domingo, 4 de agosto de 2013

Novela de Peronella - Bocaccio

folha de são paulo
IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
Novela de Peronella
BOCCACCIOTRADUÇÃO MAURÍCIO SANTANAPeronella esconde um amante num tonel ao ver que seu marido está de volta à casa. Este lhe diz que vendeu o tonel, e ela responde que acabara de negociá-lo com um homem que está dentro dele, conferindo se lhe parece firme. Então o amante sai de lá e faz o marido entrar nele e raspá-lo, antes de levá-lo para casa.
Todos escutaram a novela de Emilia com fortes risadas e tomaram a oração por boa e santa. Tão logo ela chegou ao fim, o rei ordenou a Filostrato que prosseguisse, e este assim começou:
-- Minhas queridas, são tantas as trapaças que os homens lhes fazem, especialmente os maridos, que, quando às vezes ocorre de uma mulher enganar o marido, vocês deveriam não só se mostrar contentes com o fato --e de sabê-lo e ouvi-lo de outro--, mas também espalhar a notícia por aí, a fim de que os homens compreendam que, se eles podem, por seu turno as mulheres também podem; coisa que não lhes poderia ser mais proveitosa, porque, quando algum deles souber que outros também são capazes disso, não se meterá a querer enganar tão levianamente.
Quem duvidaria, pois, que, ao tomar conhecimento da matéria que narraremos hoje, os homens teriam grande motivo de evitar ludibriá-las, sabendo que do mesmo modo vocês, se quisessem, poderiam enganá-los? Portanto é minha intenção contar-lhes como uma jovenzinha, embora de humilde condição, conseguiu burlar o marido em dois tempos a fim de salvar-se.
Não faz muito, em Nápoles, um pobre homem casou-se com uma mulher bonita e volúvel chamada Peronella; ambos tinham escassos recursos e levavam a vida como podiam, ele, trabalhando de pedreiro, e ela, a fiar em casa. Aconteceu um dia que um jovem conquistador, pondo os olhos em Peronella e agradando-se muito dela, acabou se apaixonando; e tanto fez e insistiu que, ao final, tornou-se íntimo da mulher.
A fim de poder se encontrar, fizeram o seguinte acerto: como o marido se levantava bem cedo toda manhã para trabalhar ou buscar trabalho, o jovem deveria vigiar a casa às escondidas até que ele saísse; e, como o local onde moravam --que se chama Avorio-- era muito solitário, assim que o homem saísse, ele entraria na casa; e foi o que fizeram várias vezes.
No entanto, certa manhã em que o bom homem saiu e Giannello Scrignario --este era o nome do jovem-- entrou na casa e já estava com Peronella, depois de algum tempo o marido voltou, coisa que nunca fazia. Ao ver a porta trancada por dentro, bateu e se pôs a pensar consigo: "Oh, Deus seja louvado! Apesar de me ter feito pobre, deu-me em compensação esta esposa jovem, bela e honesta! Olha só como ela tranca a porta por dentro assim que eu saio, para que nenhuma pessoa possa entrar e molestá-la".
Ao perceber a chegada do marido, que a mulher reconheceu pelo modo de bater à porta, Peronella disse: "Ai de mim! Giannel, meu querido, estou morta; aí está meu marido de volta, o desgraçado; não sei o que isso quer dizer, pois ele nunca retorna a esta hora: quem sabe o viu quando você entrou! Mas não importa: pelo amor de Deus, entre naquele tonel ali enquanto vou abrir a porta para ele, e vamos ver o que significa isso de voltar para casa tão cedo".
Giannello entrou rapidamente no tonel, e Peronella foi abrir a porta ao marido, dizendo-lhe de cara feia: "Ora, que novidade é esta de hoje você voltar tão cedo para casa? Pelo que vejo, você não quer fazer nada esta manhã, já que veio com as ferramentas na mão: se você agir assim, o que será de nós? De que vamos viver? O que vamos comer? Acha que estou feliz de você empenhar minhas roupas e meus trapos, eu, que não faço senão fiar dia e noite, tanto que a carne me saltou da unha, só para pelo menos termos óleo com que acender nossa lamparina? Marido, marido"¦ não há vizinha que não se surpreenda e não troce de mim, tal é a fadiga que eu suporto --e você me volta para casa de mãos abanando, quando devia estar trabalhando".
E, ao falar assim, desatou a chorar e a repetir: "Ai de mim! Tão cansada e sofrida! Em que má hora nasci, sob que estrela ruim! Poderia ter tido um jovem bem situado e não quis, só para me juntar a um homem que não pensa na esposa! As outras se divertem com seus amantes, e não há mulher que não tenha ao menos dois ou três, gozando e passando gato por lebre aos maridos; e eu, coitada de mim! Porque sou boa e não dou atenção a essas coisas, padeço e vivo em má sorte. Não sei por que não arranjo uns amantes, por que não faço como as outras! Veja bem, meu marido, se eu quisesse me comportar mal, logo acharia com quem, porque há muitos galanteadores que me cortejam e me querem bem, até me ofereceram um monte de dinheiro ou, se eu quisesse, objetos e joias, mas meu coração nunca vacilou, porque minha mãe sempre me deu bom exemplo --e você me volta para casa quando devia estar trabalhando!".
Então o marido disse: "Eh, mulher, não fique triste, pelo amor de Deus! É verdade que saí para trabalhar, mas se vê que, assim como eu, também você não sabia que hoje é festa de São Cânio de Atela, e não se trabalha; por isso voltei cedo para casa. No entanto, achei um jeito de termos pão para mais de mês: vendi ao sujeito que está aqui comigo nosso tonel, que há tanto tempo nos atravancava a casa, e vou receber cinco moedas por ele".
Então Peronella respondeu: "Isso tudo só me faz mais triste: você, que é homem e anda por aí, deveria conhecer as coisas do mundo, mas vendeu um tonel por cinco moedas; já eu, que sou mulher e quase nunca passo da porta de casa, vendo a situação incômoda em que estávamos, vendi o tonel por sete moedas a um bom homem, que entrou nele para inspecioná-lo assim que você voltou".
Quando o marido ouviu isso, ficou contentíssimo e disse ao homem que viera para levá-lo: "Meu bom homem, vá com Deus; como você ouviu, minha mulher o vendeu por sete moedas, e sua proposta não passava de cinco".
O bom homem disse: "Então está bem" --e foi embora.
E Peronella falou ao marido: "Já que você está aqui, venha comigo e trate pessoalmente de nossos negócios".
Giannello, que estava de orelha em pé para ver se corria risco ou precisaria agir, mal ouviu as palavras de Peronella, saltou imediatamente para fora do tonel; e, como se não tivesse notado o retorno do marido, começou a dizer: "Boa senhora, onde está?".
Ao que o marido, que já chegava, respondeu: "Aqui estou, em que posso servi-lo?".
E Giannello: "Quem é você? Quero falar com a mulher com quem tratei deste tonel".
O bom homem respondeu: "Pode tratar diretamente comigo, que sou o marido".
Então Giannello disse: "O tonel me parece bem firme, mas acho que vocês andaram despejando imundícies lá dentro, porque ele está todo encrostado de coisas tão secas que não consegui tirá-las com as unhas, e só vou fechar negócio se ele estiver limpo".
Então Peronella emendou: "Não seja por isso: meu marido vai limpá-lo bem".
Ao que o marido respondeu: "Com certeza"; em seguida, arriou as ferramentas no chão, pôs-se em mangas de camisa, pediu uma lamparina, uma raspadeira, entrou no tonel e iniciou a limpá-lo. Enquanto isso, como se quisesse acompanhar o serviço do marido, Peronella pôs a cabeça na boca do tonel "" que não era muito larga "" e, além disso, um dos braços e o ombro, e começou a dizer: "Raspe aqui, ali e ali também" e "Veja, aqui ficou uma casquinha".
Ao ver a mulher instruindo e chamando a atenção do marido, Giannello, que ainda não tinha saciado plenamente seu desejo quando o homem chegou, e vendo que não poderia satisfazê-lo como queria, imaginou um jeito de arranjar-se; assim, achegando-se à mulher que, naquela posição, cobria toda a boca do tonel, fez como os cavalos que, desenfreados e ardentes de amor, assaltam nas vastas campinas as éguas de Pártia no cio e levou a cabo seu desejo juvenil; por fim, quase ao mesmo tempo em que o tonel foi limpo e raspado, ele se desgrudou da mulher e Peronella, tirando a cabeça do tonel, deixou que o marido saísse.
Então ela falou a Giannello: "Tome esta lamparina, bom homem, e veja se agora está de seu agrado".
Olhando o tonel por dentro, Giannello se mostrou satisfeito e disse que estava bom; em seguida, desembolsou as sete moedas e mandou levá-lo até sua casa.
SOBRE O TEXTO Escrito entre 1349 e 1351 (ou 53), o "Decameron" inaugura a prosa de ficção no Ocidente. A novela aqui reproduzida é uma das dez selecionadas, dentre as cem que compõem a obra, pelo crítico e tradutor Maurício Santana Dias para edição comemorativa dos 700 anos de Boccaccio, a sair em outubro pela Cosac Naify. Esta novela, como frisa o organizador, mostra que o tema do adultério, para o escritor, "não é visto necessariamente como um pecado em si, podendo se transformar no elogio da astúcia contra a tolice".

