thomas Mann --entre elas, as que assumem a paixão pelo jovem 35 anos mais moço.
      Também faz alusão a várias obras do escritor, sobretudo "Carlota em Weimar" --que narra um reencontro amoroso entre Goethe e sua amada Lotta.
      PRECIOSIDADES
      Acaba de ser inaugurado o primeiro arquivo on-line para textos jornalístico-literários alemães: www.waahr.de. Criado por três jornalistas e escritores, Anne Waak, Joachim Bessing e Ingo Niemann, o arquivo traz tanto artigos inéditos como textos antigos de publicações já extintas.
      O serviço tem também o objetivo de fomentar o jornalismo literário alemão --na tradição do "new journalism" americano, no qual o repórter escreve textos subjetivos, envolvendo-se com a sua história. O título "waahr" joga com a palavra "wahr" em alemão ("verdadeiro"), sugerindo, segundo disse Waak à Folha, uma coleção de "verdades subjetivas".
      Os artigos mais antigos são do escritor Heinrich von Kleist (1777-1811). Também se encontram textos de Marc Fischer (1970-2011), autor de "Ho-ba-la-lá "" À Procura de João Gilberto" (Companhia das Letras).
      AEROPORTO
      Até hoje os berlinenses não sabem o que fazer com o imenso prédio do antigo aeroporto de Tempelhof, no centro da cidade. Desativado em 2008, o campo com as pistas de pouso e decolagem tornou-se uma enorme área de laz er para os habitantes da capital.
      A questão agora é o destino do prédio tombado do aeroporto. Ele já vem servindo a eventos culturais, como shows e desfiles de moda. Mas, para continuar de pé, precisaria de uma reforma que custaria milhões de euros.
      Inaugurado no final dos anos 1920, o aeroporto de Tempelhof foi ampliado na década de 30, transformando-se numa construção monumental, típica da arquitetura nazista.
      Ficou famoso no auge da divisão da Alemanha, no início dos anos 1960, quando os americanos instalaram ali uma ponte-aérea para abastecer a população de Berlim Ocidental, ilhada pelo Muro.

        O segredo entre as pernas das mulheres - Luiz Felipe Pondé

        folha de são paulo
        ENSAIO
        A adúltera
        O segredo entre as pernas das mulheres
        RESUMO A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos do ano apresenta trecho de "A Filosofia da Adúltera", reunião de ensaios do colunista da FolhaLuiz Felipe Pondé inspirados em Nelson Rodrigues. O texto a seguir enfoca, a partir da peça "Perdoa-me por Me Traíres", o embate entre culpa, pecado e desejo.
        LUIZ FELIPE PONDÉ
        "Não se abandona uma adúltera."
        Nelson Rodrigues, em "Perdoa-Me Por Me Traíres"
        JÁ DISSE VÁRIAS VEZES que o segredo do mundo se encontra entre as pernas das mulheres. Claro, exagero. Mas nem tanto assim.
        Para quem gosta de mulher, parte da vida se resume aos seus movimentos pélvicos e sua saliva. E seus tédios. Mas, ainda assim, se visitarmos a mais radical visão evolucionária da pré-história humana, veremos que grande parte da vida em bando, seus afetos (base da relação entre moral e religião, porque base fisiológica e psicológica de ambas), suas guerras, suas festas e protoinstituições encontram sua ancestralidade funcional no calor úmido entre as pernas das mulheres.
        O afeto feminino é úmido e quente. No entanto, para mim, esse fundamento científico pouco importa; não faço ciência aqui e quase nunca.
        Onde nascem os famosos sistemas de parentesco, de que falam os antropólogos, se não entre as pernas das mulheres? Dirão que sou sexista, porque, afinal, as mulheres não geram parentesco por elas mesmas, mas com os homens. Pode ser; mas os homens pouco me importam, talvez porque desde muito cedo percebi que as mulheres são deliciosas e cheirosas, e tudo que penso nasce de sensações.
        Desejo é escravidão, e temperamento é destino. Como diria o cético escocês David Hume no século 18, "knowledge is feelling" (conhecimento é sentimento). Com o tempo, o temperamento se transforma em caráter. Faço filosofia sobre o que está entre as pernas das mulheres porque gosto de estar entre as pernas das mulheres, e não por alguma razão histórica defensável, apesar de que, como disse acima acerca da teoria evolucionária, acho possível sustentar minha máxima de que "o segredo do mundo se encontra entre as pernas das mulheres" com alguma cientificidade, apesar de desprezar esse tipo de fundamentação.
