domingo, 11 de agosto de 2013

A imaginação de três poetas do Sul - Adriano Scandolara, Guilherme Gontijo Flores e Marcelo Sandmann

folha de são paulo
DE SÃO PAULO
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"Poema Pingado"
por Adriano Scandolara

Na rodoviária do Hades
uma alma encosta ao balcão
e pede um pingado.
Cigarro inaceso à mão,
o tédio no terno impecável, frigidez
cruzando as pernas, o pé
equilibrando o salto.
Sombra de um café
servido frio igual
memória de outros tantos cafés
brejos de leite
teta vegetal pó descafeinado
os mesmos augúrios de sempre
nas borras.
Os dias que correram
em comerciais onde todos vivem alucinadamente
o permanente domingo dos séculos
tuas horas crepusculares à espera do momento
postergado
Como um elevador, música suave
conversa amena,
despencando no meio do caminho.
Menos uma colherada na mesura dos dias
há meia hora já você mexe esse café.
Garganta e olhos domados à base da catarse
do inexistente, os gritos
todos guardados
de uma só vez violariam
agora o silêncio do lugar
não fosse esse silêncio inviolável.
Mais ônibus chegam e partem
o pingado desce a goela, a máquina não para
os ponteiros do relógio
só para si próprios
apontam.
*
Estela Sokol/Arte Folha
por Guilherme Gontijo Flores
Serão aquelas as crianças
de corridas à toa
por entre o gelo matinal?
agora tudo está na mais
profunda paz
o gelo desce sobre as torres
o gelo pousa sobre os olhos
agora tudo segue o mais
inútil branco
as rosas seguem brancas
os olhos seguem brancos
as mesmas fotos
onde dois velhos persistem
respirando do urânio
& encerram os portões do mundo
pelo próximo milênio
(um turista conquista
entrada do parque
esvaziado entre árvores)
o musgo cobre os muros
o interior das vidas
tudo intensa
aniquilantemente
branco
serão aquelas as crianças
delírio-sorridentes
serão os seus sorvetes
caindo como pétalas
por entre as ruas
de pripyat?
*
"Sol por Dentro"
por Marcelo Sandmann

Há um sol
que brilha por dentro.
(Pelos ossos, pelo
sangue, pelos músculos,
pelos nervos.)
Ele arde na carne,
ferve na pele,
reverbera em pensamento.
Há um sol
no fundo do corpo,
lúcido, noite adentro

O ano em que vivemos em perigo - Igor Gielow

folha de são paulo
Em 1983, o apocalipse nuclear esteve à porta
IGOR GIELOW
RESUMO
Embora o senso comum aponte a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, como o apogeu do conflito entre EUA e União Soviética, o período mais arriscado da Guerra Fria talvez tenha sido há 30 anos. Programas militares e simulações de ataques puseram os contendentes em alerta, o que poderia ter gerado uma guerra real.
-
em 4 de março de 1983, ao meio-dia, a rainha Elizabeth 2ª dirigiu-se a seus súditos, cumprindo um "dever solene e terrível", para informá-los de que "a loucura da guerra" estava "novamente se espalhando pelo mundo".Os britânicos deveriam preparar-se para o pior momento de "sua longa história", enfrentando não "soldados com rifles", como em 1914, ou o "aviador sobre nossas cidades", como em 1940. O inimigo seria a "força letal de uma tecnologia abusada": o fogo nuclear soviético na Terceira Guerra Mundial.
O texto, revelado neste mês, naturalmente nunca foi lido. Não se sabe, tampouco, se a soberana aprovou o conteúdo do discurso, preparado por burocratas que participavam de um exercício que simulava a reação de governos à eventualidade de um conflito atômico na Europa.
Mas dificilmente a rainha teria escolhido palavras tão precisas para descrever 1983, talvez o mais perigoso momento da Guerra Fria.
O senso comum aponta 1962 e a crise dos mísseis russos instalados em Cuba como o zênite do conflito surdo entre Estados Unidos e União Soviética. Mas, 30 anos atrás, com bem menos publicidade, o apocalipse esteve à porta.
A metáfora bíblica inclusive se aplica melhor a 1983. Conforme um detalhado estudo feito pelo cientista político americano Robert S. Norris em 2012 sobre os beligerantes em 1962, a capacidade nuclear dos EUA superava em 17 vezes a da URSS à época.
Ou seja, em caso de a escaramuça evoluir a uma guerra global, era grande a possibilidade de que os soviéticos fossem dizimados antes de o planeta ser engolfado.
A Europa seria reduzida a pó, certamente, mas talvez não fosse o fim do mundo --ainda que estudos recentes mostrem que mesmo uma guerra limitada a umas cem explosões menores, iguais à que destruiu Hiroshima em 1945, pudesse alterar o clima irreversivelmente.
Vinte e um anos depois, o jogo era outro. Moscou tinha 36 mil ogivas atômicas à disposição; Washington, 23,5 mil. Em 1962, os mísseis balísticos intercontinentais perdiam em importância para os menos eficazes bombardeios, equação invertida em 1983.
O perigo "era de longe maior do que em qualquer outro momento de nossa longa história", como diz o discurso simulado da rainha para a operação Wintex-Cimex.
O exercício era bienal, mas o cenário político estava carregado. O ex-ator de faroeste Ronald Reagan (1911-2004) havia assumido a Presidência dos EUA em 1981 com uma retórica anticomunista virulenta.
Em março de 1983, cunhara o termo "Império do Mal" para classificar o adversário e lançou o programa conhecido como Guerra nas Estrelas, que visava abater foguetes com armas no espaço.
Para piorar, Reagan estava decidido a instalar os mísseis de alcance intermediário Pershing-2 na Europa Ocidental. Enquanto seus similares russos SS-20 poderiam aniquilar alvos em países aliados aos EUA em minutos e sem tempo de reação, os foguetes americanos prometiam o mesmo diretamente contra a matriz do bloco soviético.
Ambos os lados demonstravam agressividade. Em setembro, os soviéticos abateram um Jumbo da Korean Air Lines alegando que era um avião em missão espiã. No mês seguinte, os EUA invadiram a ilhota caribenha de Granada para erradicar o regime esquerdista local.
ESCALADA
As raízes da escalada estavam no ano de 1981, quando a União Soviética vivia a instabilidade do ocaso político e econômico do governo de Leonid Brejnev (1964-82). O então chefe da KGB e sucessor de Brejnev no ano seguinte, Iuri Andropov, anunciou que era certa a intenção de Washington de dar o primeiro golpe, visando decapitar o regime. O fato de os americanos estarem testando aviões perto das fronteiras soviéticas só aumentava a paranoia.
Andropov, ignorante do "éthos" ocidental, determinou o lançamento da Operação Ryan --acrônimo russo para Ataque com Míssil Nuclear. Foi o maior esforço de espionagem da Guerra Fria, e por dois anos agentes soviéticos pelo mundo buscavam provas da intenção americana de atacar, a fim de justificar uma guerra preventiva.
Segundo documentos inéditos compilados pelo pesquisador do Arquivo de Segurança Nacional Nate Jones para marcar o 30º aniversário da crise, o Kremlin temia uma reedição da invasão nazista de 1941, que pegou a liderança soviética de surpresa. O recrudescimento de Reagan e a decisão de instalar os Pershing-2 só reforçou as suspeitas comunistas.
Ainda que considerassem a iniciativa exagerada, agentes duplos como Oleg Gordievsky alertaram o Ocidente para o risco de um conflito ocorrer por má interpretação ou por alguma banalidade. Em 1979, por exemplo, uma fita de simulação de ataque acabou por engano no sistema de defesa americano. Por alguns segundos numa madrugada de novembro, o assessor de segurança nacional do presidente Jimmy Carter não avisou ao chefe que ele teria de lançar um contra-ataque real. Isso se repetia com frequência, e dos dois lados.
O próprio Andropov, cuja saúde deteriorava-se rapidamente após uma falência renal em fevereiro de 1983, tratou de alertar os EUA. Em junho, ele convidou o veterano diplomata Averell Harriman para uma conversa. No encontro, revelado este ano por Nate Jones, Andropov falou quatro vezes sobre o risco de uma guerra por "erro de cálculo" e ressaltou que Washington se aproximava perigosamente da "linha vermelha".
Após o exercício para o qual o discurso da rainha foi preparado, houve a sequência de três simulações militares da Otan (a aliança militar ocidental) nas quais a tal linha foi tocada. Nas duas primeiras, Autumn Forge e Reforger, houve exercícios de guerra convencionais, com deslocamento de 40 mil homens, simulando a fortificação da Alemanha Ocidental.
Os jogos culminaram no Able Archer 83, iniciado em 2 de novembro, no qual era simulada a transição de um conflito convencional para uma guerra química e nuclear. Houve inovações, como ataques virtuais com Pershing-2, o uso de criptologia avançada e a participação de líderes como a premiê britânica Margaret Thatcher (1925-2013) e o chanceler alemão Helmut Kohl no exercício.
Só que o Ocidente não sabia que os soviéticos estavam de orelha em pé pela Operação Ryan. Entre 8 e 9 de novembro, conta Gordievsky, a KGB enviou alerta máximo pedindo informações a seus agentes. Aviões foram mobilizados na Polônia e na Alemanha Oriental, e houve movimentos de tropas no Báltico e na Tchecoslováquia.
Não se sabe se os mísseis soviéticos chegaram a ser preparados ou não. De todo modo, os novos papéis desencavados por Jones e outros pesquisadores indicam que o fim do exercício, no dia 11 de novembro, acalmou Moscou.
Andropov acompanhou tudo de uma cama de hospital, de onde despachou de agosto até fevereiro de 1984, quando morreu e foi substituído por outro idoso doente, Konstantin Tchernenko (1911-85).
O clima, contudo, começara a desanuviar --levaria pouco mais de um ano para que Mikhail Gorbatchov levasse a distensão ao Kremlin. No mês seguinte à morte de Andropov, Reagan chamou seu embaixador em Moscou, Arthur Hartman, e perguntou se o medo soviético era real. Não se sabe a resposta, mas a retórica de Reagan nunca mais foi a mesma.
Ele pode não ter ouvido Andropov em junho de 1983, mas prestou atenção a um alerta vindo do seu próprio "métier": o cinema.
Em 5 de novembro, Reagan assistiu a uma pré-estreia do telefilme "O Dia Seguinte", que seria exibido na rede ABC 15 dias depois. Em pleno Able Archer, o presidente viu as ainda hoje impressionantes imagens de um ataque atômico aos EUA. Escreveria depois em seu diário: "O filme foi muito eficiente e me deixou muito deprimido".
A Guerra Fria acabou, mas Estados Unidos e Rússia ainda possuem armas suficientes para arrasar o planeta, o que torna mais que bem-vindos os esforços de reconstituição da crise de 1983.
Não só. Israel, Irã, Índia, Paquistão e Coreia do Norte estão aí para provar que tensão política e gatilhos nucleares não são uma boa combinação, sob o risco de deixar como única alternativa a receita da rainha: "Rezar pelos homens de boa vontade, onde quer que eles estejam".

