domingo, 14 de abril de 2013

O senhor de engenho dentro de nós - Luiz Antonio Simas



Se hoje não temos mais a pregação 

explícita de uma política de 

branqueamento, ainda estamos 

distantes de superar o que 

Joaquim Nabuco chamou de “obra 

da escravidão”


Luiz Antonio Simas

É fato fartamente documentado que governos brasileiros, com apoio de parte dos segmentos mais favorecidos e de intelectuais que abraçaram a eugenia, tentaram apagar, nos primeiros anos do pós-abolição, a presença do negro da História do Brasil. Este projeto se manifestou do ponto de vista físico e cultural. Fisicamente o negro sucumbiria ao branqueamento racial promovido pela imigração subvencionada de europeus, capaz de limpar a raça em algumas gerações. Do ponto de vista cultural, houve uma tentativa sistemática de eliminar as formas de aproximação com o mundo e elaboração de práticas cotidianas (jeitos de cantar, rezar, comer, louvar os ancestrais, festejar, lidar com a natureza etc.) produzidas pelos descendentes de africanos, desqualificando como barbárie e criminalizando como delitos contra a ordem seus sistemas de organização comunitária e invenção da vida.

Se hoje não temos mais a pregação explícita de uma política de branqueamento, ainda estamos distantes de superar o que Joaquim Nabuco chamou de “obra da escravidão”. Há um senhor de engenho morando em cada brasileiro, adormecido. Vez por outra ele acorda, diz que está presente, se manifesta e adormece de novo, em sono leve.

Há um senhor de engenho nos espreitando nos elevadores sociais e de serviço; nos apartamentos com dependências de empregadas; no bacharelismo imperial dos doutores que ostentam garbosamente o título; na elevação do tom de voz e na postura senhorial do “sabe com quem você está falando?”; no deslumbre das elites que buscam “civilizar” os filhos em intercâmbios no exterior; na cruzada evangélica contra a umbanda e o candomblé; na folclorização pitoresca dessas religiosidades; nos currículos escolares fundamentados em parâmetros europeus, onde índios e negros entram como apêndices do projeto civilizacional predatório e catequista do Velho Mundo; no chiste do sujeito que acha que não é racista e chama o outro de macaco; no pedantismo de certa intelectualidade versada na bagagem cultural produzida pelo Ocidente e refratária aos saberes oriundos das praias africanas e florestas brasileiras.

Recentemente observamos a ocorrência de alguns eventos que revelam a permanência de práticas senhoriais que continuam nos assombrando. Um grupo de estudantes de Direito da UFMG realizou um trote em que veteranos se travestiam orgulhosamente de nazistas e uma caloura pintada de preto era acorrentada, portando um cartaz onde se lia “Chica da Silva”. Continua, também, a polêmica que envolve clubes de ricaços no Rio e em São Paulo que exigem uniformes identificadores das babás dos filhos bem nascidos de sinhazinhas e sinhozinhos. Temos, por fim, o siricotico de certos setores indignados com a proteção trabalhista que os empregados domésticos passarão a ter no Brasil. O argumento de que os direitos — como o FGTS — encarecerão demasiadamente o trabalho e gerarão desemprego esconde uma questão de evidente fundo cultural: o incômodo de uma elite que sempre desqualificou o serviço doméstico e é herdeira de uma das maldições que o cativeiro legou entre nós; a ideia de que a exploração do serviço braçal é quase um favor que o senhor presta àquele a quem explora. Jogam no mesmo time dos que diziam, na abolição da escravatura, que sem o seu senhor o negro quedaria desamparado.

Tudo isso nos permite constatar que o já citado Joaquim Nabuco de fato acertou na mosca. Disse ele que mais difícil do que acabar com a escravidão no Brasil seria acabar com a obra que ela produziu. É ela, a obra da escravidão, erguida em alicerces sedimentados de uma forma profunda e eficaz na alma brasileira, que até hoje nos assombra — porque nos reconhecemos nela como algozes ou vítimas cotidianas — e precisa ser sistematicamente combatida.