    Reino Unido e escaldante - Bernardo Mello Franco

    folha de são paulo
    DIÁRIO DE LONDRES
    O MAPA DA CULTURA
    As lanchonetes da ilha desconhecem geladeira
    BERNARDO MELLO FRANCOA previsão era literalmente sombria: pelos próximos dez anos, Londres não teria verão. O alerta foi feito em meados de junho pelo Met Office, o respeitado órgão oficial de meteorologia do Reino Unido. "Não se preocupe, o verão está chegando... mas talvez você precise esperar até 2023", resumiu o jornal "The Guardian".
    Apesar da ironia, o tom dos especialistas era sério. Vários fatores pareciam conspirar contra o Sol, da emissão de gases poluentes a uma mudança nas correntes marítimas do Oceano Atlântico. Estava tudo pronto para o início de uma década fria e chuvosa na terra da rainha. Mas, como ocorre algumas vezes, os fatos teimaram em contrariar as previsões.
    Há quase um mês, o Reino Unido vive uma inesperada onda de calor --a mais longa e intensa desde 2006, como a imprensa não se cansa de repetir. Chove muito pouco, e os termômetros roçam quase diariamente os 30 graus. A máxima até aqui foi registrada na última quinta-feira: 34,2 graus. E ainda era o primeiro dia de agosto. Pelo tom das queixas, os britânicos se sentiram como beduínos.
    Famosa por outras qualidades, Londres não sabe lidar com o verão. Como ele aparece pouco, ninguém costuma notar. A maioria das lojas só é equipada com calefação, os ônibus são uma fornalha, e as lanchonetes parecem não ter recebido a notícia da invenção da geladeira.
    Mesmo nos cafés mais caros, é quase impossível achar uma água ou refrigerante abaixo da temperatura ambiente. O metrô, que no inverno protege do frio, transformou-se em uma estufa em movimento. A administração espalha avisos inúteis: carregue sempre uma garrafa d'água, não embarque se estiver passando mal, evite apertar o botão de alarme. E adianta?
    A FILA DO HAMBÚRGUER
    Neste calor atípico, poucos programas parecem menos convidativos do que ficar parado numa fila a céu aberto. Mas é o que locais e turistas têm feito na porta das novas hamburguerias de Covent Carden.
    As duas casas abriram no intervalo de um dia e a cerca de 300 metros de distância. A primeira foi a Five Guys, filial da cadeia preferida do presidente Barack Obama. A rede caprichou na patriotada. Marcou a inauguração para o dia Quatro de Julho e pendurou uma bandeira dos EUA na porta. No dia 5, foi a vez da nova-iorquina Shake Shack.
    Em ambos os casos, a novidade é que atrai multidões, já que o hambúrguer não leva muita vantagem sobre o do McDonald's. Com batata e refrigerante, cada lanche sai em torno de £ 15 (cerca de R$ 45). Na dúvida, é melhor procurar o primeiro "fish and chips".
    BOTA-ABAIXO
    Enquanto o leste de Londres festeja a reabertura do Parque Olímpico, o oeste da cidade chora o fim de um espaço tradicional de lazer: a Earl's Court Exhibition. Inaugurado em 1937, o pavilhão recebeu uma lista interminável de gigantes do pop: Rolling Stones, Madonna, Queen, Pink Floyd, Morrissey, Iron Maiden, Elton John.
    Nos últimos anos, foi esvaziado pela concorrência da O2 Arena. Com a migração dos shows, sobraram os grandes eventos, como a feira do livro. Faltava vencer a especulação imobiliária.
    Em julho, o prefeito Boris Johnson ignorou uma campanha organizada por moradores da vizinhança e autorizou a demolição do complexo para dar espaço a 7.500 moradias de luxo. Os protestos vão virar pó, como o velho edifício "art déco".
    O MUNDO DE LOWRY
    Céu cinza, ar poluído, enormes galpões de tijolos e chaminés. Esta era a paisagem mais comum no Reino Unido da primeira metade do século 20, um cenário bem diferente do glamour londrino.
    O cotidiano da sociedade industrial foi o tema preferido de L.S. Lowry (1887-1976), um pintor brilhante e obcecado em retratar a vida da classe trabalhadora britânica. "Eu só lido com a pobreza. Sempre com melancolia", repetia o artista.
    A maioria dos quadros, que flertam com o estilo naïf, foi pintada na região de Manchester, onde Lowry nasceu e morreu. Em algumas telas, a monotonia é quebrada por pequenos acontecimentos: a passagem de um circo, um suicídio, um jogo de futebol. Austero, o artista foi o britânico que mais recusou honrarias reais: cinco, incluindo o cobiçado título de "sir".
    A mostra fica em cartaz até 20 de outubro, na Tate Britain. O ar condicionado do museu também merece uma medalha.

      Raul Juste Lores

      folha de são paulo
      Ilusões perdidas
      O livro que sacudiu os arredores da Casa Branca
      RAUL JUSTE LORESRESUMO O jornalista Mark Leibovich escandalizou Washington com seu retrato debochado dos bastidores da confraria entre políticos, lobistas e jornalistas na capital americana. Espécie de balanço da era Obama, "This Town" narra inúmeros casos de promiscuidade entre o governo e empresas do setor privado.
      Em 1975 Truman Capote publicou na revista "Esquire" os primeiros capítulos de seu romance de fundo autobiográfico "Preces Atendidas". Em chave satírica, o autor de "Bonequinha de Luxo" revelou adultérios, brigas e facetas nada elegantes de algumas de suas amigas socialites. De nada adiantou escondê-las sob pseudônimos: durante anos, nova-iorquinos discutiram o "quem-é-quem" do livro. Capote foi defenestrado da alta sociedade que o acolhera e morreu, em 1984, sem concluí-lo.
      Quase 40 anos depois, mas longe do glamour de Manhattan, Washington vive dias de escândalo e repete a lamúria: "Fomos traídos por um dos nossos". O traidor, no caso é o jornalista Mark Leibovich. E a prova do crime é o livro "This Town - Two Parties and a Funeral" [Penguin, 386 págs., R$ 88,70; e-book: R$ 41,29 ], em que o correspondente da revista dominical do "New York Times" na capital americana descreve de velórios no Kennedy Center ao casamento em Las Vegas de um colega famoso da rede Fox News (com o bolo em formato de Casa Branca).
      Não faltam os diversos jantares da Associação de Correspondentes da Casa Branca, o equivalente local da noite de premiação do Oscar. Celebridades, políticos e empresários desfilam no tapete vermelho da cidade conhecida como "a Hollywood de gente feia".
      Diferentemente de Capote, porém, Leibovich revela os nomes de todos os envolvidos. O retrato que resulta é muito mais debochado do que aquele pintado na série política "House of Cards", sucesso do Netflix. Muita gente aposta, fantasiosamente, que o autor será estapeado se algum dia voltar às festas estreladas que frequentava.
      Os bastidores da confraria de políticos, lobistas e jornalistas na cidade --ao redor da qual se reúnem os condados mais ricos do país e que tem uma taxa de desemprego de 5,7% (Nova York tem 9,6%, Los Angeles, 10%, e a Chicago de Obama, 9,3%)-- contrastam com a economia americana e sua recuperação um tanto sem fôlego.
      ERA OBAMA "This Town" também pode ser lido como o balanço das ilusões perdidas da era Obama, já que a história começa em 2008, em plena campanha presidencial que levou o primeiro presidente negro à Casa Branca. Obama e seu círculo mais próximo, políticos de Chicago, não escondiam seu desprezo pela promiscuidade da capital entre negócios e políticos, seu círculo de adulação e seu provincianismo. O então candidato tinha uma regra pétrea: nenhum lobista seria indicado a cargos no primeiro escalão do governo. Com seu idealismo e sua sobriedade, a equipe do democrata pretendia mudar Washington. Mas a capital riu por último.
      Em 2008, os bancos de Wall Street entraram em colapso. Andrea Mitchell, apresentadora da rede de notícias MSNBC, continuava a cobrir a crise econômica e lutou o quanto pôde para continuar fazendo isso -- apesar de ser mulher de Alan Greenspan, o ex-presidente do Fed, o Banco Central Americano, entre 1987 e 2006.
      Conflitos de interesse multiplicam-se pelo livro. A tragédia ambiental do derramamento de petróleo no Golfo do México, por exemplo, é narrada como um saboroso negócio para Washington.
      Para consertar sua imagem após a tragédia ambiental ocorrida em 2010, a BP, antiga British Petroleum, contratou grandes lobistas republicanos e democratas, além de um porta-voz do ex-vice-presidente Dick Cheney, e fez uma campanha de US$ 50 milhões na TV --com os serviços de dois "especialistas em comunicação", o republicano Alex Castellanos e a democrata Hillary Rosen. Nas horas vagas, Castellanos e Rosen são comentaristas políticos da CNN.
      Quem virou diretor de Comunicações da BP nos EUA, então, foi Geoff Morell, ex-correspondente na Casa Branca da rede de TV ABC, e que serviu dois governos (Bush e Obama) como porta-voz do secretário de Defesa. Os contratos da BP com o Pentágono, mesmo após o desastre, deram um salto: de US$ 1 bilhão em 2010 para US$ 2,51 bilhões em 2012.
      Na mesma temporada, um assessor do Departamento de Tesouro foi para o banco Goldman Sachs, e Peter Orszag, diretor do escritório de Administração e Orçamento da Casa Branca, para o Citigroup, outra das instituições bancárias que receberam resgates bilionários e continuaram a distribuir bônus generosos enquanto o país afundava.
      Segundo o livro, um dos melhores empregos na cidade é o de ex-diretor de Comunicações da Casa Branca. Nos dois anos desde que deixou o cargo de porta-voz de Obama, Robert Gibbs amealhou US$ 2 milhões em palestras e virou comentarista da MSNBC, canal que é o equivalente democrata do republicano Fox News.
      Anita Dunn ficou apenas seis meses no mesmo cargo, em 2009, primeiro ano do governo Obama. Ainda que tenha ajudado a primeira-dama a lançar uma campanha contra a obesidade infantil, ela tornou-se lobista da indústria que combatia: começou a trabalhar para empresas alimentícias que lutam contra qualquer restrição à publicidade de fast-food para crianças. Além disso, também virou comentarista da MSNBC.
      Secretário de imprensa de Bill Clinton durante o escândalo com a estagiária Monica Lewinsky, que quase custou ao presidente seu cargo em 1998, Joe Lockhart formou, com dois ex-assessores de Al Gore, uma firma "suprapartidária" de "negócios integrados" de lobby e "comunicação estratégica" --com faturamento de US$ 60 milhões ao ano-- e que atuava em Washington defendendo os interesses da News Corp., de Rupert Murdoch. Mais tarde, deixou o escritório para ser chefe de comunicação corporativa do Facebook, na Califórnia, entre 2011 e 2012.
      Mas o destaque máximo entre as trocas de opinião a soldo vai para o ex-deputado Richard Gephardt, democrata que representou por 28 anos um distrito proletário do Estado mais pobre dos EUA, Missouri, como grande defensor dos sindicatos.
      Após deixar o Congresso, em 2005, transformou-se consultor sênior de um escritório de gerenciamento de crises e, dois anos mais tarde, abriu seu próprio escritório, com o qual, em 2010, faturaria US$ 6,59 milhões. Seus clientes incluíam o Goldman Sachs, a Boeing e Visa. O tema das consultorias prestadas era, invariavelmente, como derrotar demandas sindicais e protestos trabalhistas.
      Foi também Gephardt quem, como deputado, apoiou resolução da Câmara para condenar o genocídio armênio de 1915, mas não teve problemas em, como lobista a serviço do governo turco, se transformar em ferrenho opositor da resolução, em troca de US$ 70 mil ao mês.
      Os casos relatados exemplificam um movimento hoje comum. Em 1974, apenas 3% dos deputados largavam o Congresso para virar lobistas. Atualmente, esse é o destino de 50% dos ex-senadores e 42% dos ex-deputados americanos. A maioria permanece em Washington e abandona de vez seus Estados de origem.
      O livro de Leibovich não poupa os colegas de profissão. O jornalismo da capital não sai nada bem do painel de "This Town". "A patota não mudou", ele escreve. O autor do livro assim descreve a situação dos repórteres de política, que moram na mesma cidade, encontram-se com as mesmas pessoas, usam as mesmas fontes e pertencem aos mesmos grupos de origem. "Eles chegam a suas perguntas de forma tão independente quanto uma classe de garotos da sétima série partindo do mesmo texto de geometria. Eles não precisam colar para chegar à mesma resposta." Watergate virou história.
      Nem tudo no livro, porém, são denúncias. Muitas passagens lembram o antigo colunismo social, que se encaixa bem no ambiente provinciano de Washington. Uma das regras para a sobrevivência na cidade é o "name dropping": a cada frase, solta-se o nome de "amigos do peito" famosos.
      "A principal identidade de Tedd McAuliffe", ex-presidente do Partido Democrata e atual candidato a governador de Virginia, exemplifica Leibovich, é "ser amigo de Bill Clinton". "Privá-lo de usar as palavras Bill Clinton' seria como privar um matemático de números", escreve no livro.
      Se alguém se salva (ou, mais que isso, se sai muito bem) neste "House of Cards" literário é Hillary Clinton. Leibovich reuniu desde histórias sobre seus instintos maternais para com funcionários gripados no Departamento de Estado até uma série de piadas comparando a eterna candidata à Casa Branca com o homem que a derrotou nas primárias democratas: ao repetir que Obama não tinha colhões para dirigir Washington, o ex-marqueteiro de Bill Clinton, James Carville, dizia que "se Hillary desse uma de suas bolas ao Obama, ele finalmente teria duas".
      E ainda traz um mantra favorito de Hillary, atribuído a Eleonor Roosevelt (outra primeira-dama lendária e ambiciosa como ela): "Mulheres na política precisam desenvolver uma pele tão dura quanto o traseiro de um rinoceronte". Ao poupar a possível futura ocupante da presidência, Leibovich se demonstra menos kamikaze que Truman Capote --talvez por ser parte integrante de "This Town", a Brasília americana.