    A vitória do pênis cabeçudo - Reinaldo José Lopes

    folha de são paulo
    CIÊNCIA
    A vitória do pênis cabeçudo
    A anatomia masculina e outras artimanhas evolutivas do sexo
    REINALDO JOSÉ LOPES
    RESUMO
    Livros do americano Jesse Bering e do britânico John Maynard Smith analisam o sexo por prismas complementares. Bering, com humor de banheiro masculino, comenta a importância do formato do pênis na evolução da espécie. Já Smith, com equações e dados experimentais, investiga por que o sexo existe na natureza.
    -
    Que ninguém duvide da importância dos sex shops para testar hipóteses sobre a evolução da nossa espécie --em especial se estivermos falando das origens da anatomia peniana.
    Um exemplo banal: por que diabos o pênis humano, em especial quando o prepúcio é recolhido e a glande fica exposta, tem esse curioso formato de cogumelo? A pergunta é pertinente porque nossos parentes mais próximos no reino animal, os grandes macacos, ostentam membros relativamente finos e "retos", mais parecidos com uma banana-nanica.
    Pensa daqui, pensa dali, o psicólogo evolucionista Gordon Gallup Jr., da Universidade do Estado de Nova York em Albany, propôs que a chave para entender a esquisitice do pênis do Homo sapiens residia no fato de que a glande costuma ter diâmetro consideravelmente maior do que a haste do membro masculino.
    Imagine uma mulher que copula com dois parceiros, com intervalo relativamente curto entre eles.
    Durante a pré-história da nossa espécie, quando camisinhas eram item inexistente, estava armado o cenário para uma competição de espermatozoides entre os moços -- a não ser que a glande em forma de cogumelo do segundo parceiro servisse como uma espécie de vassoura, armazenando debaixo de si o sêmen do rival e puxando-o para fora da vagina durante o coito.
    Do ponto de vista da teoria da evolução, a lógica é impecável. Mas como testar experimentalmente a ideia?
    VIBRADORES
    Visitando um sex shop, é claro. Gallup Jr. e companhia adquiriram um conjunto completo de vibradores --com e sem glande simulada-- e vaginas artificiais anatomicamente realistas.
    De volta ao laboratório, produziram uma caldeirada de "sêmen artificial" (farinha de trigo misturada com água e fervida). E, após "lubrificar" devidamente a vulva de borracha, verificaram que tipo de consolo era o mais apropriado para remover o esperma falso.
    Vitória dos pênis "cabeçudos", que conseguiam retirar mais de 90% do líquido da vagina de brinquedo, contra apenas 35% de eficiência do vibrador sem glande. Está tudo registrado nas páginas da revista científica "Evolution and Human Behavior". E também no livro "Devassos por Natureza: Provocações sobre o Sexo e a Condição Humana" [trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Zahar, 304 págs., R$ 44,90], do psicólogo americano Jesse Bering.
    As reflexões sobre a importância evolutiva do formato do pênis são bastante representativas da temática do livro, ainda que não de sua linguagem --se você achou os parágrafos acima galhofeiros, é só porque não leu o relato original de Bering, um sujeito com senso de humor típico de banheiro masculino.
    Por outro lado, a disposição para usar piadas é coisa que inexiste em "A Evolução do Sexo" [trad. Antonio Carlos Bandouk, ed. Unesp, 262 págs., R$ 29], clássico escrito em 1978 pelo biólogo britânico John Maynard Smith (1920-2004) que só agora chega ao país.
    Usando os dados experimentais e de campo mais refinados que havia em sua época, Maynard Smith investigou por que, afinal de contas, o sexo existe na natureza. Deu à pesquisa contornos panorâmicos, que vão das trocas de genes entre bactérias às origens do tabu do incesto entre os membros da nossa espécie.
    Apesar das diferenças brutais de estilo, os dois livros se complementam. Com seu estilo pop, Bering apresenta suavemente ao leitor um dos grandes pilares do pensamento evolutivo: encarar a anatomia e o comportamento dos seres vivos sob o prisma da engenharia reversa.
    Trocando em miúdos: diante de características biológicas intrincadas, o cientista dessa área tenta compreender tanto questões funcionais (o famoso "para que serve?") quanto de causalidade, ou seja, até que ponto, em última instância, essa funcionalidade tem um impacto na seleção natural.
    É mais ou menos o que também faz Maynard Smith, com a ressalva importante de que o britânico não quis poupar o leitor das equações que despeja em diversas páginas do livro (embora a maior parte da obra esteja escrita em prosa clara, ainda que árida).
    O arcabouço matemático, de todo modo, é necessário porque o sexo tem um custo --medido naquela que é por excelência a moeda de troca da evolução: o sucesso reprodutivo.
    Ocorre que, do ponto de vista dos "interesses" de cada organismo (as aspas são necessárias porque se trata quase sempre de interesses inconscientes), reproduzir-se por meio do sexo equivale a um desperdício de material genético, já que a prole sempre terá apenas 50% do DNA de cada genitor.
    E é preciso ainda levar em conta o custo considerável de procurar um parceiro, disputar as atenções dele com rivais e sobreviver à cópula, que muitas vezes deixa o casal em posição vulnerável.
    Sob esse prisma, a opção mais razoável, à primeira vista, seria clonar a si mesmo e pronto. Mas o curioso é que essa estratégia, a partenogênese (em grego, "nascimento virgem"), é bastante rara entre animais e plantas. E sua distribuição nos grupos de seres vivos sugere que ela costuma surgir de modo esporádico, a partir de ancestrais com vida sexual "normal".
    Maynard Smith usa modelos matemáticos para examinar as possíveis razões para esse paradoxo. O mais provável é que o sexo seja um mecanismo para "embaralhar" genes de pais e mães com eficiência, de maneira que a prole carregue em seu DNA armas mais diversificadas para enfrentar contingências como novos parasitas, predadores ou eventuais mudanças ambientais.
    Centenas de milhões de anos depois que o primeiro organismo desenvolveu essa estratégia, chegamos a mamíferos de cérebro complexo como nós e os demais primatas, cujas estruturas mentais, além da anatomia, também parecem ter sido buriladas para maximizar o sucesso reprodutivo --universo que é a especialidade de Jesse Bering.
    Autor de um blog no site da revista "Scientific American", ele domina a arte de escolher os detalhes mais picantes dessa temática e "descascá-los" de forma cientificamente sólida.
    Ou, ao menos, tão sólida quanto possível. A área de especialidade de Bering, a psicologia evolucionista, costuma sofrer a acusação, muitas vezes injusta, de construir cenários fantasiosos.
    Como não é possível viajar no tempo para registrar em filme a vida sexual dos hominídeos, e uma vez que os indícios da evolução da mente e do comportamento com frequência só podem ser flagrados de maneira indireta, há quem veja a psicologia evolucionista como um exercício de imaginação divertido, mas que pode ser usado para provar que qualquer coisa e o seu contrário são produtos da seleção natural --tanto o cuidado com a prole quanto o infanticídio, tanto a monogamia quanto a infidelidade.
    ANTIDEPRESSIVO
    Às vezes, Bering incorre nessa caricatura, ainda que com resultados que injetem sabor no texto, como quando ele aborda a literatura sobre os efeitos antidepressivos do esperma humano (mais um estudo, digamos, seminal de Gordon Gallup Jr.) ou quando saúda as habilidades do músculo cremastérico, aquele que faz os testículos humanos se encolherem para perto do corpo num dia frio.
    Hipótese de trabalho dos cientistas nesse caso: o músculo seria o responsável por manter a temperatura testicular num nível nem muito quente, nem muito frio, de maneira a otimizar produção e sobrevivência dos espermatozoides.
    O psicólogo, no entanto, consegue abordar temas surpreendentemente sérios por baixo dessa fachada de deboche. Um deles é o da origem das preferências sexuais humanas e dos preconceitos que as cercam --talvez não por acaso, já que Bering é homossexual.
    É difícil, por exemplo, não pensar em alguns candidatos ao teste descrito pelo pesquisador no capítulo sobre homofobia. Basicamente, amarra-se o pênis do sujeito a um sensor e expõe-se o voluntário a imagens pornográficas, de natureza tanto hétero quanto homossexual. Surpresa: quanto mais a pessoa declara ter raiva de gays, maior a chance de ela ter uma ereção assistindo a homens fazendo sexo com homens.
    Nesse ponto, os dois livros voltam a se aproximar. Não há como a homossexualidade (ao menos se for a prática exclusiva) aumentar o sucesso reprodutivo dos homens gays, embora ela se manifeste a partir de uma base biológica que compartilha com a sexualidade hétero (gays também sentem ciúmes, por exemplo).
    Do mesmo modo, organismos praticantes da partenogênese volta e meia evoluem em condições especiais, mesmo que o sexo seja uma estratégia mais vantajosa, em média. A biologia é o reino da contingência, e não há uma seta única apontando o rumo do progresso --ainda bem, ao menos para quem advoga a diversidade.