Luiz Antonio Simas é professor de História

Barbara Gancia

folha de são paulo

Casamento, uma alegria na família

Nunca em um milhão de anos eu poderia supor que um casamento em família fosse me deixar de nervos tão emaranhados. E note que não venho nem mesmo a ser a mãe da noiva.
Fato está que pareço ser a única da família, desde o anúncio da "boda" (como diria a revista "Caras") da minha sobrinha, a implicar com cada detalhe da celebração. "Mas por que o casamento civil e a festa não vão ocorrer no mesmo dia, não seria mais prático para todos?"; "Mas por que não posso ir de vestido cor 'off white'?"; "Mas por que o Alemão da Maloca, o Ostrão e o Badalhoca não estão na lista de convidados se são meus BFFs (Best Friends Forever)? Vocês percebem que nunca irei perdoar tamanha desfeita?"
O cabo de guerra entre minha irmã e eu já dura meses. Ontem mesmo armei mais um barraco quando soube que não havia sido convidada para experimentar os docinhos da festa. Onde já se viu me fazer gastar uma fortuna em vestido, sapato, presente e sei lá mais o que e não me convidar para palpitar na comida? Rodei uma baiana tão violenta que até a Bucicleide foi acionada para me acalmar.
Ilustração Alex Cerveny
A verdade é que eu sou a rainha do mico-preto. Veja só: já fui madrinha de 23 casamentos. Minto, foram muitos mais. É que parei de contar no 23. Minha mãe sempre recebia a notícia de mais um convite para ser madrinha como se tivesse sido chamada para um velório. "O que, filha? Mais um vestido de noivado e outro de casamento? Mais presente da Mickey e você, que é bom, necas?", choramingava.
"O que acontece, foi trabalho, olho gordo, você andou debaixo de alguma escada, desagradou a alguma bruxa da Disney, o que é isso?" E eu: "Não, mãe, juro que não fiz nada. O povo gosta de mim e me convida. E, realmente, casar não está na agenda deste ano, quem sabe ano que vem..."
Ninguém tem mais compadre do que eu neste país. Nem mesmo o Lula. Não é mentira. Mas temo que a motivação de minha sobrinha e seu noivo ao me chamar para ser madrinha deles tenha tido algo a ver com o vestido "off white".
Outro dia vieram com essa conversa de que me queriam no altar, faziam muita questão, me amavam muito e coisa e tal. E deixaram claro que as outras madrinhas estariam usando tons de "mauve".
Alguém por acaso sabe dizer que raio de cor é "mauve"? Conheço lilás, roxo e fúcsia. Mas "mauve" me parece nome de pavê. Ou do tipo de mal-estar que francês sente em navio. Ademais, agora encanei com um azul calcinha que acho que poderia trazer um tchans ao altar.
Tudo bem. Ela é minha única e adorada sobrinha. E eu já estou bem chateada de ir sem o Alemão, o Ostrão e o Bada. Você não tem ideia, meu ilustre leitor, de como eles são animados em casamento. No último, o Ostrão rodopiou com a avó da noiva de tal forma durante "I Will Survive", que a dentadura da velha foi parar numa "flûte" de champanhe do outro lado da pista. Badalhoca, não perdeu tempo. Tomou-a dos braços dele, agarrou sua cintura com firmeza e enfiou a linguona inteira na goela da veia.
Parece que isso teve alguma coisa a ver com o não convite deles para o casamento da minha sobrinha. Vou parar por aqui porque não gosto de polemizar nem de causar mal-estar. Mesmo porque a festa não é minha e não quero chatear minha irmã, os noivos e muito menos meu cunhado, sabe como é. Esse negócio de família é complicado.
Barbara Gancia
Barbara Gancia, mito vivo do jornalismo tapuia e torcedora do Santos FC, detesta se envolver em polêmica. E já chegou na idade de ter de recusar alimentos contendo gordura animal. É colunista do caderno "Cotidiano" e da revista "sãopaulo".