        Minha simpatia pelo darwinismo é, antes de tudo, devida ao seu caráter dramático, e não ao científico. Ou melhor, seu caráter estético. O fato de ele ser científico, para mim, apenas aprofunda sua natureza operística.
        Posso me perder imaginando uma bela mulher que pertence a outro homem, de joelhos, sendo uma amante infiel. Pedindo pelo amor de Deus para não levá-la a fazer o que ela quer, mas sentindo-se culpada por querer. Talvez chore e trema, como de costume, quando a culpa segue sua fisiologia.
        A culpa e o pecado são os maiores aliados do desejo que existem, e nesse sentido Nelson está muito além da estupidez contemporânea que pensa, erroneamente, que "sexo livre" dá tesão. É da natureza feminina desejar o que "dói".
        E também, como dizia Nelson, a prostituta não é a primeira profissão do mundo, mas a sua vocação mais antiga. E essa vocação é a de desejar ser objeto do homem que a possui, seu dono (mesmo que simbolicamente e por algum tempo). Mas essa vocação não significa ausência de sofrimento ou de contradição: pelo contrário. É a contradição que a deixa tão desejável em sua incapacidade de controlar seu ímpeto de infidelidade. E se tornar uma adúltera.
        SEGREDO Essa contradição assume a forma de suor líquido, gosto, cheiro, gesto, gemidos, restos, enfim, tudo aquilo que constitui o segredo da vida entre as pernas das mulheres. E o desejo escorre pelas pernas. A adúltera revela o fracasso de toda moral porque a interdição apaixona. Tornar-se objeto, coisa que se deixa mandar.
        Mas a adúltera na obra de Nelson é mais do que isso. Ela é um de seus arquétipos essenciais para representar a condição humana.
        Aliás, Nelson também via as mulheres como objeto intenso de desejo e reflexão. Não é por acaso que, quando Nelson fala de suicídios, homicídios e enterros, diz que, quando o morto era uma mulher, tudo era mais dramático, interessante e intenso para ele. Suspeito de que uma das razões para esse fato é ser ele um heterossexual e, por isso mesmo,alguém que via parte do mundo e da vida mediado pelo que há entre as pernas das mulheres.
        Sexo é destino, apesar de alguns quererem brincar dizendo que não, porque querem ter o sexo do outro. Mas, ainda assim, é o sexo que é destino; nesse caso, o sexo errado.
        Pensar através da adúltera é, antes de tudo, uma confissão de desejo pela mulher na sua condição de filha de Eva, aquela primeira infiel.
        Os ensaios deste livro foram escritos sob o signo da adúltera: são as confissões de um desgraçado que luta constantemente para não se perder no próprio desejo e em suas inconsistências. A filosofia selvagem brota desse combate e do medo que me acompanha o tempo todo.
        Por que não se abandona uma adúltera?
        Em "Perdoa-me por Me Traíres", o marido, que afirma que não se abandona uma adúltera, representa a clássica posição de Nelson de que sexo demais é falta de amor. A tese supõe que a mulher trai porque não é amada. Será verdade? Acho que não. Essa hipótese de Nelson fala de sua idealização do amor.
        Ela, a adúltera, seria vítima, e não culpada, por isso o marido pede perdão a ela por ela o ter traído, invertendo a lógica da frase.
        Não há dúvida de que, para Nelson, somos seres capturados numa armadilha interior: desejamos um amor ideal, mas ele não existe. Como não existe, caímos em desgraça inevitavelmente, e daí decorre tudo o mais.
        Uma das piores formas dessa idealização do amor é seu mal infinito: queremos sempre mais e, quanto mais queremos, mais dependentes e inseguros ficamos. Ciúmes, delírios de traição, impotência de controlar o outro. Por isso, a adúltera representa o necessário fracasso de um animal atormentado por um desejo de amor sempre impossível. O pecado moral nasce dessa vontade esmagada.
        Não importa o que você fizer: quanto mais amar, menos "bem resolvido" será. Mas a indiferença apodrece. Por conta disso, sem o tormento do amor, você apodrece --por isso só os neuróticos verão a Deus. Ou nos angustiamos ou apodrecemos, dizia Nelson.