      Máquinas de escrever tornam tudo grandioso - TOM HANKS

      folha de são paulo
      NOSTALGIA
      Um prazer à moda antiga
      Máquinas de escrever tornam tudo grandioso
      TOM HANKS
      RESUMO
      Tom Hanks conhece bem o barulho atordoante que se pode tirar das máquinas de escrever. Desde 1978 o protagonista de "Forrest Gump" e "O Resgate do Soldado Ryan" coleciona várias delas. No texto a seguir, elenca três razões que, na sua visão, tornam as velhas peças robustas superiores a laptops e iPads de última geração.
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      Como foi SÓ em 1985 que Mike McAlary começou a cobrir polícia para os tabloides de Nova York, o cenário que representava uma Redação em "Lucky Guy", peça de Nora Ephron com a qual estreei recentemente na Broadway, tinha processadores de texto, e não máquinas de escrever. Foi uma pena. Nós, da trupe, teríamos amado batucar desajeitadas, enormes máquinas de escrever, pelo simples som que elas fazem.
      Bom, eu teria amado, uma vez que tenho pleno conhecimento do barulho atordoante que dá para se tirar de uma velha máquina de escrever manual. Eu uso uma dessas --e também uso os correios-- quase todos os dias. Minhas vagarosas cartas e meus bilhetes de agradecimento, meus memorandos e minhas listas de afazeres, além de vagos --realmente vagos --esboços de histórias são bagunçados, mas poucas coisas no meu cotidiano me satisfazem mais do que produzir esses papéis.
      Confesso que, quando é trabalho de verdade o que tenho de fazer --documentos que exigem tanto rigor quanto um ensaio de fim de ano de faculdade--, eu uso um computador. O fluxo da escrita pede a fluência da tecnologia moderna, e quem não gosta de poder escolher uma nova fonte como Franklin Gothic Medium, Bernard MT Condensed ou Plantagenet Cherokee?
      Para escritos desimportantes, do tipo que não vai além da sua escrivaninha ou da porta da geladeira, o prazer táctil de escrever à moda antiga não encontra comparação naquilo que se obtém de um laptop último tipo.
      Teclados de computador emitem um tímido tec-tec-tec, do tipo que você ouve quando vai ao Starbucks --pode ser que o ruído venha de trabalho sério sendo produzido, mas ele parece pequeno e discreto, como agulhas de tricô das quais brotam pares de meias.
      Tudo o que se datilografa numa máquina de escrever soa grandioso, as palavras se formam em miniexplosões: TCHAC, THAC, THAC. Um bilhete de agradecimento ressoa com o mesmo fragor que uma obra-prima da literatura.
      O ruído produzido ao datilografar é uma boa razão para ter uma velha máquina de escrever --infelizmente, são só três razões, e nenhuma delas é conforto ou agilidade. Além do som, há o genuíno prazer físico que envolve o ato de datilografar; a sensação é tão boa quanto soa, os músculos das suas mãos controlam o volume e a cadência do assalto auditivo, de modo que o espaço ao redor ecoa o staccato das suas sinapses.
      Você pode escolher o modelo da sua máquina de escrever que mais se encaixe com a sua identidade sonora.
      Remingtons dos anos 30 fazem THICK THICK. Uma Midcentury Royal parece uma voz repetindo CHALK. CHALK. CHALK CHALK. Mesmo as máquinas de escrever fabricadas na aurora dos aviões a jato (suficientemente compactas para caberem nas mesinhas dos primeiros 707s), como a Smith Corona Skyriter e as joias do design da Olivetti, fazem FITT FITT FITT, como balas disparadas pela pistola automática de James Bond.
      Escrever numa Groma, exportada para o Ocidente de um país comunista que não existe mais, soa a trabalho, trabalho duro. Feche os olhos enquanto você martela o teclado, e você se sentirá como um ferreiro dando forma a frases que saem, incandescentes, direto da fornalha da sua mente.
      MOBY DICK
      Faça essa experiência: escreva, no seu laptop, a primeira frase de "Moby Dick" e ela vai soar como chamaimeishmael. Agora repita o procedimento numa Olympia dos anos 1950 (tenho duas, caso você precise de uma) e observe: CHAMAI! ME! ISHMAEL! Use seu iPad para fazer uma lista de tarefas e ninguém vai nem notar --não que devesse. Mas datilografe a mesma lista numa velha Triumph, Voss ou Cole Steel, e o mundo saberá que você tem uma agenda a cumprir: ETIQUETAS DE BAGAGEM! EXTENSÕES! LIGAR PARA A EMMA!
      Para ter uma máquina de escrever, é necessário ter espaço e renunciar ao luxo fácil da tecla "delete", mas cada centímetro do que se sacrifica em precisão se conquista em exuberância. Nem se preocupe em usar uma fita corretiva, líquido corretor ou papel translúcido, daquele que facilita apagar.
      Não há por que se envergonhar das sobreposições e de cobrir com XXXXX uma palavra tão mal batida que um corretor ortográfico não seria capaz de decifrar. Essas cicatrizes serão um fator tão importante da sua escrita quanto o seu dom (ou falta de) para as palavras.
      O aspecto físico da datilografia fornece a terceira razão para usar uma relíquia do passado como instrumento de escrita: permanência. Talvez somente palavras gravadas em pedra durem mais do que uma carta datilografada, porque a tinta de fato se impregna na fibra do papel, em vez de ser depositada sobre a sua superfície como acontece com um documento impresso a laser ou na definitiva IBM Selectric --o artefato que fez da máquina de escrever manual um objeto obsoleto.
      Acerte um Y numa máquina alemã Erika e um verdadeiro martelo atinge a fita da máquina, levando a tinta até o âmago do papel, onde será visível para toda a eternidade, a não ser que você pinte algo por cima ou queime a folha.
      Ninguém se desfaz de cartas datilografadas, pois elas são como peças de artes gráficas, tão singulares quanto impressões digitais, uma vez que nenhuma máquina manual grava o papel exatamente da mesma forma como outra.
      E-mails desaparecem de qualquer servidor que não seja do Google ou da NSA. Mas saque uma Brother De Lux 895 dos anos 1960 para disparar um "A festa foi demais! Obrigada por sacudir nossos esqueletos até as três da manhã!" e daqui a 300 anos aquele bilhete ainda vai ter lugar na coleção de um aficionado, que o guardará com o mesmo zelo com que conserva uma nota fiscal de 1776 registrando a venda de 12 belos barris de cerveja.
      A máquina em si pode durar tanto quanto as pedras de Stonehenge. Máquinas de escrever são peças robustas, feitas de aço, e foram pensadas para ser espancadas, como de fato são. Algumas teclas da Underwood do meu pai --comprada de segunda mão logo depois da guerra e usada durante o único ano em que frequentou a universidade-- estavam tão gastas pelo castigo infligido por seus dedos que acabaram deformadas e apagadas. A tecla S era só um cotoco. Eu a levei a uma oficina com a ideia de dar só uma limpada, mas ela voltou com todas as teclas novinhas. Adeus, papai, e maldito seja o funcionário da oficina.
      De todo modo, eu ainda tenho a máquina, e ela funciona, assim como quase todas as máquinas de escrever que ocupam meu escritório, minha casa, meu depósito e o porta-malas do meu carro, uma coleção que teve início quando, em 1978, o proprietário de uma oficina se recusou a consertar a minha máquina de escrever, quase toda feita de plástico.
      "Um brinquedo sem serventia!", o homem berrou. Sim, ele berrou. Ele apontou para prateleiras cheias de máquinas recondicionadas --tinham décadas de existência, mas todas funcionavam perfeitamente. "Uma máquina de escrever era uma máquina", gritou ele, "que podia ser jogada em pleno voo de um avião e continuaria a funcionar!".
      Ele me ofereceu, por um bom preço, uma Hermes 2000 ("O Cadillac das máquinas de escrever!") que tinha uma alavanca para regular a tensão das teclas e cuja régua era a mais precisa e afinada que já se viu. Desde então, comprei a 3000, a Baby e a gloriosa Hermes Rocket: todas ocupam minhas prateleiras e cada uma delas é mesmo um carrão.
      Não existe nenhum outro motivo --além de uma avareza mal dirigida (culpado!)-- que justifique alguém acumular centenas de máquinas de escrever velhas. Quase todas saem por uns US$ 50, a não ser que, digamos, Hemingway ou Woody Allen as tenham usado antes de você. As fitas se encontram facilmente no eBay.
      Uma ou outra máquina de escrever dos anos 70 ainda pode ser deixada para seus netos ou ficar guardada numa garagem até o milênio que vem, quando um arqueólogo vai desencavá-la, limpá-la, lubrificá-la. Certamente em 3013 será possível renovar a tinta da fita, e uma carta batida a máquina poderá então ser expedida naquele exato dia --desde que a máquina não sobreviva à indústria de papel.
      Pensando bem, acho que é bom eu começar a acumular itens de papelaria e rezar para que os correios sobrevivam.