        Os pensamentos imperfeitos de um selvagem - @alvaromarechal

        folha de são paulo
        A literatura de Rubem Fonseca chega aos 50 anos
        ALVARO COSTA E SILVARESUMO Em 1963, o ex-delegado lançou seu 1º título, o volume de contos "Os Prisioneiros", iniciando uma obra que conquistou leitores e seguidores com seu registro seco da violência. O autor prepara novo livro e perdura como influência na literatura urbana brasileira, apesar das críticas negativas à sua produção recente.
        "A condessa Bernstroff usava uma boina onde pendurava uma medalha do kaiser. Era uma velha, mas podia dizer que era uma mulher nova e dizia. Dizia: põe a mão no meu peito e vê como é duro. E o peito era duro, mais duro que os das meninas que eu conhecia." Com essas linhas se abre "Fevereiro ou Março", primeiro conto de "Os Prisioneiros", livro inaugural da obra de Rubem Fonseca, que completa 50 anos.
        Em outubro de 1963, começava com elas a "literatura brutalista" e o "realismo feroz"que se estenderiam sobre gerações posteriores de influenciados --e de imitadores. "Sabe-se que Rubem Fonseca, ao contrário dos discípulos, não se repetiu por afagos constantes ao vitorioso estilo inicial, tornando-o vicioso e viciado. O ficcionista se distancia dele para se tornar complexo e inimitável", avalia o crítico e escritor Silviano Santiago.
        Como um de seus personagens prisioneiros de si mesmos, mas sobretudo da arte de narrar, Rubem Fonseca continuou escrevendo, sem ligar para estragos ou conquistas. Aliás, continua: uma nova coletânea de textos breves, a 14º da carreira, está no forno.
        "Amálgama" deve chegar às livrarias entre o fim de agosto e o princípio de setembro. Além dos contos, informa Janaína Senna, da Nova Fronteira, o volume inclui poemas, totalizando 34 textos, que, conforme resume a editora, "tratam de assuntos os mais variados, mais especialmente da própria atividade do escritor, da velhice, de deformidades físicas e de diferenças sociais".
        SURPRESA Ao estrear, o autor desconhecido aprontou mais de uma surpresa. Sua editora, a pequena GRD, do baiano Gumercindo Rocha Dorea, limitara-se, até o início da década de 1960, a promover obras de e sobre Plínio Salgado (líder do movimento integralista).
        A publicação de "Os Prisioneiros" --que estampava na capa uma ilustração de Zeca Fonseca, filho do autor, então com seis anos-- era parte de uma guinada na linha editorial, que incluía o lançamento de outros livros de ficção (entre eles, os romances "O Valete de Espadas", de Gerardo Melo Mourão, e "Guia Mapa de Gabriel Arcanjo", de Nélida Piñon) e de uma pioneira coleção de ficção científica.
        Naquele 1963 outro contista que se tornaria notável, João Antônio, fez também sua estreia, com "Malagueta, Perus e Bacanaço". No romance, "Kaos", de Jorge Mautner, levou o Prêmio Jabuti, e "O Braço Direito", obra-prima de Otto Lara Resende, passou quase despercebida. Na crônica, Sérgio Porto mostrou "A Casa Demolida". No plano internacional, marcou o ano de "Rayuela" ("Jogo da Amarelinha"), romance-desmontável de Julio Cortázar, marco do chamado "boom" latino-americano.
        O advogado e ex-delegado de polícia José Rubem Fonseca, mais conhecido pelos amigos que nem sequer o imaginavam escritor como Zé Rubem, foi considerado "a revelação do ano" pelo "Jornal do Brasil", em crítica assinada por Fausto Cunha. Wilson Martins, em sua coluna no suplemento literário de "O Estado de S. Paulo", foi mais longe: saudou-o como renovador do conto brasileiro "no momento mesmo em que estaríamos inclinados a considerá-lo esgotado".
        "Os Prisioneiros" já trazia a essência da brutalidade e da ferocidade diagnosticadas mais tarde por dois dos maiores críticos literários do país, Alfredo Bosi e Antonio Candido, respectivamente.
        Em "Fevereiro ou Março", um halterofilista vende o próprio sangue; em "Duzentos e Vinte Gramas", a autopsia de uma linda mulher é descrita sem compaixão; em "Teoria do Consumo Conspícuo", um casal de quase amantes discute a necessidade de uma operação plástica de nariz. Tudo narrado em diálogos poderosos, estilo desconcertante, cortes precisos.
        NOVIDADE Em 1963, Rubem Fonseca era, em suma, uma novidade, tanto na temática quanto na técnica --o que em literatura não acontece todos os dias.
        "Associo o impacto a dois fatores: a emergência da voz de uma classe social que não costumava falar com voz própria e o surgimento de um novo registro de representação da violência", diz Idelber Avelar, professor de literatura na Universidade de Tulane, nos Estados Unidos. "Os contos de Fonseca trazem a voz de um lumpemproletariado até então desconhecido na literatura brasileira, personagens que não aparecem como meras vítimas silenciosas. Surgem como agentes da ação e portadores de um discurso que escandaliza o leitor de classe média."
        Estudioso da obra de Rubem Fonseca desde 1972, Deonísio da Silva considera o escritor uma resposta, urbana e alienígena, a Guimarães Rosa: "Depois de Grande Sertão: Veredas' [1956], ficou a pergunta: Como se escreveria dali por diante?'. Fonseca chega com outro olhar, outros temas, outros personagens. Nada nele é parecido com os que o antecederam, e ele parece não receber influência de ninguém no Brasil. Sua obra está atrevidamente calcada em modelos literários vindos dos EUA".
        Em futuros escritores, a identificação foi imediata. Lilian Fontes, autora de três romances --no mais recente, "De Olhos Bem Abertos" (2011), a narradora cita textualmente o conto "Gazela", de "Os Prisioneiros"--, era uma adolescente de 13 anos quando, em 1972, leu o livro de estreia de Fonseca.
        "A narrativa em primeira pessoa, seca, e o uso de termos chulos mostravam um autor que tinha como premissa não poupar o leitor. Aquele livro de poucas páginas me desvendou um mundo."
        Fonseca voltaria a semear assombro com uma nova seleção de contos, "A Coleira do Cão", lançada pela GRD em 1965.
        A rigor, o primeiro e o segundo livros poderiam fazer parte de um único volume, tal a coesão de abordagens e estilos. "A Força Humana", que abre a coletânea, dá sequência a "Fevereiro ou Março" e foi descrito pelo crítico Wilson Martins, habitualmente avaro em elogios, como não apenas "um dos melhores contos brasileiros até hoje escritos" mas "um dos melhores contos da literatura universal".
        Destaca-se ainda o conto-título, no qual um quase lírico delegado de polícia faz uma incursão por uma favela, bem antes de elas se tornarem bocas de tráfico e pontos de visitação turística. Mais pela dicção que pelo cenário, "Madona" é talvez o conto mais carioca do mineiro de Juiz de Fora, chegado ao Rio aos oito anos.
        Fato raro (ou eram outros tempos?) que um segundo livro de autor caseiro, e ainda mais de contos, gênero olhado com desconfiança por leitores, editores e críticos, despertasse tal expectativa como a que se ergueu em torno de "A Coleira do Cão", merecendo até nota na coluna social de Ibrahim Sued no "Diário de Notícias". No "Suplemento Literário de Minas Gerais", Assis Brasil, depois de considerar o autor "um dos melhores contistas brasileiros", perguntava-se se ele iria prosseguir no conto ou "sairá para novas pesquisas".
        Pode-se dizer que, com "Lúcia McCartney", publicado pela pequena Olivé em 1969, Rubem Fonseca não só continuou preferindo os relatos curtos como também realizou, com eles, pesquisas: "Corrente" conta-se em apenas 14 linhas, e "A Matéria do Sonho", num único parágrafo de quase dez páginas.
        A crítica voltou a incensar o trabalho --que escapou de ser batizado com o infeliz, embora analiticamente sugestivo, título de "Ficção e Não" e ganhou o nome de uma personagem prostituta, espécie de Bruna Surfistinha "avant-garde".
        Fábio Lucas elaborou uma tabela explicativa: "Atitude do autor: desafio. Arma principal: o impacto. Objetivo: a comunicação. Razão do êxito: o rigor inventivo e a radicalização da experiência. Maior temor: o academismo. Pecado (venial): a repetição". Sérgio Sant'Anna cravou, simplesmente: "É o mais importante livro de ficção brasileira dos últimos anos".
        TERREMOTO "Feliz Ano Novo", foi o primeiro livro de Rubem Fonseca que Tony Bellotto leu. "Eu estava com 14 anos e foi como se um terremoto tivesse atingido a minha casa em Assis", conta o escritor e roqueiro. Ali, na quarta reunião de contos do autor, "estava uma realidade submersa, que não aparecia no meu dia a dia, mas que tinha muito mais a ver com a verdadeira realidade do que tudo que eu via acontecer a meu redor".