        O amor só se resolve quando morre ou quando vira amizade. Esse núcleo básico, que é dramático em sentido dramatúrgico e dramático nos sentidos filosófico e psicológico (porque descreve uma natureza humana em contínuo conflito consigo mesma, o que aproxima Nelson de Freud), inviabiliza qualquer noção de afetos corretos.
        Nossa era, tomada pela crença idiota na solução política e ideológica de tudo, parece não entender esta aporia --doença que ele identificou no Brasil nos final dos anos 1960 e, por isso, dentre outras razões, foi chamado de reacionário. Há uma desordem afetiva no ser humano que todo mundo experimenta e, por isso, é necessário mentir, muitas vezes como ato de misericórdia. "Mintam, pelo amor de Deus", porque a verdade é insuportável.
        O autoconhecimento é uma forma de tormento. A tradição espiritual cristã é marcada pela consciência de que conhecer a si mesmo é, antes de tudo, um ato de autoimolação. Nossa fragilidade ontológica pede a mentira como modo de sociabilidade e sensibilidade pedagógica.
        Mas o que no plano da convivência é uma necessidade, no plano do pensamento é uma traição, por isso Nelson se dizia ex-covarde. Há que dizer a verdade, pelo menos como forma de reconhecimento de nossa miséria e abandono.
        Já em sua infância, Nelson conheceu uma adúltera. Uma vizinha. Conta ele como a viu num desfile de Carnaval ao lado do marido traído. Dois infelizes. O rosto dela carregava a marca do fracasso e da vergonha. Linda como uma morta. O rosto dele trazia o peso do homem que não consegue deixar de amar sua adúltera, e que também é punido por todos.
        Noutro relato, Nelson conta como uma jovem belíssima e recém-casada foi chamada à casa de um vizinho milionário, mais velho, que tenta seduzi-la com um colar de pérolas. Ela recusa, ofendida, e reafirma sua fidelidade ao marido.
        Quando o marido chega em casa, ela conta a ele o ocorrido. Ele, pra surpresa da infeliz, condena seu ato ingênuo de fidelidade e diz a ela que não se recusa um colar de pérolas assim. As vizinhas todas concordam com ele.
        Ela, então, volta à casa do milionário e traz o colar de pérolas, e o joga na cara do marido, que fica paralisado. As vizinhas todas, com a certeza tranquila do bando, gritam: "Cachorra, adúltera".
        Os homens pouco me importam, talvez porque desde muito cedo percebi que as mulheres são deliciosas e cheirosas, e tudo que penso nasce de sensações
        Em "Perdoa-me por Me Traíres", o marido representa a clássica posição de Nelson de que sexo demais é falta de amor. A tese supõe que a mulher trai porque não é amada
        A prostituta não é a primeira profissão do mundo, mas a sua vocação mais antiga. E essa vocação é a de desejar ser objeto do homem que a possui, seu dono

          Como aprender árabe - Diogo Bercito

          folha de são paulo
          LÍNGUA
          Como aprender árabe
          O que se fala nem sempre se escreve
          RESUMO Na última década, o interesse global por assuntos ligados ao Oriente Médio e ao islã contribuiu para aumentar o número de estudantes do árabe. Correspondente da Folha em Jerusalém aborda complexidades do aprendizado da língua, como a diglossia, a convivência de sua variante formal e dialetos locais.
          DIOGO BERCITO
          COM A QUEDA das Torres Gêmeas, em 2001 e, dez anos depois, a derrocada de ditadores como o egípcio Hosni Mubarak e o líbio Muammar al-Qaddafi, o idioma árabe tornou-se um "habib" --querido-- dos estudantes de idiomas.
          Já falado por milhões ao redor do mundo, o árabe teve aumento de 46,3% de procura no bancos acadêmicos americanos entre 2006 e 2009, segundo a Modern Language Association. Foi o idioma estrangeiro com maior procura no país, com incremento de 126,5% em relação à edição anterior do mesmo estudo, no qual o árabe havia passado a figurar entre os dez idiomas estrangeiros mais estudados nos Estados Unidos.
          O fenômeno é recente, mas não está desligado do fato de que o árabe foi, no passado, uma das línguas da ciência no mundo. É o idioma da conquista islâmica, do califado de Córdoba, do Alcorão e dos clássicos medievais de Avicena. É a fala do cinema egípcio, dos discursos do ditador sírio Bashar al-Assad e de populações associadas, via preconceito, ao terrorismo.