        A arte não tem mandamentos - Agnaldo Farias

        folha de são paulo
        AGNALDO FARIASA história é antiga, para lá de conhecida, mas sempre surpreende: em 1857, ao publicar seu romance "Madame Bovary", Gustave Flaubert e seu editor foram processados pela Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena, por ofender a moral e a religião. Durante sua defesa pronunciou a sentença provavelmente mais imortal de toda sua obra: "Emma Bovary c'est moi".
        A astuciosa confusão que Flaubert estabeleceu entre ele mesmo e sua personagem serviu para que se pensasse sobre a confusão entre leitores e personagens.
        O tema é vasto, fértil, encantador. Vargas Llosa inicia seu ensaio "A Orgia Perpétua" (1957), sobre Flaubert e "Madame Bovary" dizendo que o grande drama de sua vida é a vida e morte de Emma Bovary. Com isso, assenta mais uma pedra no monumento em homenagem à genialidade de Flaubert, a mesma com que achata as mentes obtusas dos inúmeros críticos que não o compreenderam.
        O Nobel peruano não foi o primeiro e não será o último a se impor a ingente tarefa de demonstrar aos seus contemporâneos, mesmo os mais ardentemente reacionários, o valor de uma obra que agride os cânones, os valores estabelecidos, a tradição. Pensando bem, há muito tempo Flaubert não precisa de quem o defenda --muito mais problemático mesmo era defendê-lo em 1857. Como se sabe, nunca foi fácil discordar das matérias e visões consensuais, até porque podia e pode dar processo, prisão, banimento.
        Mario Vargas Llosa é brilhante analisando o passado assim como o é em grande parte de sua ficção. Mas,quando se propõe a examinar o presente, comporta-se como um verdadeiro promotor Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena. Sem tirar nem pôr. A prova está no seu "A Civilização do Espetáculo".
        A consistente defesa que ele faz da importância da cultura contrasta com a indigência de seus comentários sobre a miséria intelectual da cultura contemporânea em geral e da produção artística contemporânea em particular. A seu ver, uma decorrência direta do florescimento da "sociedade do espetáculo" --o uso chapado da expressão cunhada por Guy Debord, é bem ao gosto de um intelectual anacoreta, que assiste do alto a derrocada do seu velho mundinho, sem perceber as nuances da inteligência que, por exemplo, circulam pelas redes sociais.
        FÉ CEGA
        O problema de Vargas Llosa é a fé cega no seu repertório, a pretensão de que sua indiscutivelmente sólida educação seja absoluta. Foi confiando totalmente nela que o autor (como contou em uma palestra em São Paulo) afirmou que, ao passear por toda uma edição da Bienal de Veneza, não viu absolutamente nada de interessante --o que teria catalisado o livro em questão--, concluindo que "o que antes era revolucionário virou moda, passatempo, brincadeira" e que a "frivolidade [nas artes plásticas] chegou a níveis alarmantes".
        É certo que Mario Vargas Llosa é um grande artista, mas não lhe ocorre que seria no mínimo uma imprudência e no máximo uma burrice fazer um juízo tão peremptório sobre o mundo em que vive?
        Vargas Llosa, assim como vários detratores da arte contemporânea, conclui pelo seu desacerto, sua inconsequência, seu vazio. E chega a isso por duas vias: desqualificando obras com comentários tão rasos quanto definitivos e comparando-as à produção do passado: seja ela a moderna, ou a alinhada com a fundação da estética no século 18, ou mesmo a produção do Renascimento, períodos esses em que a arte ganhou novos estatutos e graus de importância.
        Tal atitude é desonesta, por dois motivos: primeiro, porque tenta fazer com que uma opinião passe por visada analítica; segundo, porque pretende medir algo por um sistema métrico alheio ao que ele traz consigo, esquecendo-se cinicamente de que isso equivale a julgar a qualidade de uma instalação tendo pinturas como parâmetro, ou avaliar um jogo de futebol usando regras do beisebol.
        A omissão de fatos históricos é um aspecto fundamental da argumentação desenvolvida pelos arautos da morte da arte na contemporaneidade. Admira que não aprendam nada com seus inumeráveis antecessores --aqueles que jogaram ovos em Nijinsky e Stravinsky; os que ignoraram Van Gogh, os que processaram Flaubert.
        Causam espanto aqueles que saem em defesa de uma arte absoluta, esquecendo-se, ou querendo-nos fazer esquecer, de que a arte, na qualidade de produto da história, varia no tempo e no espaço; nada tem de fixa; não teve seus mandamentos trazidos por nenhum Moisés. Parafraseando Brecht, a arte [como tudo] é filha do tempo, e não da autoridade.
        RECEPÇÃO
        A história da arte é pródiga em casos de mudança de recepção, em aclamar obras esquecidas por anos e até séculos, e em colocar no chão produções antes consideradas eternas. Se é fato que Shakespeare foi um caso de sucesso imediato, o mesmo não se aplica ao grande Sandro Boticelli, vizinho de Michelangelo na Sistina, que, como escreveu Michael Levey, "passou por séculos de abandono". Mesmo em meados do século 19, a crítica de arte era unânime em considerá-lo um pintor de "mulheres rudes de um modo geral destituídas de beleza".
        Se as reputações artísticas sofrem altos e baixos, o mesmo não se pode dizer dos seus conceitos, que, arraigados ao público, sobrevivem duradouramente. O público, dizia Delacroix, "é um relógio que atrasa". A questão é: quem não é público? Se até mesmo os artistas o são, o que dizer de críticos e das demais autoridades que falam em nome da arte?
        O grande desapontamento e irritação por parte de quem, como Vargas Llosa, visita exposições de arte contemporânea, deve-se a sua frustração por não encontrar nem sombra daquilo que já conhecia. Para todos esses caberia lembrar a lição de Rimbaud que, tendo a beleza em seu colo, injuriou-a.
        A beleza, assim como alguns dos mais célebres pressupostos e objetivos da produção artística, foi paulatinamente despojada de seu estatuto porque possuía a imobilidade --e o tédio-- dos entes perfeitos. A partir de Baudelaire, a modernidade é associada ao movimento, à transformação ininterrupta --o que por certo inclui a produção artística.
        O que é arte afinal? Como pretender fixar um conceito que de há muito afirma sua aversão a qualquer camisa de força? Em uma de suas colocações mais inspiradas, Waltercio Caldas afirmou que nunca se perguntava se o que estava fazendo era arte ou não; a pergunta era, a seu ver, improdutiva.
        A arte é contemporânea quando faz notar nossas lacunas, nossa qualidade inacabada, revelando, em contrapartida, nossa possibilidade de ampliação como ser.
        Vargas Llosa deveria abandonar sua presunção, evitando pontificar sobre aquilo que não se dispõe a entender. Deveria ter em mente que Caravaggio, antes de ser consagrado como gênio, foi considerado pintor de blasfêmias; que o afresco de Michelangelo na Capela Sistina impressionou Delacroix pela exuberância pouco bíblica dos corpos; e que o músico Béla Bártok foi considerado alguém que "saíra em procura da beleza armado de martelo e bastões".