        O livro, editado em 1975 pela Artenova com despojado projeto gráfico (diagramação de relatório, sem orelhas nem prefácio, capa amadora), marca, para Silviano Santiago, o fim do primeiro dos "grupos harmoniosos e diferenciados" em que o ensaísta divide a obra de Fonseca. "Cada relato curto descarna a cordialidade do brasileiro pela análise do destempero e da violência que cimenta o cotidiano urbano das classes altas, médias e populares", descreve.
        "Feliz Ano Novo" traz três das peças curtas mais citadas e estudadas na obra do escritor: o conto-título --em que três párias invadem uma festa de Réveillon numa casa de ricos-- e o dístico "Passeio Noturno I e II" --em que um executivo usa o atropelamento de pessoas como exercício de relaxamento.
        "Mais que a brutalidade da violência gratuita cometida por um personagem de classe média alta, choca-nos a fato de que o escritor tenha dado voz a esse personagem. A narrativa em primeira pessoa é a chave da perplexidade gerada pelo conto", nota Idelber Avelar. "A violência não aparece inscrita dentro de um projeto emancipatório ou de possibilidade de redenção. Ela está representada na sua mais pura brutalidade, fora de qualquer consideração ética."
        Em novembro de 1976, depois de vender 30 mil exemplares, "Feliz Ano Novo" teve publicação e a circulação proibidas pela censura. Exemplares foram recolhidos nas livrarias pela Polícia Federal, sob a alegação "de exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes". Foi liberado em 1989, depois de longa batalha judicial.
        Quando o quinto livro de contos, "O Cobrador", deixou a gráfica da Nova Fronteira, em outubro de 1979, esperava-se uma continuação ou elaboração de "Feliz Ano Novo", que, de alguma forma, respondesse à ditadura. Mas ali havia um Rubem Fonseca na muda --ou num "momento de indecisão", segundo Wilson Martins. Ali, fizeram entrada em sua obra as alusões a outros autores e gêneros --"H.M.S. Cormorant em Paranaguá" tem um quê de ensaio-- e não por acaso três das histórias são narradas por escritores.
        O advento de um novo ciclo criativo se confirmou em 1983, com "A Grande Arte", seu segundo romance "" o primeiro, "O Caso Morel, saíra dez anos antes.
        Paródia do gênero "hard-boiled", denúncia do capitalismo criminoso, com personagens grotescos e um protagonista charmoso (o advogado/detetive Mandrake, egresso de três contos), o livro fez com que Rubem Fonseca --que já desfrutava de boa recepção crítica no mercado internacional, principalmente de língua espanhola-- fincasse os pés de vez na lista dos mais vendidos do Brasil, chegando a superar o aparentemente imbatível Jorge Amado.
        "Rubem Fonseca criou uma ficção que se liga ao que Machado de Assis fez no século 19: unir sofisticação e entretenimento", acredita o escritor Flávio Carneiro, cujo romance "O Campeonato" (2002) gira em torno do conto homônimo, exemplar de ficção científica que integra "Feliz Ano Novo". "A diferença é que Fonseca soube se apropriar de um gênero popular, o policial, para fazer uma literatura que reescreve a tradição."
        "A linha investigativa foi a forma que ele encontrou para entrar na narrativa longa", acredita Lilian Fontes. "Ele nutriu-se dos ingredientes de um gênero rotulado de subliteratura para introduzir pensamentos sofisticados, citações filosóficas, uma erudição que corre paralela ao enredo."
        ROMANCES Silviano Santiago identifica nos romances --depois de "A Grande Arte", vieram, em sequência, "Bufo & Spallanzani" (1986), "Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos" (1988) e "Agosto" (1990)-- um segundo conjunto dentro do corpo da obra. "São fartamente documentados e elaborados. São alegóricos e, contraditoriamente, viscerais. A visão de mundo que projetam vem embebida em carne, suor e sangue", diz o crítico, para quem a etapa finda com "O Selvagem da Ópera" (1994).
        "Cito A Grande Arte' e Agosto' como exemplos de romances em que ele conseguiu manter a tensão e a excelência de seus contos. O homem vence por nocaute, sempre", elogia Tony Bellotto.
        Flora Sussekind, que se debruçou algumas vezes como crítica sobre a obra de Fonseca, não enxerga nos seus romances o vigor que encontra em parte dos contos.
        "Nas narrativas mais longas, certos truques, certos achados narrativos, certas formas de corte ficavam mais evidentes como técnica. Os textos perdem nitidamente a força: o romance expôs muito a mecânica dele e, a meu ver, ele procurava resolver a dificuldade com o relato mais longo via registro genérico (histórico, policial) ou com soluções narrativas predeterminadas. E isso parece ter ecoado ainda em boa parte da série de sub-Rubem Fonsecas que se multiplicou na ficção brasileira."
        Na opinião da pesquisadora, essas dificuldades se reapresentariam posteriormente também nos contos, forma que Fonseca retomaria em "Romance Negro e Outras Histórias" (1992), "O Buraco na Parede" (1995), "Histórias de Amor" (1997), "A Confraria dos Espadas" (1998), "Secreções, Excreções e Desatinos" (2001), "Pequenas Criaturas" (2002), "Ela e Outras Mulheres" (2006).
        Na vizinhança dos anos 2000, "A Confraria dos Espadas" é o marco inicial do terceiro conjunto identificado por Silviano Santiago para definir a obra de Fonseca.
        Com o volume, inaugura-se uma etapa que dá vez a "escritos que escapam à bitola estreita de gênero (conto e romance)". "São apenas textos. Visam a processar, tanto no sentido informático do verbo quanto no seu sentido jurídico, o senso comum vitorioso e a ditadura dos bons sentimentos comunitários, que passou a moeda política no início deste milênio."
        A essa altura, porém, a crítica, com as exceções de praxe, já tinha virado o disco. A produção mais recente foi vista como "vulgar", "imediatista", "banal", "blasé", "autocaricata", "glamourizada". Em resenha na Folha sobre "Secreções, Excreções e Desatinos", Alcir Pécora escreveu que o livro não chegava "a cheirar nem a feder".
        Ainda assim, apesar das oscilações e do peso da idade --chegou aos 88 anos em maio--, Fonseca teve também o reconhecimento de dois dos prêmios mais importantes para o mundo ibero-americano: o Camões, para autores em língua portuguesa, e o Juan Rulfo, dado pelo México, ambos em 2003.
        Tony Bellotto expõe com veemência a opinião dos que não acreditam que a mágica do escritor possa ter esfriado: "A literatura de Rubem Fonseca continua de pau duro. Só não vê quem não quer. Ou quem tem medo de pau duro."
        TROCA Em 2009, Rubem Fonseca fez uma inesperada troca de editora, deixando a Companhia das Letras, que o publicava desde "Agosto", pela Agir, do Grupo Ediouro (que também detém hoje a Nova Fronteira). Disse-se à época que a negociação, conduzida pela agente literária Lúcia Riff, tinha sido fechada em R$ 1 milhão.
        Hipóteses para explicar o episódio pipocaram. Em 18 de março de 2010, reportagem daFolha cravou: a relação de quase 20 anos entre Rubem Fonseca e Luiz Schwarcz, "publisher" da Companhia, avinagrou após a editora recusar o romance "Gonzos e Parafusos", de Paula Parisot, uma das discípulas do escritor. Fonseca negou; Schwarcz não quis comentar.
        No mesmo ano chegou às livrarias um novo romance, "O Seminarista", e teve início o relançamento de sua obra completa, com "Os Prisioneiros" e "Lúcia McCartney", em edições coordenadas pelo jornalista Sérgio Augusto, dotadas de posfácios contextualizando os títulos com a fortuna crítica em torno de seu lançamento.
        Seguiram-se, também, mais dois inéditos, ambos publicados em 2011, o volume de contos "Axilas e Outras Histórias Indecorosas" e "José", de fundo memorialístico.
        As vendas vão bem, obrigado: no caso dos títulos novos, ficaram na casa dos 18 mil exemplares nos três meses iniciais de lançamento, sem contar vendas especiais e adoções. Entre as reedições do catálogo, cada título vende uma média anual de 2.000 exemplares, também sem contar as adoções.
        Ex-editor de Rubem Fonseca na Agir, Paulo Roberto Pires defende a vitalidade do autor, tanto o de hoje como o de ontem: "Sinto que falta uma reflexão mais aprofundada sobre um escritor de obra tão extensa e marcante. Houve um tempo em que era moda gostar; mais recentemente, virou moda não gostar. Assim funciona nossa bolsa de valores literários".
        "Acontece um fenômeno com grandes autores", afirma Idelber Avelar. "Impõe-se uma determinada leitura, geram-se muitos imitadores, mas a obra renova sua legibilidade com o tempo. Pode acontecer com Rubem Fonseca."
        É aguardar "Amálgama" para ver se o velho Fonseca reinventa sua grande arte.