          Estudar árabe, porém, é um compromisso de longo prazo --digo por experiência própria. Mais de dois anos depois de decidir estudar o idioma e após ter estado em um punhado de países árabes como correspondente desta Folha no Oriente Médio, ainda passo minhas tardes tentando me lembrar das declinações e da vocalização correta. Isso quando não estou frustrado, em um mercado de Jerusalém, tentando entender quanto custa uma latinha de Coca-Cola.
          LENDA Uma lenda do século 7º fala de como Ziyad ibn Abihi, governador de Basra, no atual Iraque, convenceu o sábio Abu al-Aswad a normatizar o árabe. Abertos os portões da expansão islâmica, as fronteiras da península Arábica devoravam África e Ásia. Os novos falantes emprestavam erros à língua.
          Como o sábio resistia à tarefa, o governador teve uma ideia: pediu que um homem sentado à beira de uma estrada recitasse o Alcorão, trocando, porém, as terminações dos casos gramaticais. Em árabe, isso faz com que uma frase como "Deus e o profeta salvam dos incrédulos" tenha seu sentido subvertido para "Deus salva dos incrédulos e de seu profeta".
          Assim Aswad se convenceu da necessidade de compilar um conjunto de regras para chegar a um árabe padrão. Essa lenda passou a servir como um dos mitos fundadores da tradição gramatical do árabe, reunindo diversas das características que marcaram, desde então, o estudo dessa língua.
          Está presente na historieta, por exemplo, a ideia ainda corrente de que a língua é uma característica biológica dos povos árabes e que os desvios, portanto, nascem nos povos arabizados. Ou a ideia de que a língua é um fato estanque, desvinculado da história, preso a um texto sagrado do qual é, aliás e antes de tudo, uma manifestação.
          Além disso, a lenda do governador e do sábio dá conta da obsessão pela manutenção dos casos gramaticais na língua --cujo bom uso, aparentemente, é ameaçado desde os anos desérticos do surgimento do islã, no centro da península Arábica, até a manhã em que assisti à minha primeira aula de árabe, na Universidade de São Paulo.
          Minha história com o estudo do árabe decepcionaria aqueles que gostam de narrativas orientadas pelo "maktub", o conceito de que algo "estava escrito" --popularizado (mesmo no mundo árabe) por Paulo Coelho.
          Quando escolhi essa língua, não estava pensando na "qisma", a ideia de que o árabe é a parte do latifúndio linguístico que coube aos árabes como dádiva divina. Nem me motivava um bisavô paterno talvez damasceno, de quem não há nenhum registro ou memória.
          Eu escolhi me habilitar em árabe, durante o curso de letras, porque o hebraico só era ensinado à noite, enquanto eu trabalhava na Redação. Os anos se seguiram e, antes de me mudar para Jerusalém, eu só havia passado de raspão por essa língua irmã do árabe.
          Durante uma corrida de táxi em Rabat, a capital do Marrocos, onde por três meses fui bolsista do projeto Ibn Batuta de ensino da língua, o motorista desandou a falar em árabe ao me ouvir conversar sobre xiismo com um colega holandês.
          Ainda iniciante, perdi quase todas as palavras. Mas aproveitei para perguntar como se dizia "direita", em árabe. Podia ser útil para dar indicações no próximo trajeto. "Al-yamin", ele respondeu. E aí, bem de longe, o hebraico fez sua aparição: "Mas não confunda com Binyamin", brincou o motorista, fazendo troça com Binyamin Netanyahu, atual premiê de Israel.
          Eu ri e disse que usaria a tirada para memorizar a palavra. "Como vai fazer com a esquerda?", ele me perguntou. "Fácil. Al-shimon", brinquei. A resposta correta é "Al-yasar", mas eu estava então falando de Shimon Peres, o presidente israelense. O táxi balançou de tanto que nós três rimos da piada, ainda que não tivesse havido graça.
          Talvez pelo contato com todo tipo de passageiro, os taxistas dominam a variante padrão do árabe --o termo se entende pelo fato de que não existe, na prática, a "língua árabe". O que há é um conjunto de línguas, nem sempre compreensíveis entre si, que não formam um idioma, do ponto de vista linguístico. São dialetos. Mais por política e religião, as variantes se cobrem sob um mesmo véu, no que se chama uma sociolíngua.