O suicídio e a batalha por sua prevenção - Entrevista - José Manoel Bertolote

folha de são paulo

Viagem sem volta
O suicídio e a batalha por sua prevenção
FERNANDO TADEU MORAESRESUMO Médico psiquiatra lança manual de prevenção ao suicídio e ao comportamento suicida, que passa a figurar em compêndio de transtornos mentais. Ele comenta alguns dos muitos tabus que cercam o assunto, como a divulgação na imprensa, o luto duplicado, as frágeis estatísticas e a relação com doenças.
Prevista para este ano, a inclusão de uma categoria de comportamentos suicidas no novo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o chamado DSM 5, referência na área de saúde mental em todo o mundo, pode ajudar os médicos a quantificar melhor esse fenômeno, em especial as tentativas, cujas taxas podem ser 40 vezes mais altas do que as dos suicídios consumados.
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Essa é a opinião do psiquiatra José Manoel Bertolote, que acaba de lançar "O Suicídio e sua Prevenção" [Unesp, 142 págs., R$ 18]. Ele afirma, em entrevista à Folha, que a depressão, o alcoolismo e a esquizofrenia são as três principais causas por trás das mortes autoinflingidas.
Estima-se hoje em 1 milhão o número anual de mortes por suicídio em todo o mundo. Isso o coloca como uma das "três principais causa de óbitos em determinadas faixas etárias de vários países e em várias regiões do globo", escreve Bertolote. No livro, o psiquiatra traça um histórico sobre o tema a respeito do qual já se debruçaram teólogos, juristas, filósofos, sociólogos entre outros, e analisa, sob o prisma da saúde pública, suas causas no Brasil e no mundo.
Bertolote, 65, trabalhou por quase 20 anos na OMS (Organização Mundial da Saúde), onde chefiou a equipe de transtornos mentais e neurológicos. Uma de suas atribuições nesse período era auxiliar países a elaborar políticas de prevenção de suicídio. Hoje, ele é professor voluntário na Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu, na qual se formou em 1971.
Durante a entrevista, Bertolote fez um pedido: gostaria que fosse incluído neste texto o número do telefone do Centro de Valorização da Vida, o CVV: 141.
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Folha - Como o sr. vê a inclusão da categoria de comportamentos suicidas no novo manual de psiquiatria?
José Manoel Bertolote - Vejo com bons olhos. Hoje há boas estatísticas de mortes por suicídio para cerca de dois terços do mundo, mas não há um registro centralizado de tentativas de suicídio. Se uma pessoa ingere um veneno e vai parar no pronto-socorro, o caso é registrado como intoxicação; se ela corta os pulsos, lesão cortante. A intencionalidade acaba nunca sendo registrada.
A inclusão de uma categoria de comportamento suicida é bem-vinda, pois vai permitir dar uma visão melhor desse quadro. Estudos mostram que a taxa de tentativa de suicídios chega a ser 40 vezes mais alta que a taxa de suicídios consumados.
Como o suicídio se tornou um assunto da medicina?
Até cerca de três séculos atrás, o suicídio era basicamente um problema teológico. O catolicismo considerava o suicídio um pecado grave, o islamismo considera até hoje o pior pecado, pois é a destruição da obra divina. Havia também o interesse de filósofos e, na Inglaterra e em vários outros países, o suicídio era considerado uma morte indigna. O direito o tratava como um crime contra o Estado.
Foi a partir dos séculos 17 e 18 que médicos passaram a se interessar pela questão do suicídio e a considerar que o suicídio tinha uma relação estreita com a saúde, porque eles julgavam que todo suicídio era um ato de loucura. E isso foi ganhando adesão com o tempo. No século 20, consolidou-se a ideia de que o suicídio é um problema de saúde e, sobretudo, de saúde pública.
Há relação entre suicídio e doença?
O suicídio, em primeiro lugar, não é uma doença. Na perspectiva da saúde pública, é um fenômeno social de distribuição irregular na sociedade. Mas há estudos em todo o mundo que mostram que, por trás de grande parte das mortes por suicídio, existem doenças.
A maioria dessas doenças são mentais, mas há também uma grande associação entre suicídio e doenças incuráveis e dolorosas. A mortalidade de portadores de HIV por suicídio, por exemplo, caiu muito depois do advento do coquetel de drogas, quando ela deixou de ser essa doença mortal. As doenças mais associadas ao suicídio são a depressão, o alcoolismo e, um pouco atrás, a esquizofrenia.
Quais são os limites da prevenção do suicídio?
Não acredito que o suicídio possa ser erradicado, pois é um fenômeno humano que existe desde sempre. Há, por exemplo, uma porcentagem de suicídios por trás da qual, por mais se investigue, não se encontra uma doença ou causa clara.
Durkheim, em sua tipologia de suicídios, fala do suicídio altruísta [situação em que um indivíduo está tão conectado a sua comunidade, que abdica de sua individualidade, acreditando que sua morte pode trazer benefícios para a sociedade]. Como é que se vai prevenir isso? Não há o menor sentido. Não é disso que a prevenção do suicídio se ocupa. A prevenção se ocupa dos casos considerados evitáveis, porque decorrentes de um fator que poderia ser removido [como o alcoolismo].
Um dado importante e comprovado é que a maioria das pessoas que tentam o suicídio não quer morrer. São pessoas que querem mudar uma situação, escapar de um problema e, às vezes, a situação é tão tantalizante que a pessoa não enxerga outra saída. Há estudos com pessoas que fizeram uma tentativa de suicídio por um método muito letal e estão próximas de morrer. Elas são entrevistadas nesse momento. A imensa maioria fica desesperada quando percebe que vai morrer e que é irreversível.