          Entrevista Will Gompertz - Cassiano Elek

          folha de são paulo
          Um mar de tubarões
          Crítico traça guia para navegar por 150 anos de produção artística
          CASSIANO ELEK MACHADO
          RESUMO
          Autor de "Isso é Arte?", Will Gompertz afirma que os artistas nunca se guiaram tanto como agora pela relação com o dinheiro e diz que isso define a ausência de crítica quanto ao que se produz e exibe. Para o editor da BBC, falta ao grande público informação que permita ficar à vontade para avaliar a produção atual.
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          O cliente que pede "quero esta em azul" e que ouve o lojista responder "esta só vou ter bege", numa loja da cadeia Gap na 5ª Avenida, em Nova York, não tem como saber, mas naquela mesma esquina começou o maior terremoto da arte do século 20.
          Numa segunda-feira de início de abril, em 1917, outro cliente entrou no estabelecimento que então ocupava o número 118 da avenida, a tradicional loja de ferragens J.L. Mott e, daquela barafunda de maçanetas, pias e banheiras de ferro, saiu carregando no colo um mictório de porcelana branca.
          O nome do rapaz, claro, era Marcel Duchamp (1887-1968), e o tal urinol, igual aos que eram instalados em milhares de banheiros comuns, se converteria pouco depois na "obra de arte mais influente criada no século 20".
          As aspas são do inglês Will Gompertz, 47, editor de artes da emissora britânica BBC e ex-diretor da Tate Gallery, em Londres. E é com este episódio emblemático, do mictório que o artista francês transformou numa "escultura" chamada "Fonte", que ele abre o seu livro "Isso É Arte?" [Zahar, tradução Maria Luiza X. de A. Borges, R$ 59,90, 464 págs.], recém-lançado no Brasil.
          Pouco importa que Duchamp não tenha conseguido à época expor o urinol e que a peça "original" tenha se perdido. Até a concepção de "Fonte", era o meio (tela, madeira, papel, mármore) que ditava o modo como o artista trataria da realização de sua obra. "Duchamp queria inverter isso. Considerava o meio secundário: o primordial era a ideia", escreve.
          Gompertz não nos conta nada de revolucionário com isso. Há muitas décadas críticos e historiadores de arte de todo o mundo vêm mascando nervosamente esse momento de epifania artística. Mas não haveria outro começo para o livro que ele decidiu escrever.
          Ao longo de centenas de páginas, o autor se propõe a discutir a pergunta expressa no título, segundo ele bastante frequente a espectadores cada vez mais numerosos de mostras mundo afora --e a fonte da questão foi o urinol.
          O visitante do museu olha a cama desfeita e amarfanhada, com lençóis manchados (obra de 1998 da britânica Tracey Emin), ou o tubarão-tigre num aquário com formol (escultura de 1991 do também inglês Damien Hirst), coça o queixo e questiona: "Isso é arte?".
          O escritor peruano Mario Vargas Llosa responderia que não, como expressa com veemência em "A Civilização do Espetáculo" [Alfaguara, tradução Ivone Benedetti, R$ 34,90, 208 páginas], analisado no texto ao lado.
          Mas, para Gompertz, obras como o célebre tubarão de Hirst não só são arte como constituem grandes marcos do maior movimento em voga hoje, que ele ensaia batizar de "artetenimento" ou simplesmente de "empreendedorismo". O autor inglês, que virá ao Brasil pela primeira vez em setembro, como convidado da Bienal Internacional do Livro do Rio, conversou com a Folha por telefone sobre o cenário da mercantilização da arte.
          Folha - Em "Isso É Arte?" o sr. enfatiza os aspectos financeiros do universo artístico e toma o leilão promovido por Damien Hirst em 2008 como um marco de um "movimento" atual, o empreendedorismo. Por que tamanho destaque para essa mercantilização?
          Will Gompertz - É um encontro muito interessante o da arte com o dinheiro. Quase sempre foram sinônimo, como vimos no tempo dos Médici, em Florença, e na relação de Leonardo da Vinci com as cortes italianas. A novidade do momento que vivemos é que a relação entre dinheiro e arte ficou mais explícita, até um ponto, recente, no qual o artista virou literalmente um homem de negócios. Os artistas estão cumprindo a profecia de Andy Warhol de que a arte seria feita em fábricas. Artistas como Jeff Koons estabeleceram verdadeiras indústrias para elaborar obras para um mercado em crescimento constante. Antes abasteciam Europa e EUA, agora vendem para todo o planeta.
          Como a relação entre dinheiro e arte tende a afetar a qualidade da produção artística?
          Ela tem um efeito ruim para a arte em geral. Não acho que, de um ponto de vista histórico, a relação do artista com seus mecenas ou com homens de negócios tenha sido negativa. O impressionismo e o expressionismo abstrato, por exemplo, provavelmente não teriam sobrevivido sem o apoio inicial de agentes e outros investidores. Mas agora as coisas mudaram: o dinheiro assumiu um protagonismo inédito. E artistas gastam milhões de libras para produzirem objetos gigantescos e lustrosos, que parecem menos interessantes do que o que realizavam quando não tinham dinheiro algum.
          Por outro lado, o sr. aponta que nunca tantas pessoas frequentaram exposições de arte como agora. Esse movimento não pode funcionar como um antídoto para a "mercantilização" artística?
          É por isso que decidi escrever o livro. Há um grande público que precisa das informações históricas, para que possa decidir por conta própria o que acha que é boa ou má arte. Vivemos numa época em que nos é imposta a ideia de que tudo o que está em museus ou galerias é maravilhoso. Não há mais crítica a nada. Isso tem claramente relação com a mercantilização da arte e com todos esses museus que escolhem colecionadores milionários para serem conselheiros. Uma vez que o nome de um artista é estabelecido, não interessa a ninguém que seu valor de mercado seja afetado.
          Há, portanto, desonestidade e corrupção no sistema. Isso significa que nós, os espectadores de arte, nunca temos ajuda. Um filme de Woody Allen ou um livro de um escritor famoso pode ser bem ou mal avaliado. Na arte é tudo bom.
          O sr. faz um grande esforço para explicar por que centenas de artistas são realmente artistas, e não charlatões, mas não para mostrar que algum grande artista é um enganador. Por quê?
          Acho que os verdadeiros charlatões são alguns colecionadores. O artista faz suas obras, e esse é o papel que cabe a ele. Se o colecionador ganancioso decide comprá-las só porque o nome do artista é conhecido, ele é que é o enganador.
          Não existem obras de arte ruins que mereçam ser apontadas como tal?
          O que eu tento fazer no livro é guiar as pessoas para o que é bom, o que não significa afirmar, e é o que eu acho, que 99% da arte produzida hoje é ruim, da mesma forma que a maior parte dos livros, filmes ou peças recentes não são muito bons. Não creio que faça sentido escrever um livro sobre a arte que não é boa. Seria estimular as pessoas a verem o que é ruim. Quero ajudar as pessoas a fugirem do que é um lixo apontando obras que merecem seu tempo.
          No ensaio "O Pintor da Vida Moderna", de 1863, Charles Baudelaire dizia que "poucos homens são dotados da capacidade de ver". Após 150 anos, nós enxergamos melhor?
          Acho que não. Talvez ainda pior do que há 150 anos. Tornamo-nos obcecados por nós mesmos. É a geração "eu". Você vê pessoas andando nos parques olhando para seus celulares, sem nem conseguirem manter uma conversa com o vizinho. Hoje há muito pouca gente apta a enxergar a vida além de suas experiências mais pessoais. A objetividade parece ser uma ação em queda no mercado.
          A aproximação de multidões de pessoas à cultura da fotografia, com a difusão do digital e de aplicativos como o Instagram, não pode ajudar a educar o olhar?
          Acho que isso só faz as pessoas se interessarem cada vez mais por elas mesmas e pararem de prestar atenção no universo do outro.
          O sr. faz um trabalho de grande síntese, ao aglutinar 150 anos de arte. O sr. acredita que tenha conseguido acrescentar elementos novos à narrativa dessa história?
          Acho que a razão de existir do livro é olhar a arte moderna a partir do século 21. Muitos o fizeram no século 20, mas faltava uma visão nova. O realmente novo, entretanto, seria um olhar para o que aconteceu nesse período fora da Europa e dos EUA. O que acontecia na China, na África, na América da Sul, nas áreas ignoradas pelo "establishment"? Esse talvez seja o tema de meu próximo livro.
          Em sua história da arte, o sr. faz referências ao universo pop, como "Onde Está Wally?", Beyoncé, "Os Simpsons" e Susan Boyle. O sr. usou esses elementos a fim de atrair um público novo?
          Sim, eu considero essas referências muito importantes para meu trabalho. O que quero afirmar ao citá-los é que a arte não existe só dentro da bolha dos artistas. Ela reflete a vida cotidiana. Deveríamos nos sentir tão confortáveis com a arte quanto nos sentimos com "Os Simpsons".
          O sr. cita o Brasil em três ocasiões no seu livro, ao se referir ao Carnaval do Rio, a Brasília e ao artista contemporâneo Cildo Meireles. O sr. já esteve no país?
          Não, e estou ansioso para chegar aí para a Bienal do Livro do Rio. Cito Meireles porque, na minha opinião, é um dos melhores artistas do mundo. É um gênio. Também sou um grande fã de Helio Oiticica e de Caetano Veloso, um de meus cantores preferidos.
          Você tomou a decisão de não citar as fontes bibliográficas de sua pesquisa. Houve alguma obra central para a sua pesquisa?
          Não. Usei muitos catálogos de mostras individuais de artistas. Também consultei instituições de pesquisa, visitei acervos e falei com curadores e críticos. Foram fontes mais importantes do que livros gerais de história da arte.
          O sr. não menciona no livro diversos artistas contemporâneos destacados, como Anselm Kiefer, Gerhrad Richter, Anish Kapoor, Bill Viola. O sr. não acha que eles sejam de grande importância? Ou foi por uma questão de espaço?
          A estrutura do livro foi construída em torno das escolas de arte moderna, não dos artistas. Trato essencialmente dos artistas que estabeleceram esses movimentos. No universo do expressionismo, por exemplo, eu começo em Van Gogh, em 1880. Mas o expressionismo continua até hoje, com grandes artistas como Kiefer. Eu poderia ter feito um livro inteiro só sobre o expressionismo, ou sobre Picasso, mas, por conta do formato que escolhi, tive de deixar alguns autores icônicos de lado.
          É impressão ou o sr. gosta mais de Cézanne do que de Picasso?
          Essa é difícil. Os dois foram colossos. Foram mestres e gênios e não consigo pensar numa obra da qual eu goste mais do que a pintura "O Retrato de Gertrude Stein" (1906), de Picasso. Mas Cézanne foi mais consistente e inovador. Picasso não poderia ter acontecido sem Cézanne.

          Marcelo Leite

          folha de são paulo
          Guerras biológicas
          O mais saliente na natureza humana talvez seja o vasto potencial para ramificar-se em manifestações culturais
          Predomina hoje a noção de que a violência tem raízes biológicas. Uma mixórdia de evidências e especulações refoga neurociência, genética e darwinismo com pitadas de antropologia para concluir que, no fundo, somos todos trogloditas.
          Não faltam exemplos de comportamento violento e irracional nos dias de hoje. Basta ver a PM e o Black Bloc em ação. Obviamente, são casos extremos, excepcionais. A maioria das pessoas é pacífica.
          Uma saída comum para justificar a anomalia consiste em tratar a violência como um resquício do passado natural da espécie humana.
          O raciocínio segue assim: o homem nasceu guerreiro e terminou por civilizar-se, preferindo cooperar a agredir. A seleção natural o pôs no bom caminho, pois haveria mais vantagens para os indivíduos, em termos de sobrevivência, na colaboração (até para vencer guerras).
          Como ninguém tem acesso ao que de fato acontecia na origem da espécie, uns 100 mil anos atrás, a reconstrução se vale de povos caçadores-coletores do presente. Ali estaria a demonstração viva da equação entre "primitivo" e "violento".
          Essa visão aproxima figuras célebres como Edward O. Wilson, Stephen Pinker, Jared Diamond e Napoleon Chagnon. Ganha adeptos até entre filósofos e economistas. Um destes é Samuel Bowles, do Instituto Santa Fé (Novo México, EUA).
          Bowles levantou uma polêmica sobre o tema na edição de 20 de julho do semanário "The Economist", leitura obrigatória entre poderosos (o germe ultradarwinista não se contenta com os limites estreitos da população universitária).
          Bowles reagia a uma reportagem da revista sobre o trabalho antropológico de Douglas Fry e Patrik Söderberg, da Universidade Abo Akademi (Finlândia). No periódico acadêmico "Science" daquela semana, eles tinham lançado um desafio aberto à tese da guerra primordial: pelas suas contas, a maioria dos povos naturais tem índole pacífica e haveria mais violência dentro dos grupos do que guerras entre eles.
          A dupla extraiu dados sobre 148 mortes violentas entre 21 grupos indígenas em estudos etnográficos clássicos. Concluiu que a maioria (55%) resultava de violência entre indivíduos, motivados por vingança ou disputa por alguma mulher, e não de conflitos entre tribos.
          Surgiram várias objeções ao trabalho. Bowles, por exemplo, argumenta com razão que guerras não precisam causar o maior número de mortes para ter um impacto na evolução de comportamentos sociais.
          O furo maior, contudo, se encontra na própria amostra de Fry e Söderberg: o povo tiwi, da Austrália, que responde por quase metade (69) das mortes estudadas. Os tiwis destoam não só pela violência, mas também por praticá-la em grupo.
          Das duas, uma: ou se nega a eles a condição de humanos ou algo na disposição natural do homem possibilita que se comportem assim.
          A resposta para esse dilema é que a característica mais saliente da natureza humana talvez seja o vasto potencial para ramificar-se em manifestações culturais, ainda que contidas entre balizas universais (como a interdição do incesto).
          Não tem nada a ver com relativismo ou com achar que a violência, se for ritual ou tradicional, pode ser aceitável. Não pode, ponto.
          Essa história de estado de natureza é uma gororoba do século 17, e nem mesmo o tempero científico do 21 a tornará mais palatável.