          Para os muçulmanos, Deus decidiu que o Alcorão fosse revelado a Maomé em árabe --não em hebraico, grego ou persa, porque era aquela a revelação feita especificamente a eles (em árabe, diz-se que o livro "nazala", "desceu"). Assim, para autoridades religiosas, a língua está em seu estágio único. Não há antes, não há depois.
          É como diz o poeta sírio Adonis, o nome mais cotado, entre os que se expressam em língua árabe, para o Nobel de literatura. "O Islã se revelou como inspiração divina em língua árabe. A partir daí, a língua, como portadora das verdades divinas, deixou de ser uma parte da realidade relativa e mutável. Tornou-se absoluta: imagem absoluta do absoluto Deus."1
          Se existe uma unidade na religião ("não há nenhum deus que não seja Deus", diz a profissão de fé do árabe, uma das bases teológicas do islamismo), a ideia de que haveria também uma homogeneidade na língua árabe se debate diariamente contra a realidade.
          Dessa maneira, uma ação cotidiana, como tomar o café da manhã antes da aula, pode se transformar num desafio linguístico. Em que língua pedir dois croissants? Em árabe --ou em árabe?
          Havia duas opções. Eu poderia dizer o número como "ithnan", em árabe formal, e soar como saído do século 7º, de um manuscrito ou da lenda de Abu al-Aswad. Mas, se preferisse usar a palavra "juj", típica do coloquial marroquino, os vendedores poderiam ver nisso a pretensão de me passar por local. Como se um estrangeiro em São Paulo usasse uma expressão como "de boa" para dizer "tudo bem".
          ESQUIZOFRENIA A linguística tem nome específico para essa convivência entre formal e coloquial. Chama-se "diglossia", "duas glossas", situação geralmente exemplificada pelo latim, que manteve por séculos uma variante culta e diversas versões vernaculares. "É claro que isso é uma espécie de esquizofrenia", explica o escritor libanês Amin Maalouf.
          Maalouf escreve em francês ""entre os vários reconhecimentos a sua obra está o Goncourt, prêmio máximo da literatura na França, que ele recebeu em 1993 por "O Rochedo de Tânios". Ele defende, intelectualmente, a manutenção da variante culta do árabe, diante de propostas de simplificar a língua a partir de um consenso entre as dezenas de dialetos. "É preciso viver com a dicotomia."
          "O latim desapareceu como uma língua falada. Mas, com o árabe, as coisas aconteceram de maneira diferente. O árabe produziu dialetos locais, mas a variante culta não desapareceu. Ela permanece verbalizada, escrita e compreendida pelos falantes educados", diz Maalouf. "Ter uma língua em comum é um recurso cultural importante."
          O árabe seguiu um caminho distinto daquele trilhado pelo latim --que, diante da queda do Império Romano, perdeu seu centro, possibilitando que surgissem, nas periferias, as línguas românicas, transformadas pelos séculos em idiomas como o português, o castelhano, o sardo e o romeno.
          Professor na Universidade de Zaragoza, o acadêmico Federico Corriente, autoridade no estudo do árabe falado na península Ibérica durante o califado de Córdoba (séculos 10 e 11), insiste que um processo semelhante ao do latim seria um "empobrecimento" tanto cultural quanto político para a comunidade de países falantes.
          "O latim, infelizmente, foi destruído pelos nacionalismos da idade moderna e contemporânea, prejudicando todos os europeus, já que não temos mais uma língua culta comum a todos", diz. Unificar o árabe, afirma Corriente, seria repetir o "disparate que a Europa cometeu ao abdicar do latim: fragmentação e preguiça mental".
          LÍNGUA FRANCA Ao contrário do que houve no Ocidente, continua havendo uma língua franca para a comunicação entre os Estados de população árabe. Também são ligados pelo árabe como língua litúrgica os milhões de muçulmanos ao redor do mundo. O Alcorão não pode ser traduzido, e o estudo do árabe formal torna-se, assim, um imperativo religioso.
          "O Alcorão teve uma grande influência na língua árabe", opina o jovem saudita Muhammad Hassan Alwan, autor de "The Beaver", uma das obras que concorreram ao Arabic Booker Prize, competição pan-árabica lançada em 2007. "Esse livro sagrado manteve a língua por 14 séculos de maneira que pode ser facilmente entendida hoje."