A mídia deveria ter um papel nessa prevenção?
A mídia tem um grande papel na prevenção do suicídio. Há um mito de que não se pode tocar no assunto nos jornais. A imprensa pode ajudar ou atrapalhar de acordo com a forma que trata o assunto. Abordar o tema com sensacionalismo, promovendo o ato, explicando métodos etc. só atrapalha, já que sempre existe, em toda população, um certo número de indivíduos suscetíveis. Agora, abordar de uma maneira potencialmente educativa ajuda, sem dúvida.
O que o sr. acha de grupos como CVV e Samaritans [fundação inglesa aberta em 1953 dedicada à prevenção do suicídio]?
Eu já trabalhei com CVVs e Samaritans de vários países do mundo e tenho muita admiração pelo trabalho deles. Um ponto importante a ressaltar é que eles não fazem só a prevenção do suicídio; seu grande mérito é auxiliar uma pessoa em crise. Eles conseguem solucionar uma crise que talvez hoje não fosse suicida, mas que, pela falta de perspectiva, poderia evoluir para uma crise suicida. Penso que eles deveriam ser estimulados pelas autoridades sanitárias.
Como é o suicídio entre as populações indígenas?
As taxas de suicídios em populações indígenas são as mais altas em qualquer país do mundo, segundo estudos. Isso se explica com fatores sociológicos. Em geral populações indígenas são marginalizadas, pobres. Além disso, cada vez mais se identifica nessas populações indígenas o álcool como um fator desagregador, desestabilizador, causando conflitos e levando ao suicídio.
O álcool que havia em populações tradicionais indígenas brasileiras era o cauim, uma bebida de rituais, com baixo teor alcoólico; aí, de repente, eles pegam a cachaça, que tem um teor alcoólico altíssimo. E isso se agrava, pois as populações indígenas da América são de origem asiática, e é muito comum entre os asiáticos uma alteração genética que dificulta o metabolismo do álcool. Juntando todos os fatores, temos uma situação muito trágica numa população pequena de índios.
Pode-se falar de um luto diferente para os parentes de um suicida?
O luto de uma perda inesperada, sobretudo por uma forma inaceitável, é um luto mais complicado que o luto "normal". O suicídio sempre desperta nos que ficam no mínimo dois sentimentos: culpa e raiva. Isso causa um mal-estar tão grande que chega a ser um fator de risco de suicídio. São relativamente comuns suicídios em famílias em que um membro acaba de se suicidar.
Há um importante movimento internacional de sobreviventes, chamado Survivors, fundado por um casal americano que perdeu sua única filha pelo suicídio. Eles se aproximam de famílias em luto para conversar, compartilhar experiências. O resultado é o desenvolvimento de uma solidariedade intragrupal e o sentimento de solidariedade e responsabilidade pelos outros.
Entre 1980 e 2008 a taxa de suicídios de homens brasileiros quase dobrou. Quais são as possíveis explicações para isso?
Foi um aumento muito localizado, em jovens de 16 a 25 anos. O que vou dizer agora é mais uma impressão do que uma afirmação científica. Duas coisas que afetam particularmente esse grupo aconteceram nesse período: por um lado, houve uma explosão do número de usuários de drogas; por outro, houve a reforma psiquiátrica que fechou radicalmente o número de leitos psiquiátricos. Esses leitos foram fechados no momento em que o aumento dos usuários de drogas pedia um número maior. A sociedade nesse período também se tornou mais violenta. Na mesma época, houve aumento do número de homicídios, especialmente entre os jovens.
O que se sabe sobre as bases genéticas do suicídio?
Essa é uma área pobre de resultados. Eu, particularmente, acho muito improvável que alguém encontre o gene do suicídio. O que se sabe é que existem genes da violência. Nos indivíduos com alto risco de violência, isso pode se expressar como um suicídio dramático ou como um homicídio. Casos de pessoas que pegam uma arma, matam vários e depois se matam certamente envolvem pessoas extremamente violentas.
Uma grande dificuldade é que grande parte dos estudos genéticos é feito com gêmeos. Suicídio é um evento relativamente raro; encontrar gêmeos não é tão comum; e encontrar gêmeos nos quais um se matou e outro não é mais difícil ainda, o que torna as análises estatísticas muito pobres. O suicídio é uma coisa muito mais complexa do que pode ser expressada por um gene.
Como o sr. vê o direito ao suicídio?
Eu sou um pouco antiquado, acredito no juramento de Hipócrates, que diz que a tarefa principal do médico é preservar a vida. Claro que existem limites nos quais a preservação da vida não tem mais sentido. Filosoficamente, eu consigo entender alguém que, em plena posse de suas faculdades mentais, queira se matar; medicamente eu não tenho meios de justificar isso.
Vejo o direito ao suicídio com ressalvas, mas sempre fica a pergunta incômoda: quem sou eu para dizer a alguém aparentemente consciente dos seus atos e que quer se matar que ele não deveria fazer isso?
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"O suicídio, em primeiro lugar, não é uma doença. O suicídio, na perspectiva da saúde pública, é um fenômeno social que possui uma distribuição irregular na sociedade"
"A mortalidade de portadores de HIV por suicídio, por exemplo, caiu muito depois do advento do coquetel de drogas, quando ela deixou de ser essa doença mortal"
"O suicídio desperta nos que ficam dois sentimentos: culpa e raiva. Chega a ser um risco. São comuns suicídios em famílias em que um membro acaba de se suicidar"