            Samuel Pessôa

            folha de são paulo
            SAMUEL PESSÔA
            O mundo não explica o freio do Brasil
            A desaceleração brasileira não foi compartilhada pelos demais países da AL nem pelo resto do mundo
            O crescimento da economia brasileira tem se desacelerado acentuadamente desde 2009. A forte expansão de 7,5% de 2010 foi, na verdade, uma recuperação do crescimento negativo do ano anterior.
            No biênio 2009-10, o crescimento médio da economia foi de 3,5% ao ano, ou 0,5 ponto percentual abaixo da média do governo Lula. Ou seja, a desaceleração da economia já vem de muitos anos.
            Essa é uma situação em que o economista tipicamente fica em dúvida sobre até que ponto o processo é cíclico --fruto, por exemplo, da desaceleração da economia global em razão da crise de 2008. É possível também que haja um componente a mais na história, ligado especificamente ao país.
            A dificuldade é que, como geralmente acontece nas questões econômicas, temos de lidar com o complexo problema da inexistência de um experimento controlado.
            Em outras palavras, a crise global não aconteceu sozinha. Outros fatores condicionantes do crescimento do Brasil também mudaram desde a sua eclosão. Logo, é muito difícil associar a desaceleração, de forma conclusiva, a esta ou aquela causa.
            Sem negar a importância do ciclo internacional, que sempre existiu e influencia sobremaneira os movimentos cíclicos das economias, é importante enfatizar que o grau de desenvolvimento de uma economia depende de sua tendência de crescimento no longo prazo.
            A Austrália apresenta renda per capita diversas vezes maior do que a nossa. Não obstante ela estar sujeita aos mesmos movimentos cíclicos da economia mundial aos quais estamos sujeitos (como país também exportador de commodities), ao longo de décadas a Austrália cresceu a taxas médias superiores às nossas. É esse fato que explica a renda per capita superior.
            Retomando o fio da meada, a grande questão é saber se a queda do crescimento brasileiro desde 2009 representa um movimento cíclico, acompanhando a tendência da economia mundial, ou se resulta de alguma alteração de política econômica que ocorreu no passado recente.
            Penso que a maior parte de nossa desaceleração não é cíclica. A tabela apresenta taxas de crescimento da América Latina, de diversos países da região e do mundo.
            O objetivo de comparar o Brasil com outras economias é tentar contornar o problema da inexistência de um experimento controlado. Como as economias latino-americanas são parecidas com a brasileira em diversas dimensões, mas não experimentaram a mesma alteração de política econômica interna pela qual passamos, podemos tentar separar o que é o efeito cíclico (ligado à economia global) da tendência doméstica de crescimento do país.
            Na era Lula, o aumento do PIB nacional ficou 0,1 ponto percentual acima da economia mundial e 0,1 ponto percentual abaixo do continente. Já nos três primeiros anos da presidente Dilma, nosso crescimento será praticamente 1,5 ponto percentual inferior ao da América Latina e ao da economia mundial.
            Em outras palavras, a desaceleração recente da nossa economia não foi compartilhada pelos demais países latino-americanos nem pelo resto do mundo. Assim, não parece que a intensidade da perda de dinamismo da economia brasileira possa ser atribuída ao movimento cíclico da economia mundial nem ao impacto desse movimento na América Latina.
            A desaceleração da economia mundial foi muito menor do que a nossa. Nossos vizinhos, economias com instituições e história que acompanham a nossa em diversas dimensões, não sentiram tanto os efeitos cíclicos da crise como sentimos.
            Há claras indicações, portanto, de que há uma redução da tendência de crescimento de nossa economia.

              Vinicius Torres Freire

              folha de são paulo
              VINICIUS TORRES FREIRE
              Onde há Maria Fumaça, há fogo
              Empresas interessadas no trem-bala têm ficha suja pelo mundo e soltam fumaça em São Paulo
              SE O GOVERNO federal ainda precisava de um motivo para adiar (e depois esquecer) o leilão do trem-bala, a Siemens sem querer querendo ofereceu uma razão.
              A última empresa assumidamente interessada no leilão desse trem, marcado para a semana que vem, é a francesa Alstom. Mais precisamente a Alstom e sua consorte SNCF, a estatal francesa das ferrovias. A Siemens colocou a Alstom no rolo dos trens do tucanato paulista.
              Como tem noticiado esta Folha, a Siemens entrega alguns anéis para não perder os dedos. Dedou a si própria e a empresas do ramo de terem participado de bandalheiras no negócio de venda e de reforma de trens para o metrô de São Paulo.
              Segundo documentos que constam da investigação, a Siemens fazia parte de cartéis formados com anuência ou incentivo de gente dos governos tucanos de São Paulo. Uma das consortes da Siemens seria a Alstom. Uma outra, a espanhola CAF, que também pode disputar o trem-bala. Assim como a própria Siemens.
              A Alstom e a Siemens têm longa ficha corrida em casos de propina e assemelhados, com várias condenações pela Europa e/ou EUA.
              Duas das subsidiárias da Alstom foram consideradas "ficha suja" pelo Banco Mundial, que em 2012 as barrou de concorrências com dinheiro do banco por três anos devido a um caso de propina (baratinha) na Zâmbia. Também é investigada por propinas no Brasil e alhures.
              Em 2009, o Banco Mundial também considerou a Siemens "ficha suja" (sofreu "debarment") por causa de propina. A empresa foi banida por dois anos de participar de projetos financiados pelo banco. Um ano antes, pagara US$ 1,6 bilhão em multas na Alemanha e nos EUA, também por causa de propinas.
              Voltando ao assunto: como é que Dilma comemoraria o sucesso de um leilão do trem-bala vencido pela Alstom e consortes? "Esse leilão foi uma maravilha, santinho! Estamos muito felizes de fechar um contrato com essa empresa que tanto contribuiu para fritar os tucanos."
              Alguém pode dizer que o governo federal não teria alternativa ao trem das empresas europeias. Mas, quando essa história do trem-bala recomeçou sob Dilma, ainda presidente-eleita, em 2010, os maiores interessados eram chineses e coreanos.
              Alguém pode também dizer distraidamente que, além de querer limpar sua barra "urbi et orbi," pelo mundo, a Siemens aproveita o ensejo para jogar areia nos trilhos das concorrentes europeias, que podem ficar com "ficha suja" em disputas brasileiras, como a do trem-bala.
              Entenda-se o limpar a barra "urbi et orbi": de uns cinco anos para cá, EUA e alguns países europeus estão pegando mais pesado com alguns tipos de corrupção (quebrar banco e levar dinheiro do governo ainda não é um rolo tipificado, mas vá lá, não sejamos tão cínicos).
              Por enquanto, as penas nem sempre são lá muito grandes: cadeia para poucos executivos e multas por vezes irrisórias para empresas tão grandes (embora bancos estejam pagando multas perto da casa do bilhão de dólares por cumplicidade em evasão fiscal).
              Mas o caldo pode vir a engrossar. Talvez as leis endureçam e empresas venham a ser banidas de alguns mercados nacionais por alguns anos. Aí, sim, seria cortar na carne, até o osso. Fica a sugestão para as autoridades brasileiras.