          Os gregos já curtiam uma comunidade - Nelson de Sá

          folha de são paulo
          Os gregos já curtiam uma comunidade
          De Homero a Zuckerberg, pouco mudaram os relacionamentos
          NELSON DE SÁRESUMO Estudos que combinam ciências exatas e literatura apontam para o fato de que relacionamentos nas redes sociais se assemelham aos observados em mitos e obras clássicas. Analisados por brasileiros na Escócia, elos entre personagens da "Odisseia" se aproximam muito do padrão registrado entre pessoas na vida real.
          HÁ Dois anos, Franco Moretti, professor da Universidade Stanford, saudou o fato de que os métodos quantitativos estavam novamente em ascensão nos estudos literários. Dessa vez, devido às grandes bases de dados digitais, "big data", vinham para ficar. Foi o que escreveu em artigo para a "New Left Review", em que relatava os levantamentos feitos no Stanford Literary Lab sobre a rede de conexões em "Hamlet".
          O acadêmico, que é irmão do cineasta italiano Nanni Moretti, defendeu então que linguagem e estilo são apenas parte da questão literária: seu trabalho sobre a tragédia shakespeariana se apresentou como "o início de uma resposta" à pergunta sobre o enredo --se este poderia ou não, diferentemente do estilo, ser quantificado.
          Desenhou um primeiro mapa, incipiente, dos "hubs" (entroncamentos, que são os protagonistas com os quais os outros integrantes de uma rede se relacionam mais) de "Hamlet". Uma de suas revelações sobre o enredo da peça foi que Horácio, um personagem menor, é um ponto de confluência quase tão frequente quanto o rei Cláudio ou mesmo o príncipe Hamlet.
          No artigo, intitulado "Teoria de Redes, Análise de Enredo", Moretti tomou como ponto de partida as redes "small world", identificadas pelo psicólogo americano Stanley Milgram em 1967. O "pequeno mundo" de Milgram se traduziu, popularmente, nos "Seis Graus de Separação" da peça de John Guare (1990)--a ideia de que apenas seis laços separam quaisquer duas pessoas no mundo.
          Mesmo que o professor italiano de literatura comparada tenha admitido não ter a "inteligência matemática necessária" para lidar com a teoria de redes, ele estava certo ao identificar a ascensão dos métodos quantitativos, e das redes em especial, nos estudos literários mais recentes.
          Passados dois anos, um grupo de físicos brasileiros veio se somar à atenção crescente de outras disciplinas --mais afeitas à matemática-- pela abordagem quantitativa de textos literários e/ou míticos. No caso, trata-se do estudo "Análise de Comunidades numa Rede Social Mitológica", mais precisamente, na "Odisseia", de Homero, publicado há um mês na Escócia.
          Milgram e Moretti são lembrados como referências distantes por Sandro Ely de Souza Pinto, professor da Universidade de Ponta Grossa, no Paraná, no momento fazendo pós-doutorado na universidade escocesa de Aberdeen. Ele encabeça o estudo, feito em colaboração com Murilo da Silva Baptista, do Instituto de Sistemas Complexos de Aberdeen, e com o mestrando Pedro Jeferson Miranda.
          No trabalho sobre a "Odisseia", diz Souza Pinto, "o que a gente mostra é que a rede parece ser real, tem indícios de que aquilo que Homero relatou é real". O que o grupo fez foi analisar as relações sociais dos personagens e transformá-las numa rede, graficamente, que se revelou "muito parecida com as redes sociais reais, inclusive com as redes de Facebook".
          COMUNIDADES Entre as características que aproximam a "Odisseia" do mundo real estão ser "pequeno mundo", como na constatação de Milgram, e "altamente repartida em comunidades". Também ser "altamente hierarquizada", fenômeno identificado nas redes por teóricos como o húngaro Albert-László Barabási, hoje professor de física na Universidade Northeastern, nos EUA, e referência central do estudo.
          A exemplo do que aconteceu com Milgram e os seis graus de separação, Barabási vem se popularizando para além da teoria das redes pela expressão "os mais ricos ficam mais ricos, os mais pobres ficam mais pobres", adaptada do Evangelho de Mateus. Em outras palavras, numa rede, os "hubs" com mais conexões sociais atraem novas conexões com mais facilidade, acentuando a hierarquização.
          "Estudamos a Odisseia' profundamente e acabamos chegando à conclusão de que Homero talvez tenha sido o primeiro a entender o que é uma rede social", diz Souza Pinto. "Para construir uma rede, você precisaria saber um pouco como é a distribuição das comunidades, dos círculos de amizade, que seguem certas leis matemáticas. E Homero observa tudo isso na construção de sua obra."
          Em números, o grupo identificou na "Odisseia" 342 personagens, ligados por 1.747 relações e formando 32 comunidades, sendo dez mais influentes, entre elas aquelas que se formam em torno de Odisseu e Menelau.
          O estudo de Souza Pinto, Baptista e Miranda repercutiu no "Technology Review", do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA, que elogiou o "novo e interessante teste, que dá um importante insight' para a história de textos antigos". E ao menos duas empresas de tecnologia, a americana Torux e a francesa Linkfluence, procuraram os brasileiros em busca de "parceria".
          Nem todos, no entanto, se mostram tão entusiasmados com as descobertas. O editor de tecnologia da revista britânica "The Economist", Tom Standage, que lança em outubro um livro com a trajetória das redes sociais desde Roma até hoje, "Writing on the Wall", afirmou à Folha já ter lido o estudo e diz preferir aguardar outros levantamentos, de outras obras.
          "Eu gostaria de ver a análise repetida para outros trabalhos ficcionais, para ver se também parecem reais', antes de concluir se essa análise apoia a ideia de que os personagens na Odisseia' realmente existiram", disse Standage. "Imagino se qualquer história plausível precisa de redes sociais que pareçam plausíveis. [A série de televisão] Game of Thrones', por exemplo."
          SONETOS Os brasileiros não são os primeiros físicos a atuar em estudos literários quantitativos. No ano passado, Pádraig Mac Carron e Ralph Kenna, da Universidade de Coventry, na Inglaterra, publicaram trabalho concentrado no épico "Táin bo Cuailnge", da Irlanda, também concluindo que ele tem relação com redes reais --e não seria tão "artificial" quanto a crítica literária costuma descrever.
          O estudo de Mac Carron e Kenna, intitulado "Propriedades Universais de Redes Mitológicas", foi outra referência para o trabalho de Souza Pinto, Baptista e Miranda, que citam ainda o livro "O Herói de Mil Faces", de Joseph Campbell.
          Além do épico irlandês, os dois pesquisadores da Universidade de Coventry estudaram paralelamente textos como a saga "Beowulf", a peça de Shakespeare "Ricardo 3º" e o best-seller "Harry Potter e a Pedra Filosofal", avaliando que o primeiro seria mais realista, e os outros dois, não. Kenna chegou a observar que, nas telenovelas, "todo mundo tende a conhecer todo mundo", algo "muito diferente de redes reais e sinal muito forte de artificialidade".
          Souza Pinto concorda com a noção, que ele vê validada, inclusive, pelas telenovelas brasileiras. "O que a gente observa é que, quanto mais erudito o autor, se você levanta a rede social da obra, mais perto da realidade ela está", diz, acrescentando que prepara, com Baptista e Miranda, outros levantamentos, mas nada de analisar criações "literariamente pobres".
          O grupo estuda no momento as redes de conexões sociais de "O Fio da Navalha", de Somerset Maugham, e "O Senhor dos Anéis", de J.R.R. Tolkien. A primeira foi escolhida por ter "um personagem que viaja pelo mundo e conhece muitas pessoas e cada uma é diferente". A segunda, por ser de "um erudito que criou várias realidades para poder escrever sua obra".
          Simultaneamente, o grupo iniciou um levantamento quantitativo, "mas não com rede social", sobre os sonetos de Shakespeare, Camões e Bocage. "O que a gente quer fazer é o reconhecimento da autoria, dizer o que é ou não de Shakespeare, de Camões, através das características matemáticas das sílabas métricas." E um terceiro estudo avalia seis traduções da "Divina Comédia".
          Sandro Ely de Souza Pinto diz que, a exemplo de Franco Moretti, ouve regularmente questionamentos a seus trabalhos. Ele acredita que a recepção no Brasil seja diferente do que na Europa e nos EUA devido à crescente interdisciplinaridade. "As pessoas cada vez mais aliam matemática com biologia, matemática com literatura, matemática com redes sociais."
          "Aqui no Reino Unido não ouço tanto, mas no Brasil as pessoas perguntam: Para que serve? Por que você está fazendo isso?'. É mais uma ferramenta da literatura, uma extensão da ferramenta que já existe na matemática e na física. Como sou matemático e físico, estou usando o que sei".