          Apesar dos mitos sobre sua inacessibilidade, o árabe padrão ainda é compreendido nas ruas. Foi com essa variante que um grupo de crianças me cercou, em Rabat, para perguntar se eu era muçulmano. Quando disse que não, uma gritou, as mãos na cabecinha indignada: "La! La tarif al-nar?" ("Não! Você não conhece o fogo?")
          Um estudioso do idioma que não segue o islã e não é nem sequer de origem árabe se vê, por vezes, obrigado a justificar seus estudos. É possível argumentar que o interesse vem do prazer histórico. Mantida estática pelas exigências da religião, a língua ainda é próxima do dialeto urbano falado em Meca no século 7º. Falar árabe é como conversar com beduínos --o falante ideal, segundo a tradição.
          O árabe é parente não só do hebraico mas também das demais línguas semíticas, como o acadiano, o aramaico e o fenício. Quem diz "salam", em árabe, de certa forma está dizendo "shalam" (acadiano), "shlam" (aramaico) e "shalom" (hebraico).
          O termo "semita" vem de Sem --na Bíblia, um dos filhos de Noé. Emprestado da linguística, foi compreendido politicamente como designação étnica. Em sua origem, era a reunião de um grupo específico das línguas afro-asiáticas, como o hebraico e o árabe, parentes distantes do egípcio antigo.
          Para falantes de línguas latinas ou germânicas, ambas indo-europeias, aprender um idioma semítico envolve adaptar-se a um modo de pensar. O árabe não tem verbos "ser", "estar" e "ter". A existência é presumida (de "eu Diogo" se entende "eu sou Diogo"). O estado, também ("eu doente"). Para a posse, se diz "para mim, um carro".
          "Línguas orientais exigem muita dedicação", diz Mamede Mustafa Jarouche. Tradutor do "Livro das Mil e Uma Noites", Jarouche ensina gramática árabe na USP. "Com línguas como o inglês, é possível haver aprendizado passivo. Um aluno pode aprender sem nunca ter ido aos Estados Unidos. Isso não ocorre com o árabe."
          A forma da escrita, com alfabeto próprio, correndo da direita para a esquerda na página, é outro aspecto a levantar curiosidade em torno de um estudante de árabe. Quando foi estabilizada, em cerca de 1.000 a.C., a escrita fenícia --origem dos sistemas do árabe, do aramaico e do hebraico-- seguia esse sentido. Os gregos, ao se apropriarem da invenção semítica num momento posterior, mudaram-lhe o rumo.
          LEITURA Pouco se fala, porém, da real dificuldade da leitura em árabe. Para os acadêmicos mais rigorosos com a classificação, a escrita do árabe não é de fato "alfabética", apesar de "alfa" e "beta" serem ironicamente palavras emprestadas do fenício pelos gregos. O árabe é escrito por meio de um "abjad" --uma escrita consonantal.
          O árabe (como o hebraico, o siríaco e o nabateu) não registra todos os sons que são falados. Boa parte de suas vogais é subentendida. Assim, escreve-se "ktb" para dizer "kataba", ou "ele escreveu". O que pode levar a problemas, uma vez que "ktb" também pode ser lido "kutub", "livros". Ou "kutiba", "foi escrito".
          (A hstór de Abu al-Aswd nos lembr de que os árbs stveram, desd o níci do slmism, prcpads com a mntnção do text crânc. Tref inglóri par um livr sgrad scrit sem dverss de sus vgais.2)
          Daí entram os diacríticos, marcações feitas sobre ou sob as letras para indicar vogais ocultas. Os sistemas de diacríticos são, de certa maneira, uma invenção siríaca motivada pelas traduções da Bíblia e pela necessidade de grafar com exatidão os nomes gregos registrados durante a Antiguidade.
          A atual vedete do ensino do árabe é um método didático chamado "Al-Kitaab fi Ta'alum al-Arabiya", organizado por professores americanos. É usado em Chicago e em Harvard, e também na USP e na escola Qalam wa Lawh, onde estudei no Marrocos.