                Portugal vive sua maior crise demográfica - Patricia Campos Mello

                folha de são paulo
                Queda na taxa de fecundidade e emigração podem tirar cerca de 1 milhão de habitantes do país em 10 a 20 anos
                'Primeira, segunda e terceira opção de nossos melhores alunos é emigrar', diz diretor de incubadora de Lisboa
                PATRÍCIA CAMPOS MELLOENVIADA ESPECIAL A LISBOAPortugal vive a crise demográfica mais grave de sua história. O país pode perder 1 milhão de habitantes em 10 a 20 anos --quase 10% de sua população de 10,6 milhões.
                "É catastrófico", diz João Peixoto, professor da Universidade de Lisboa. "A crise demográfica em Portugal é muito grave, porque junta motivos estruturais, como a queda da taxa de fecundidade, e conjunturais, as emigrações por causa da crise."
                Cerca de 100 mil portugueses emigram por ano desde 2010, segundo o governo.
                São os mais qualificados e mais jovens que deixam o país. Gente como o economista Alexandre Abreu, 34, que vai trabalhar em Timor Leste por dois anos.
                Ele fez faculdade e mestrado na Universidade de Lisboa e doutorado na Universidade de Londres, estudando migrações e a crise do euro. Grande parte dos seus estudos foi custeada por bolsas do governo português.
                Há dois anos voltou da Inglaterra, mas não consegue emprego fixo em Portugal, porque as vagas foram congeladas no plano de austeridade. Com contrato de meio período, ganhava € 1.000 por mês (cerca de R$ 3.000).
                "Tentei ficar, mas, com esse contexto de crise, não consegui. Fomos subsidiados pelo governo para atingir essa formação avançada e agora não há empregos aqui."
                O declínio da natalidade é antigo na Europa, mas era parcialmente compensado pelos imigrantes, que têm número maior de filhos.
                Portugal teve queda forte na taxa de fecundidade, hoje em 1,28 filho por mulher. E a crise demográfica do país é mais grave que a de outras nações europeias porque se alia à onda de emigração de mão de obra qualificada.
                "A crise agravou a queda de fecundidade, porque, quanto maior a instabilidade na vida profissional, menor a vontade de ter filhos", diz o demógrafo Jorge Malheiros, da Universidade de Lisboa.
                Os nascimentos vêm caindo. Foram 96.856 em 2011, 89.841 em 2012 e a estimativa para este ano é de 80 mil.
                Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas, o número de mortes em Portugal foi 11.868 superior ao de nascimentos entre janeiro e abril deste ano. Associado às emigrações, o país encolhe a taxas aceleradas.
                "Só não emigram mais portugueses porque outros países também estão em crise", diz o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Cesário.
                A maioria emigra para outros países da Europa, aproveitando-se do espaço Schengen. França, Reino Unido, Luxemburgo e Alemanha são os principais destinos.
                Em 2012, calcula-se que Angola tenha recebido 30 mil portugueses, Moçambique, 5.000, e o Brasil, 2.171.
                Além de Portugal, também Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Hungria e Romênia encolheram em 2011.
                "A longo prazo, nenhum país consegue ter crescimento econômico forte com regressão demográfica; um país que perde população não tem dinamismo", diz Jorge Malheiros.
                Segundo dados do Eurostat, Portugal tem a quarta maior porcentagem de população com 65 anos ou mais da UE ""19,4%. Perde apenas para Alemanha, Itália e Grécia.
                "E os jovens são mais capazes de assumir riscos, de empreender, então, ao se perder jovens, perde-se capacidade de inovação no país", diz o demógrafo.
                "A mobilidade de quadros é positiva, desde que eles voltem. Hoje não temos forma de atraí-los de volta", acrescenta José Cesário.
                A taxa de desemprego de Portugal foi de 17,4% em junho. Mas entre os jovens (abaixo dos 25 anos) é bem mais grave --está em 41%.
                "Portugal sempre foi um país de emigrantes --emigrar não dói, não aleija, e todos têm um emigrante na família", diz João Vasconcelos, diretor da Startup Lisboa, que reúne 40 empresas de alta tecnologia e estimula o empreendedorismo. "Mas agora é diferente: todos os melhores alunos, nossa elite, têm como primeira, segunda e terceira opção emigrar".
                  Visto de trabalho a portugueses dobra no Brasil
                  DA ENVIADA A LISBOAO número de portugueses que receberam visto de trabalho no Brasil aumentou 101% no primeiro trimestre deste ano em relação a igual período de 2012. Segundo o Ministério do Trabalho, foram 704 diante de 349 em 2012. Em 2010, foram 757 vistos; em 2011, 1.547; em 2012, 2.171.
                  Mas, segundo autoridades dos dois países, o número de portugueses que chegam ao Brasil é bem maior do que os vistos concedidos, pois a maioria entra de forma irregular. A concessão de vistos é burocrática, e o processo chega a levar mais de seis meses.
                  "A equivalência de diplomas de arquitetos e de engenheiros portugueses no Brasil, país que precisa muito desses profissionais para as suas obras de infraestrutura, evolui muito lentamente", conta o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Cesário.
                  "Visto de trabalho para o Brasil é muito difícil, burocrático, por isso alguns optam por outros países europeus ou por Angola e Moçambique", diz ele. (PCM)
                    Apesar de iniciativas do governo, interior passa por 'desertificação'
                    PATRÍCIA CAMPOS MELLODA ENVIADA A FELGAR (PORTUGAL)
                    A última escola primária de Felgar, aldeia em Trás-os-Montes, fechou no início deste ano. Tinham sobrado só 12 alunos. Felgar, como o resto do interior do país, vive um processo de esvaziamento.
                    A aldeia, cercada de oliveiras e amendoeiras, faz parte do município de Torre de Moncorvo, que tem 8.572 mil pessoas (Censo de 2011). Em 1960, eram 18 mil.
                    Não se veem jovens nas ruas de pedra de Felgar. São quatro idosos com mais de 65 anos para cada jovem no município.
                    Toda a família de Antonia Maria Salgado, 88, foi embora dali. "Só sobramos eu e minha prima Conceição", diz. Conceição tem 83 anos.
                    Dois dos três filhos de Antonia morreram. Um não vive mais na aldeia. De seus netos, nenhum ficou em Felgar. Um foi para Angola e outra está na França.
                    Felgar é um retrato da chamada desertificação do interior de Portugal. No interior, o número de municípios que perdeu população aumentou de 173 (entre 1991 e 2001) para 198 entre 2001 e 2011.
                    Também aumentou o número de municípios com decréscimos populacionais superiores a 10% no interior.
                    "Teremos cada vez mais aldeias vazias; isso resulta em um país muito desequilibrado", diz Jorge Malheiros.
                    Na onda de emigração dos anos 60 e 70, os trasmontanos foram para Lisboa, Porto, França e Alemanha. Muitos agora se aposentaram e voltaram para as aldeias. Mas seus filhos, mais qualificados que a geração anterior, estão quase todos no exterior ou em cidades grandes.
                    O governo fez iniciativas para repovoar o interior. "O turismo rural e a profissionalização da agricultura não foram suficientes para reverter o esvaziamento do interior, principalmente em algumas aldeias em Trás-os-Montes e no Alentejo", diz o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Cesário.

                    Encrenca olímpica à vista - DORRIT HARAZIM


                    O GLOBO - 11/08/2013
                    Aseis meses dos XXII Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, na Rússia, o presidente Vladimir Putin está no centro de um inflamado embate com a comunidade LGBT do mundo inteiro. Em princípio, nada que tire o sono desse chefe de Estado que esculpiu para si um perfil de macho nacional. Putin também sabe que ao desempenhar o papel de cruzado das tradições russas contra a degradação dos costumes no Ocidente sua popularidade cresce junto à base conservadora e religiosa que lhe é fiel.

                    A sucessão de leis que ele sancionou nas últimas semanas restringindo os direitos dos grupos LGBT evoca os tempos stalinistas. A primeira, aprovada por maioria absoluta no Parlamento e por 88% da população, criminaliza qualquer manifestação a favor dos direitos civis gays e classifica como pornografia a propaganda homossexual . Outra proíbe a adoção de crianças russas não apenas por casais homossexuais mas também por solteiros residentes em países onde o casamento gay tem alguma forma de legitimação. E uma terceira autoriza a polícia russa a prender turistas e cidadãos estrangeiros suspeitos de serem homossexuais, lésbicas ou pró-gay . Podem ficar detidos por duas semanas. No mês passado uma equipe de cinema holandesa que entrevistava jovens para um documentário sobre direitos civis foi a primeira enquadrada.

                    Em tese, isso significa que qualquer atleta, técnico, repórter, membro de delegação ou turista olímpico gay ou suspeito de sê-lo pode ser detido antes, durante ou após os 18 dias de duração dos Jogos em Sochi.

                    Para o Comitê Olímpico Internacional (COI), é encrenca à vista - mesmo que as autoridades locais sejam lenientes para não estragar o evento que terá custado mais do que a Olimpíada de Pequim.

                    Recebemos garantias do escalão mais alto do governo russo de que a legislação não afetará a quem participar dos Jogos , informou o comunicado inicial do COI. As Olimpíadas são um evento internacional de grande porte. Devemos ser tão polidos e tolerantes quanto possível. E por este motivo foi tomada a decisão de não levantarmos essa questão [a aplicação da lei aos visitantes] durante os Jogos , assegurou também o vice-presidente russo da Comissão Parlamentar de Educação Física, Esporte e Juventude.

                    Quer dizer então que, com o nosso salvo-conduto para participar dos Jogos de 2014, os skinheads vão espancar somente os homossexuais russos, é isso? , indaga o americano John Aravosis, um dos blogueiros mais ativos na campanha para sacudir Sochi.

                    O embate está apenas começando. Numa segunda rodada, a entidade aceitou receber em sua sede de Lausanne representantes do grupo ativista All Out, para quem realizar os Jogos em Sochi, com a atual legislação em vigor, equivale a realizá-los em Johannesburgo no auge do regime de apartheid. Petições contendo centenas de milhares de assinaturas chegam à sede olímpica que promete exigir do governo russo um compromisso mais amplo e firme. E por escrito. Ela também reitera sua posição de que os Jogos devem ser abertos a todos - espectadores, oficiais, mídia, atletas - e livres de discriminação. Nos oporíamos frontalmente a qualquer ato capaz de ameaçar este princípio , conclui.

                    Pode não ser um princípio, mas uma coisa já foi mais do que ameaçada - foi derrubada. Em contraste com os Jogos de Inverno de Vancouver, em 2010, e os de Londres, em 2012, Sochi não terá uma Pride House como ponto de encontro e de informação para atletas LGBT.

                    Ironicamente, porém, essas Olimpíadas talvez venham a ter um efeito bumerangue. Elas podem se tornar uma inesperada plataforma para que atletas e os próprios russos driblem as leis vigentes e tornem o direito de ser gay a marca de 2014. Algo como o protesto contra a discriminação racial imortalizado nos punhos dos americanos Tommie Smith e John Carlos, no pódio dos 200 metros rasos de 1968, na Cidade do México.