            DAVID COIMBRA - As mulheres do mundo

            Zero Hora - 04/08/2013

            Quem foram os 10 homens mais influentes da história humana?

            Outro dia, escrevi a respeito. A revista Aventuras na História apresentou sua lista e eu, metido que sou, fiz a minha.

            Não se trata de escolher os homens mais poderosos, nem os maiores, nem os mais geniais, e sim os mais influentes. Os que, de uma forma ou de outra, pelo bem ou pelo mal, mudaram o mundo. A lista da revista:

            Albert Einstein, Jesus Cristo, Karl Marx, Adolf Hitler, Vladimir Lenin, Sigmund Freud, Abraham Lincoln, Mao Tsé-Tung, Josef Stalin e Charles Darwin.

            A minha, muito melhor do que a deles, por ordem cronológica:

            Moisés, Buda, César Augusto, Jesus, Maomé, Darwin, Marx, Freud, Hitler e Mao.

            Note, inteligente leitor, que citei sete homens de ideias (Moisés, Buda, Jesus, Maomé, Darwin, Marx e Freud) e três da política (Augusto, Hitler e Mao). Alguém pode alegar que Moisés e Maomé também foram líderes políticos. Foram. Mas mudaram o mundo mais com suas ideias do que com sua ação. Quer dizer: são as ideias que transformam. Ideias.

            Pois bem. As listas geraram debates entre os leitores. Muitos cometeram também suas listas e alguns, não poucos, reclamaram: por que não há mulheres citadas? Concordei com eles. Inúmeras mulheres poderiam ser relacionadas, porque muito do que o mundo já mudou foi por causa delas.

            Que mulheres poderiam ser lembradas como motores de mudanças da Humanidade? Vou relacionar algumas, rapidamente, até chegar numa certa mulher do século 21:

            1. Cleópatra

            Sem dúvida, Cleo mudou o mundo. Por amor a ela, César e Marco Antônio se perderam, e quem ganhou foi Otávio, depois transformado em Augusto. Como disse Pascal, a história do mundo seria diferente, se o nariz de Cleópatra fosse menor.

            2. Teodora, a imperatriz de Bizâncio

            Teodora era cortesã. O imperador Justiniano regalou-se tanto com ela que a promoveu a imperatriz. A partir de então, tornou-se casta. Uma senhora respeitável. E uma leoa na luta pelo poder. Durante uma revolta popular, Justiniano queria fugir pusilanimemente. Teodora fez com que ele permanecesse no palácio, ele permaneceu e a revolta foi sufocada. Teodora salvou o império.

            3. Catarina de Médici

            Era florentina num tempo em que Florença era a cidade mais culta e sofisticada do mundo. Casou-se com o rei francês e levou sua cultura e sofisticação para Paris. Ensinou aos franceses a se portar como franceses, inclusive a comer com talheres. E, mais importante, inventou a calcinha. A civilização deve muito a Catarina.

            4. Mary Wollstonecraft

            O pai dessa inglesa era um homem muito brabo. Vivia batendo na mulher e nos filhos. Mary cresceu traumatizada, virou professora e, depois de conhecer alguns escritores libertários, tornou-se ela própria libertária. Foi pioneira na defesa dos direitos das mulheres. E foi a mãe de outra Mary, Mary Shelley, que escreveu Frankenstein.

            5. Agar

            Era escrava de Sara, mulher de Abraão. Como Sara não podia ter filhos, cedeu Agar para Abraão. Abraão agradeceu e cumpriu sua obrigação. Fez um filho em Sara, chamado Ismael. Mas, depois, o Senhor recuperou a fertilidade de Sara e ela acabou tendo um filho, Isaac. Aí quem se deu mal foi Agar. Sara não aceitou a concorrência e obrigou Abraão a expulsar Agar e Ismael para o deserto, tendo só uma bolsa d’água para beber e uma côdea de pão para comer. Agar e Ismael penaram, mas sobreviveram, e deles nasceu todo um povo, os ismaelitas, ou seja, os povos árabes.

            Não haveria jornal suficiente para falar de todas as mulheres importantes do mundo. Tenho aqui em minhas mãos um cartapácio de 1400 páginas, o “Dicionário Mundial de Mulheres Notáveis”, editado em 1967 por Lello & Irmão, da cidade do Porto. Mil e quatrocentas páginas de mulheres notáveis. Vou reproduzir o que o dicionário diz de uma só delas, e depois revelarei que mulher, hoje, se destaca no planeta. Aí vai:

            ALMEIDA, Brites de (Sécs XIV-XV). Mulher virago portuguesa que se tornou célebre sob a designação de Padeira de Aljubarrota. Segundo parece, teria nascido em Faro, de pais pobres e de condição humilde, os quais tinham, ali, uma modesta taberna. Refere a lenda que, desde pequena, Brites se revelou uma rapariga corpulenta, ossuda, feia; nariz adunco, boca muito rasgada e cabelos crespos. Uma rapariga, portanto, destemida, valente, desordeira.

            Além disso, tinha seis dedos em cada mão, fato que teria alegrado os pais, convencidos de que tinham em casa uma mulher para o trabalho. No entanto, tal não aconteceu. (...) Brites começou a adestrar-se no manejo das armas e na esgrima, criando à sua volta uma reputação de valentaça. Apesar disso, houve um soldado alentejano que, atraído pela fama de Brites, a procurou, propondo-lhe casamento. Brites, que não era dada a sentimentalismos, quis, antes de casar, brigar com ele, e tal foi a briga que o soldado foi vencido e morto.

            Não é um texto sensacional? A começar pelo eufemismo da “mulher virago”. O dicionário segue contando a história de Brites, que depois trabalhou como almocreve, que é tocadora de mulas, e se envolveu em muitas aventuras militares.

            Que belo personagem. Mas a mulher que eu destacaria no século 21 ainda não virou verbete nem ganhou o mundo; ganhará. É aquela moreninha da novela das 9, Maria Casadevall. Veja a foto dela, e me diga se não é por mulheres assim que a Humanidade muda.

            Quem educa os educadores

            folha de são paulo
            QUEM EDUCA OS EDUCADORES?
            EDUCAÇÃO BÁSICA
            Formação de professor fica longe da realidade da escola
            Principal crítica dos especialistas é o excesso de teoria com pouca prática
            DE SÃO PAULOA educação no Brasil ainda é um ponto crítico para o desenvolvimento do país.
            A qualidade do que se ensina nas escolas puxa o Índice de Desenvolvimento Humano brasileiro para baixo e coloca o Brasil no fim da lista de países em termos de qualidade de ensino de ciências e de matemática.
            As causas disso dividem a opinião de educadores, de gestores e de especialistas. Muitos, no entanto, concordam que um dos gargalos da educação está justamente na formação do professor.
            De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, o que se ensina nos cursos de pedagogia (que formam quem dá aula para as crianças de seis a dez anos, do ensino fundamental 1), e nas licenciaturas (que graduam os docentes dos jovens de 11 a 17 anos, do fundamental 2 e do ensino médio) está bem longe da realidade encontrada na escola.
            Isso porque os estágios ocupam, em média, 10% da carga horária da graduação para formar professores.
            Em países como os EUA, a relação é oposta: a maioria das disciplinas é prática.
            DIPLOMA
            Para dar aula no Brasil, é preciso, desde 2009, ser graduado em uma licenciatura.
            Isso significa que, por aqui, um engenheiro não pode lecionar matemática porque não é licenciado.
            Hoje, 24% dos que estão na sala de aula não fizeram curso universitário. Há, inclusive, quem nem tenha concluído o ensino médio (8,4 mil de 2,1 milhões docentes).
            A obrigatoriedade do diploma de licenciatura para dar aula fez ainda com que a graduação de pedagogia à distância ganhasse força.
            O número de cursos remotos de formação de professor aumentou de 6.077 para 273 mil de 2000 a 2010.
            Mesmo assim, ainda faltam docentes na sala de aula. O Ministério da Educação calcula que pelo menos 170 mil vagas para professores de matemática, química e biologia estejam sem dono.
            Os motivos disso? Aqui também há divergências. Há quem diga que o problema seja o salário. Para alguns, o piso nacional para o professor, estipulado em R$ 1.567, não consegue atrair nem segurar grandes talentos da educação.
            Por essas e por outras, quem se forma em matemática no Brasil, por exemplo, acaba preferindo não ir para a sala de aula.
            Hoje, o professor brasileiro é, em geral, uma mulher que tem entre 30 e 50 anos que veio de uma família de baixa ou média renda. A maioria (78%) trabalha em uma única escola.
            Boa parte dos docentes reclama do salário e da condição das escolas, mas não de sua própria formação.
            Apesar dos problemas, 68% dos pedagogos se sentem bem preparados, de acordo com dados do Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes).