          É, porém, um livro controverso. Em 2008, um editorial do "Washington Post" expressava preocupação quanto ao método. O quarto capítulo do manual mostra a personagem Maha, antipática filha de uma professora palestina, dizendo a frase que se tornou clássica entre estudantes (no meu caso, rendeu a ideia para um rap, escrito para um trabalho da USP): "Ana la uhibu madinat Niw Yurk", "Não gosto da cidade de NY". Os motivos? Trânsito e calor. De onde vinha Maha? Do Cairo, a quente e caótica capital do Egito.
          Apesar do estranhamento que o livro possa ter causado, é exagerada a alegação de que o método do "Kitaab" forme terroristas. Mas é pertinente a observação de acadêmicos, como o espanhol Corriente, que se opõem às tentativas de ensinar o árabe padrão por diálogos.
          O árabe formal não é uma língua falada. As situações de comunicação são em geral pouco naturais, como discursos na ONU --o idioma é uma das seis línguas oficiais das Nações Unidas, ao lado do inglês, do chinês, do francês, do russo e do espanhol. Experimente pedir uma cerveja em árabe formal a um garçom no Marrocos: ele vai olhar para você como se estivesse diante de um personagem de um filme.
          O estudante de árabe nunca está em paz, entre a "fusha" ("a eloquente", como se chama a variante formal) e a "amia" ("a popular", os dialetos). Se estuda o padrão, lhe perguntam por que não quis o dialeto --afinal, é a língua das ruas. Caso estude o vernacular, lhe perguntam por que não escolheu o formal --ora, é a língua dos livros!
          O ideal, opina o espanhol Corriente, é "um conhecimento equilibrado da realidade linguística árabe, abarcando tanto a habilidade de ao menos ler a língua clássica quanto falar um dialeto". Mas isso esbarra, diz, na realidade de que o ensino do árabe "é catastroficamente terrível, por falta de métodos, de definição de objetivos e de preparação pedagógica".
          A predominância da "fusha" como única variante escrita, porém, parece estar caindo. Os livros dizem ser impossível registrar os dialetos, porque têm sons sem equivalente na escrita. Mas, na estação de ônibus de Rabat, um outdoor anuncia: "kein" desconto --"kein" é o equivalente dialetal marroquino para o formal "hunaka", "há".
          A Wikipedia também aposta em um futuro menos rígido para as línguas árabes. Alguns verbetes, como o referente a Cleópatra, têm versões em "egípcio". "Egípcio", como vem sendo chamado na enciclopédia colaborativa o dialeto cairota, era o termo que designava, até há pouco, a língua escrita com hieróglifos, no tempo dos faraós.
          CENÁRIO O terreno para um novo cenário cultural, ainda que o total declínio do árabe formal como língua franca seja pouco provável, é a literatura. É nela, e sobretudo em diálogos, que as variantes vernaculares ganham corpo. "O árabe dialetal está carregado de história, de cultura religiosa e de cultura profana, de memória", diz o escritor libanês Rachid Daif.
          O autor --que terá um de seus livros, "Que se Estrepe Meryl Streep", traduzido ao português por Felipe Benjamin Francisco, monitor de cursos de gramática na USP, como dissertação de mestrado-- afirma que "os dialetos estão vivos e são capazes de traduzir o ritmo da vida contemporânea".
          A americana Meredith Meyer, minha colega no Marrocos, era um exemplo de estudante capaz de usar o dialeto naturalmente.
          Além de sua notável pronúncia do "ayn", uma consoante tão gutural que parece vir do âmago do ser humano, ela soltava qual um nativo o corrente "ghadi an darrrbak": "Vou sentar a mão na sua cara", em tradução livre.
          Como as ruas que ligavam os antigos califados islâmicos no passado, o caminho que leva o estudante de árabe até o domínio do idioma é longo. Às vezes, mesmo para os mais hábeis nos dialetos ou para os afiados na variante padrão, parece sem fim. Costumamos nos perguntar, ansiosos: "Seremos, um dia, fluentes?". A resposta possível, por ora, está numa palavra que aprendi com o tempo: "Mumkin". Talvez.
          Uma ação cotidiana, como tomar o café da manhã, pode se transformar num desafio linguístico. Em que língua pedir dois croissants? Em árabe --ou em árabe?
          Mantida estática pelas exigências da religião, a variante padrão ainda é próxima do dialeto urbano falado em Meca no século 7º. Falar árabe é como conversar com beduínos
          O estudante de árabe nunca está em paz, entre a "fusha" ("a eloquente", como se chama a variante formal) e a "amia" ("a popular", os dialetos)