                    Para a rede de televisão americana NBC, que pagou US$ 775 milhões pelos direitos de transmissão de Sochi, a sinuca não é menor. Nos Estados Unidos a não discriminação de gays é defendida tanto pelo ocupante da Casa Branca como por patrocinadores olímpicos de peso - Coca-Cola e McDonald´s, entre outros. Como não fazer qualquer referência a uma questão cuja existência será difícil de ignorar?

                    Vários são os cenários imaginados por atletas, militantes e ativistas com passagem comprada de como furar o bloqueio televisivo. Há até quem já deixou de comprar vodca Stolichnaya.

                    E há vozes nobres. Uma delas a se juntar ao coro de indignados com o cerco aos homossexuais na Rússia é a de Greg Louganis. Vale a pena relembrar de quem se trata.

                    Louganis é detentor de quatro ouros olímpicos em salto ornamental. Foi o maior atleta da modalidade de todos os tempos. Na Olimpíada de Seul, em 1988, fez a arquibancada lotada parar de respirar ao bater com a cabeça no trampolim no seu nono salto. Ao sair da piscina para levar doze pontos, um pálido filete de sangue ficara na água. Meia hora depois, o atleta retornou ao trampolim e deu o salto final rumo ao ouro.

                    O público, boquiaberto e eletrizado, ovacionou o que viu. Só seis anos mais tarde foi saber o que não viu: Louganis era portador do vírus HIV. Recebera o resultado positivo seis meses antes e apenas seu técnico conhecia o segredo. O preconceito contra a doença, naqueles tempos, ainda era monumental. O tamanho do pânico do atleta no dia da pancada, como ele contou na autobiografia, foi inenarrável. Saltar novamente foi o de menos.

                    Passaram-se 25 anos. O tempo da causa gay no esporte avançou. Louganis está de casamento marcado. Na Rússia de Putin, o tempo andou para trás.

                    Clovis Rossi

                    folha de são paulo
                    O sermão de Mantega ao FMI
                    Incidente sobre ajuda à Grécia serve para mostrar plena sintonia entre os governos Dilma e Obama
                    Guido Mantega, o ministro da Fazenda, pode não estar vivendo exatamente momentos de glória, mas nem por isso deixou de fazer um belo sermão ao Fundo Monetário Internacional, que, no fundo, reflete a convicção mais profunda do governo Dilma: crescimento é tão ou mais importante que austeridade.
                    Mantega aproveitou o mal-entendido com Paulo Nogueira Batista Jr., o representante brasileiro e de um punhado de outros países latino-americanos no Fundo Monetário Internacional, para dizer ao FMI que "o programa de resgate da Grécia e de outros países da periferia da zona euro precisa ser revisto de forma a permitir melhores oportunidades de recuperação para tais países" (refere-se, essencialmente, a Espanha e Portugal, além da Grécia).
                    Como se sabe, o programa do Fundo prevê duros ajustes que, em vez de resgatar tais países, ajudaram a afundá-los na recessão.
                    Nogueira Batista dissera a mesmíssima coisa, acrescentando que, no ritmo em que vão as coisas, a Grécia não conseguirá pagar suas dívidas e terá que recorrer a um novo calote, inclusive na dívida para com o FMI. A divergência se deu porque Nogueira Batista votou contra a liberação de mais uma fatia do socorro à Grécia, com o que Mantega não concordou.
                    É razoável supor que, na fase atual da economia brasileira, que não entusiasma ninguém além de Mantega e Dilma, o sermão do ministro ao Fundo pode parecer pretensioso. Não é.
                    O programa para a Grécia é de fato um tremendo fracasso. Algumas provas: o país está entrando no sexto ano de recessão, com o que sua economia sofrerá, no total, uma retração de um quarto, coisa que só países em guerra conhecem; em maio, o desemprego bateu de novo o recorde, atingindo 27,6%, outro indicador que só mesmo catástrofes conseguem produzir; a dívida, que, no momento do pacote de resgate, girava em torno de 163% do PIB, vai bater neste ano em 176%.
                    Mesmo que o sermão de Mantega fosse pretensioso, estaria em companhia ilustre, a do presidente Barack Obama. Ao receber o primeiro-ministro grego, Antonis Samaras, na quinta-feira, Obama também constatou que "políticas focadas só em redução de gastos não ajudariam a Grécia a retornar à prosperidade econômica".
                    O presidente norte-americano não nega a importância do ajuste fiscal, mas diz que igualmente importante é o foco em crescimento e em emprego.
                    Vê-se, pois, que, a dois meses do encontro que terão na Casa Branca, em outubro, os governos Dilma e Obama continuam em plena sintonia no campo econômico, divergências sobre espionagem à parte.
                    No fundo, repete-se uma situação que vem sendo recorrente nas cúpulas recentes do G20: os Estados Unidos, com apoio integral do Brasil, pressionando a Europa para um arranjo capaz de combinar austeridade com crescimento econômico.
                    O problema é que nem Obama nem Dilma nem Mantega conseguiram pôr de pé uma proposta que seja capaz de devolver o crescimento aos países que estão em crise ou de acelerar o crescimento em seus próprios países.
                    crossi@uol.com.br

                      Minha história - Clelia Luro de Podestá

                      folha de são paulo
                      MINHA HISTÓRIA - CLELIA LURO DE PODESTÁ, 87
                      Linha direta
                      Viúva de um ex-bispo, argentina amiga do pontífice foi apelidada de 'bruxa má' por Francisco após 'prever' que ele seria papa; hoje eles se falam a cada 15 dias
                      LÍGIA MESQUITADE BUENOS AIRES
                      RESUMO
                      A argentina Clelia Luro de Podestá, 87, foi casada com o ex-bispo da cidade de Avellaneda, Jerónimo Podestá. Em Buenos Aires, o casal conheceu Jorge Bergoglio. Quando Clelia ficou viúva, em 2000, Bergoglio lhe deu muito apoio e os dois se tornaram amigos. Em 2005 ela disse ao então cardeal que ele seria papa. Hoje, o pontífice a chama de "bruxa má" e liga a cada 15 dias para a amiga.
                      -
                      Em 1960 me separei do meu primeiro marido. Vivia em Salta, em um engenho de açúcar, onde ele trabalhava, e voltei para Buenos Aires com minhas cinco filhas e a sexta na barriga.
                      Para me sustentar, trabalhava numa companhia de poupança e empréstimo de casas e veículos.
                      Em 1966, um padre amigo de Salta, que era alcoólatra, me escreveu pedindo que eu achasse o bispo de Avellaneda para ajudá-lo.
                      Foi assim que conheci Jerónimo. Ele conseguiu trazer o padre para se tratar em Buenos Aires. Ficamos próximos e me tornei secretária privada dele.
                      Jerónimo fazia sermão com a "Populorum Progressio", a encíclica revolucionária de Paulo 6º (1897-1978), e estávamos aqui com a ditadura militar de Juan Carlos Onganía. Como Jerónimo tinha muita força, muito carisma, os militares não gostavam.
                      Eles pediram a Roma que o tirassem de Avellaneda, e o Vaticano pediu a Jerónimo que me mandasse embora.
                      Eu era uma mulher muito linda, agora não sou mais. Tinha 38 anos, era livre, já havia enfrentado a vida com o divórcio. Ele disse não à minha renúncia e o Vaticano o tirou de Avellaneda no fim de 1967.
                      Para nós, no começo era impossível ser um casal. Não pensávamos nisso. Mas, quando o Vaticano lhe deu uma punição e impediu que ele exercesse publicamente o ministério, decidimos nos casar.
                      Eu engravidei de um menino, mas recebi uma notícia ruim e tive um aborto aos 4 meses.
                      Em 1974 fomos para o exílio no Peru. Foi um período difícil. Jerónimo tinha uma herança do pai, o que nos ajudou no começo. E toda vez que eu vinha visitar minhas filhas em Buenos Aires trazia cerâmicas peruanas para vender e deixava dinheiro com elas.
                      Voltamos em 1980. Em 1984, fomos a Roma na primeira reunião da confederação internacional dos sacerdotes casados. Naquela época, de 400 mil padres, uns cem mil eram casados. Quando retornamos, criamos a federação latino-americana. O que nós queremos é que Roma olhe pra gente. Não somos contra o celibato, mas queremos que seja facultativo.
                      Jerónimo era um homem lindo, de coração doce. Era profeta, patriota, lutava pelos direitos humanos. Era fora de série. Não há nenhum outro igual, acho que só Jesus. Se tivesse que viver tudo novamente, eu colocaria os pés nos mesmos lugares.
                      Os padres aqui não entendiam nada, não falavam com a gente. E ainda não entendem, porque julgam sem entender. O pior é que muitos deles têm mulheres escondidas.
                      MEU AMIGO FRANCISCO
                      Aí conhecemos [Jorge Mario] Bergoglio [que se tornaria papa Francisco]. Jerónimo me disse que queria conhecê-lo. Perguntei para quê, já que nenhum padre queria recebê-lo. Ele falou que Bergoglio era inteligente e saberia escutá-lo.
                      Os dois ficaram contentes de terem se conhecido. Quando Jerónimo estava no hospital, antes de morrer Bergoglio lhe deu a unção dos enfermos.
                      Para mim, Bergoglio foi um bom interlocutor quando eu estava mal com a ausência de Jerónimo. Ele me ligava todos os domingos, me dava forças. Foi meu amigo. Agora, ele me liga de Roma a cada 15 dias.
                      Eu dizia para Bergoglio que ele seria papa. E ele falava que não queria. Em 2005, quando ele foi ao conclave e voltou, eu disse: você escapou, mas na próxima não vai poder. E ele se tornou papa e me chama de "bruxa má".
                      Tenho certeza de que ele vai mudar muitas coisas, já está mudando. Está fazendo muita coisa em Roma, com sua postura de pobreza, com a questão do banco [do Vaticano], da Cúria romana.