            Marcelo Gleiser

            folha de são paulo
            O difícil problema da consciência
            Como um apanhado de 80 a 100 bilhões de neurônios gera a experiência que temos de sermos nós?
            Gostaria de retornar a um assunto que deixa muita gente perplexa, inclusive eu: a natureza da consciência e como ela "surge" no nosso cérebro. Se você acha que sabe a resposta, provavelmente não entende a questão. Nenhum cientista ou filósofo sabe como respondê-la.
            Existem vários modos de formular a questão, mas eis um: como o cérebro, um apanhado de 80 a 100 bilhões de neurônios, gera a experiência que temos de sermos nós?
            O filósofo australiano David Chalmers chama a questão de "o difícil problema da consciência". Faz isso para diferenciá-lo dos demais problemas que poderão ser resolvidos pela pesquisa nas ciências neurocognitivas e neurocomputacionais. Mesmo que isso possa demorar um século, o nível de dificuldade não se compara ao do problema que, alguns especulam, é insolúvel.
            Eis alguns dos problemas que Chalmers considera fáceis: a habilidade de discriminar, categorizar e reagir a estímulos externos; a integração de informação sensorial; o controle intencional de comportamento; a diferença entre dormir e estar acordado.
            Essas questões são localizadas, passíveis de uma descrição reducionista de como funcionam partes do cérebro, usando a conexão entre neurônios e grupos de neurônios.
            Henry Markram, na Suíça, recebeu uma bolsa de 1 bilhão de euros para liderar o Projeto do Cérebro Humano, uma colaboração de centenas de cientistas que visa criar uma simulação do cérebro humano. Para tal, eles precisarão de computadores capazes de bilhões de bilhões de operações por segundo, um fator cerca de 50 vezes maior do que os supercomputadores mais rápidos do mundo são capazes hoje.
            Markram e os "computacionalistas" acreditam que, se o nível de informação da simulação for suficientemente detalhado, incluindo desde o trânsito de neurotransmissores entre sinapses até as milhares de conexões interneuronais em partes diferentes do cérebro, a simulação funcionará como um cérebro humano dotado de uma consciência tão complexa quanto a nossa. Markram acredita que o problema "difícil" não existe: tudo pode ser obtido de neurônio a neurônio.
            Apesar de concordar com a relevância científica do projeto de Markram, não vejo como uma simulação poderá criar uma entidade com consciência semelhante à humana. Talvez crie algum outro tipo de consciência, mas não a nossa.
            Outro filósofo, Thomas Nagel, mostrou que somos incapazes de perceber a experiência consciente de outro cérebro. Como exemplo, usou os morcegos, que constroem sua realidade a partir da ecolocalização. Usando ideias do linguista Noam Chomsky, que defende a limitação cognitiva de cada cérebro (por exemplo, um rato jamais poderá falar), Nagel mostra que não podemos entender o que é "ser" um morcego.
            Essa é outra versão do problema de Chalmers, que o filósofo Colin McGinn chama de "clausura cognitiva". Não existe um modo de capturar a essência do consciente, pois este não se presta a uma análise metódica das propriedades do cérebro: está em toda a parte e em nenhuma parte. Talvez, McGinn especula, uma inteligência mais avançada saiba responder à pergunta. Mas nós, simulações ou não, temos que viver com o mistério.

              Laranjas e chocolates - Antonio Prata

              folha de são paulo
              Laranjas e chocolates
              Preferia crer que há uma intenção por trás de tudo, mas me revigoro em minha descrença ao ler certos autores
              Para o León Ferrari
              Sei que o papa já foi embora há uma semana e talvez seja um pouco tarde para falar de Deus. Acontece que, apesar dos milhões em Copacabana, da lama em Guaratiba, do justificado louvor e dos louváveis protestos causados pela visita do santo padre, o assunto só bateu aqui na porta quinta-feira à noite, quando a Stella, vizinha da frente, apareceu para conhecer minha filha.
              Stella é americana e viveu no Brooklin, NY, até se apaixonar por um pianista brasileiro, nos anos 60. Veio passar um Réveillon nos trópicos e lá se vão 50 anos. No dia em que me mudei, precisei dar um telefonema, meu celular estava sem sinal, bati em sua porta. Uma semana depois, passei por um desses caminhões que vendem frutas, na esquina, vi umas laranjas lindíssimas, uma pilha de sóis poentes sobre o mar azul da caçamba, comprei um saco pra ela.
              Inimizades precisam de pouco para surgir; amizades, felizmente, também. Um telefone, algumas dúzias de laranjas e pronto: ambos soubemos que havia alguém com quem se podia contar, do outro lado da rua. Talvez por isso ela tenha ficado incomodada com meu sorriso vacilante, quando, depois de conhecer minha filha, despediu-se com um "fiquem com Deus". Stella me encarou por um tempo, curiosa. "Você não acredita em Deus?" "Não."
              Senti a decepção no rosto da minha vizinha. Não a decepção boba de quem passasse a me ver como um herege, um pecador, mas uma tristeza genuína: deixávamos de compartilhar um elo que, para ela, talvez fosse o maior. Stella me sorriu, um tanto compadecida.
              Às vezes também me compadeço de mim. Preferia crer que há uma intenção por trás de tudo, que as cordas que amarram nossas existências são mais consistentes do que o programa de uma casa de shows no Brooklin, a má qualidade da telefonia, laranjas na caçamba de um caminhão. Então abro um livro, leio um poema do Drummond, do Fernando Pessoa ou do Vinicius e me revigoro em minha descrença.
              Apesar de lamentar terrivelmente não ter qualquer esperança no além, acredito que o ateísmo --quando amparado por boa poesia, pelo menos-- é uma concepção mais elegante, mais profunda e que encerra mais respeito à vida do que a fé em Deus. Que eu exista, que você exista, que haja árvores que dão frutos e frutos que dão sementes, que esses frutos sejam doces justamente para que eu e você os comamos e espalhemos as sementes... Não é infinitamente mais belo se nada disso fizer parte de roteiro algum? Veja o universo, que coisa fantástica. Pra que serve? Pra nada: eis o grande milagre.
              "E depois que a gente morre, o que você acha que acontece?", perguntou minha vizinha. "Acaba." "Nossa, é muito triste pensar assim." É. E quanto mais triste me parece, mais bonito fica. Do pó viemos, ao pó voltaremos, cá estamos neste "caminho entre dois túmulos", sabendo que "não há metafísica no mundo senão chocolates" e, contudo, vez por outra, nos botamos "comovidos como o diabo".
              Stella foi embora. Olhei a carinha da minha filha, em seu ninho de cobertores e uns últimos versos vieram em meu auxílio, "Hoje a noite é jovem; da morte, apenas/Nascemos, imensamente". Depois fui comer chocolates.

              Tv Paga


              Estado de Minas: 04/08/2013 



              Estilo Também hoje estreia, às 23h, no GNT, a quarta temporada da série Casa brasileira, que mostra o melhor da arquitetura e design nacionais, desta vez chegando também a Portugal. Dirigida por Alberto Renault, com roteiro da designer Baba Vacaro (foto), Casa brasileira é uma produção da Hungry Man.

              Porrada
              O canal Space estreia hoje, às 21h10, o programa Bom de briga, uma mistura de reality show com documentário sobre as histórias de 16 lutadores brasileiros de MMA (artes marciais mistas) que sonham com o UFC (Ultimate Fighting Championship). A série, de oito episódios, foi gravada toda no Rio de Janeiro, com participantes do campeonato Favela Kombat. A “culpa” é das produtoras Terra Vermelha e Cine Internacional.


              Enlatados - Mariana Peixoto  


              Policial de araque

              Enquanto a oitava (e provavelmente última) temporada de Psych não estreia nos Estados Unidos, por aqui o canal Studio Universal exibe a sétima. O primeiro episódio irá ao ar hoje, às 20h. Entre as novidades dos 16 episódios está a entrada da atriz Parminder Nagra (E. R.), que será a namorada de Gus (Dulé Hill), melhor amigo e parceiro de Shawn (James Roday), consultor da polícia. Outros rostos conhecidos da TV voltam a dar as caras na comédia policial: Cybill Shepherd e Kristy Swanson.

              Agulha – Já às 22h, o mesmo Studio Universal estreia o quinto ano de Nurse Jackie, a série da enfermeira viciada em drogas que se esforça para se equilibrar entre o trabalho, a família e os dramas pessoais.

              Psicose – Já o Universal Channel apresenta hoje, a partir das 18h, maratona com os cinco primeiros episódios de Bates Motel, a série que vai até a juventude do mais conhecido personagem dos filmes de Alfred Hitchcock, Norman Bates. Na quinta-feira, às 22h, vai ao ar “The truth”, sexto episódio (ainda inédito).

              Confronto –A terceira temporada de Falling skies chega ao fim sexta-feira, às 22h30, na TNT. O episódio derradeiro leva o sugestivo título de “Brazil”. A trama promete uma descoberta crucial justamente no momento em que Tom Mason (Noah Wyle) e os demais resistentes se preparam para um encontro mortal com os skitters.

              Tripla estreia –A partir de amanhã, o GNT estreia três séries gringas. Segunda-feira, às 22h30, Broadchurch mostra o trabalho da polícia para investigar o assassinato de um garoto de 11 anos numa pequena cidade da Inglaterra. Na terça-feira, também às 22h30, é a vez de Parenthood, drama com doses de comédia sobre uma família muito complicada. E no dia 13, às 23h30, começa The fall, policial protagonizado por Gillian Anderson (Arquivo X).

              Streaming –Estão disponíveis no Netflix as primeiras temporadas de Homeland e de Friends with benefits.  

              Henrique Meirelles

              folha de são paulo
              De olho na bolha
              O Fed (banco central dos EUA) tem dado indicações que confundem alguns operadores de mercado. Em alguns momentos, indica que diminuirá os estímulos monetários adotados contra a crise. Em outros, sinaliza que isso pode ser feito mais adiante.
              A razão disso, além da própria evolução do cenário, é a preocupação da autoridade monetária americana em estimular a economia e, ao mesmo tempo, evitar a forma-ção de bolhas.
              É importante entender o que se chama de bolha. Ela existe quando os preços de alguns ativos sobem exageradamente, geralmente num processo de alta liquidez e juros baixos.
              O estouro de bolhas pode causar prejuízos graves, como a crise de 2008, detonada pelo estouro da bolha imobiliária dos EUA. O fenômeno americano é o mais bem documentado e fácil de analisar.
              Durante anos, o controle da inflação americana foi facilitado pela capacidade chinesa de exportar produtos a preços cada vez mais baixos. Isso, junto a outros fatores como a evolução do instrumental de política monetária, permitiu ao Fed adotar política de juros baixos e incentivo ao consumo e ao crédito, com inflação na meta.
              Esse contexto causou alta exagerada no preço das ações no final dos anos 1990, principalmente de empresas de internet. Como tudo que sobe demais nos mercados um dia cai, a bolha da internet estourou em 2000. E foi seguida pelos ataques terroristas de 2001.
              Esses dois acontecimentos ameaçaram levar os EUA à recessão devido à perda pa- trimonial dos que tiveram prejuízos na Bolsa. E motivaram o Fed a afrouxar a política monetária.
              A operação teve sucesso, mas o excesso de liquidez fez outros ativos subirem exageradamente, principalmente no mercado imobiliário. O preço dos imóveis foi inflacionado. Pior: grande parte das compras era financiada por crédito imobiliário.
              Assim, quando a bolha dos imóveis estourou, houve paralisação dos mercados de créditos e prejuízo aos investidores em geral. Aí, sim, tivemos uma crise global, produto das consequências do estouro da bolha imobiliária.
              O que o Fed busca agora é incentivar a economia, sem deixar os juros dos títulos mais longos excessivamente baixos a ponto de criar outras bolhas, nem deixar que eles subam demais antes que a economia esteja recuperada.
              Alan Greenspan, ex-presidente do Fed, dizia que é muito fácil detectar quando a inflação passou da meta, mas definir quando os preços de imóveis ou ações subiram exageradamente é muito mais difícil.
              A preocupação com as bolhas, das quais a mais perigosa é a imobiliária, precisa estar sempre no radar de todos os países o tempo todo.

                AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Pornografia e ginástica‏

                Uma boa definição é esta: pornografia é o sexo praticado em outras culturas 


                Estado de Minas: 04/08/2013 


                Abro os jornais e dizem que há vídeos dos Rolling Stones rolando por aí, dentro e fora da internet, vídeos piratas em que eles participam de orgias com várias moças dentro de aviões. Numa das cenas, o guitarrista toma heroína, Mick Jagger se masturba e há ambiente de sujeira em tudo, cinzeiros, bebedeiras, enfim, um baixo astral, decandentismo de tal ordem que até os fãs ficariam horrizados.

                Outro dia, jornais estamparam (com muito destaque) reportagens com americana que ficou famosa por fazer filme pornô. Até aí, digamos, tudo bem, isso existe. Mas diziam que nos filmes ela mantinha relações com dúzias de homens. Isso acontece. Mas o fato é que ela resolveu escrever um livro. Infelizmente acontece. Aí, fiquei invocado. Pronto, deram um espaço danado pra moça. Claro, os coleguinhas vão usar aquele argumento de que ela é notícia. Sendo assim, lá vai água. Mas tem algo mais perverso e ambíguo nisso, pois alguns editores noticiam como se estivessem tratando da Divina comédia.

                Aliás, coincidentemente, surgiu a notícia (ou boato) de que Deborah Secco vai representar Irmã Dulce num filme. Como se sabe, a atriz já havia feito Bruna Surfistinha, esse ícone de nosso tempo. A rigor, não tem nada demais, reconheço, pois a ambiguidade está num outro ícone: na cantora Madonna, que, ao eleger esse nome, faz questão de se exibir como santa e prostituta. Enquanto seus vídeos ilustram a devassidão, ela faz livros para crianças.

                A Flip, que tem lá seus méritos, cai na mesma esparrela. Já trouxe uma porção de escritores que talvez sejam apenas autores de livros. Vocês sabem que há diferença entre escritor e autor de livro. Qualquer um pode ser autor de livro, mas nem todo autor de livro é escritor. Já trouxeram um mexicano com defeito numa das mãos, que usa prótese. Ele tem várias mãos artificiais em forma de pênis e de coisas eróticas, faz questão de exibir isso nas palestras. Trouxeram também a mulher que foi chutada pelo amante e escreveu um livro sobre isso. E conseguiram (sempre por acaso) que o amante viesse para a Flip. Há também curadora de arte que se gaba de ter tido sucessivas relacões com 600 homens dentro de uma kombi. É uma verdadeira instalação. Essa senhora dirige uma revista de artes plásticas, instalou-se como artista dentro e fora da Kombi.

                 Outro dia, um jornal contratou colunista novo. O texto dele era ótimo, mas ele botou logo nas primeiras frases um palavrão, aliás, uma palavrinha retroativa. Outro dia, fui assistir ao filme sobre a vida de Hanna Arendt, a filósofa que inventou a expressão banalidade do mal. Ela falava sobre o holocausto, sobre o carrasco Eichman, a cujo julgamento foi assistir em Jerusalém. Penso na banalização da pornografia. Acho que não estamos inventando nada novo. Apenas temos recursos (globalização, internet) para banalizar mais as coisas.

                Já se disse tanta coisa sobre pornografia! Tanta coisa sobre diferença entre pornografia e erotismo… E uma boa definição é esta: pornografia é o sexo praticado em outras culturas. Pois Santa Teresa não comparava o gozo místico ao gozo carnal?

                Pois outro dia estava numa aula de ginástica. Vejam só! Numa pura e ingênua academia, onde se cultiva mens sana in corpore sano (mente sadia e corpo sadio). Mas estava com os ouvidos tão cheios de pornografia que comecei a escutar as santas frases dos professores de maneira estranha. Vejam o que eles diziam:

                – Agora deita...

                – Assim de frente, vai.

                – Abre as pernas. Mais. Isso…

                – Levanta o tronco, assim está bem.

                – Agora de bruços…

                – Vamos fazer diante do espelho.

                – Pega aqui, mas pega com força.

                – Tá bom? Posso continuar?

                – Isso, vai!

                – Abre os braços e fecha as pernas.Respira fundo, lá vai. 

                – Hoje você está melhor que ontem…

                – Você aguenta mais ou por hoje chega?

                Carlos Heitor Cony

                folha de são paulo
                Gatos-pingados
                RIO DE JANEIRO - Quando tomou posse na prefeitura carioca (mais tarde seria governador), Negrão de Lima arregalou os olhos quando os técnicos em urbanismo informaram-lhe que havia 8 milhões de ratos na cidade. Perguntou: "Como é que vocês contaram?".
                No Carnaval, em certos eventos e no Réveillon, a mídia chuta números astronômicos. Agora, na visita do papa, a informação geral foi que na praia de Copacabana havia 3 milhões de "peregrinos" numa das cerimônias. Recebi do leitor Peter Bauer uma carta esclarecedora:
                "Praia de Copacabana. Comprimento: 4.000 metros. Largura média: 100 metros. A mídia local contagiou a mídia estrangeira, mantendo em uníssono que 3 milhões de fiéis estavam na praia, todinhos ao mesmo tempo! No sábado, 27 de julho. Sem descontar os obstáculos que diminuem a área total (palco, restaurantes, quiosques, barracas, facilidades públicas etc.), o simples cálculo é que se a densidade média de cada m² da área fosse de três pessoas por m², o total poderia chegar a 1,2 milhões.
                Claro que, na prática, a densidade três só se dá perto do palco, sendo que, depois de um certo raio, o grau de densidade diminui progressivamente para até menos de um.
                Um ex-pesquisador suíço com conhecimento de causa afirma que, nesse dia, teve 560.000 [pessoas], margem de 30.000 para mais ou para menos. Também disse que o recorde dos últimos 20 anos foi no Réveillon de 1999-2000, com quase 700.000."
                Em 1964, quando lancei na Cinelândia o livro de crônicas "O Ato e o Fato", que escrevia no "Correio da Manhã" contra o regime militar instalado naquele ano, o mesmo jornal informou que havia 3.000 pessoas na praça, incluindo as escadarias da Biblioteca Nacional e do Theatro Municipal. Os jornais que apoiavam a ditadura garantiram que só havia 18 gatos-pingados.

                  Eliane Cantanhêde

                  folha de são paulo
                  Mensalão versus Siemens
                  BRASÍLIA - Reza a lenda política que agosto é o mês do azar, quando Getúlio Vargas se suicidou, Jânio Quadros renunciou e Juscelino Kubitschek morreu num acidente de carro até hoje ainda nebuloso.
                  Pois justamente em agosto recomeça o julgamento do mensalão no Supremo, que pega o PT de jeito, e emerge a denúncia da alemã Siemens de que houve um cartel para licitações das obras do metrô de São Paulo, o que desestabiliza o PSDB.
                  Como pano de fundo, a popularidade de Dilma em queda, protestos contra Alckmin e Cabral, o Congresso em pé de guerra e a recuperação da economia, só na promessa.
                  Tem-se que agosto encontrará o governo batendo cabeça, o Congresso testando forças, os tucanos esbaldando-se com o mensalão petista, e os petistas, com o caso Siemens dos tucanos. E a plateia botando fogo.
                  Isso tudo é álcool, gasolina e fósforo aceso para as manifestações populares. Elas começaram em junho, movidas em grande parte pela exaustão diante das práticas políticas e da falta de ética, e prometem voltar com tudo no Sete de Setembro, pelos mesmos motivos, mas com novidades, confrontos explosivos e a sensação de que não se salva um.
                  Se o mensalão do PT atinge José Dirceu, José Genoino e João Paulo Cunha, a denúncia da Siemens, que entregou documentos para as autoridades brasileiras, aponta o governo Mário Covas, chega ao primeiro de Geraldo Alckmin e atinge um ano do de José Serra. É guerra de comandantes, não de soldados.
                  Como sempre, o caso Siemens começa assim: vem a manchete na imprensa, o atingido diz que há manipulação política e o investigador responde que o processo é legal, rigoroso e técnico. Depois, vira tudo um deus nos acuda, com verdades borbulhando, a mídia vasculhando cada vírgula, a opinião pública irada.
                  Mas agosto é só o começo, setembro está logo aí e 2014 é ano de eleição presidencial. O que está ruim sempre pode piorar.