    Arquivo aberto Memórias q viram histórias

    folha de são paulo

    Clodovil esnobou o Motörhead
    Rio de Janeiro, 1989
    ANDRÉ BARCINSKIA MEMÓRIA É traiçoeira. Pode deixar lembranças intocadas no subconsciente, guardadas como um livro esquecido na estante. Às vezes, basta um empurrãozinho, uma fagulha, para ressuscitar histórias há muito adormecidas.
    Foi o que aconteceu há algumas semanas, quando fui visitar um familiar internado em um hospital no Rio. Fazia mais de 24 anos que eu não ia àquele prédio. Assim que entrei, a história me voltou inteira: era março de 1989. Aquele hospital era um hotel, eu era fotógrafo e estava ali para fotografar uma banda de rock que tocaria no Rio no dia seguinte: o Motörhead.
    Todo fã de rock pesado venera o Motörhead e seu líder, Lemmy Kilmister. Nascido na véspera do Natal de 1945, Lemmy é uma lenda do rock, um ícone da vida libertina e hedonista. Na mitologia do "sexo, drogas e rock'n'roll", ele só tem um adversário à altura: Keith Richards.
    Lemmy foi "roadie" de Jimi Hendrix e baixista do Hawkwind, uma comuna/gangue que vivia numa dieta de LSD e tocava uma animalesca mistura de punk e rock progressivo. Lemmy conseguiu a proeza de ser demitido do Hawkwind por mau comportamento. Em 1975, durante uma turnê, ele foi preso na fronteira entre EUA e Canadá por porte de drogas. Expulso do Hawkwind, Lemmy fundou o Motörhead, gíria usada para identificar viciados em anfetaminas.
    Em sua hilariante autobiografia, "White Line Fever", Lemmy conta que bebe uma garrafa de Jack Daniel's por dia, já dormiu com 1.200 mulheres e resolveu doar o corpo à ciência, para que alguém estude o segredo de sua longevidade. "Em 1980, resolvi trocar todo meu sangue, para não precisar fazer detox', mas o médico disse que sangue puro iria me matar: Você não tem mais sangue puro em suas veias', me disse o doutor. E se você doar sangue, a pessoa morre na hora. Você é tóxico.'"
    No lobby do hotel, Lemmy e sua banda, os guitarristas Würzel e Phil Campbell e o baterista Philthy "Animal" Taylor, conversavam com jornalistas e fãs. Falei com o agente, que reuniu os quatro para uma foto. Encontrei um lugar reservado, num bar que ficava no segundo andar do hotel.
    Assim que chegamos, vi uma pessoa sentada numa poltrona, com um cãozinho nos braços. Não lembro se era um poodle ou um pequinês, mas era um daqueles bichos pequenos, fofos e barulhentos. Imediatamente reconheci a figura: era Clodovil.
    Eu precisava conseguir uma foto de Clodovil com o Motörhead. A ideia de colocar aquela horda de vikings junto com o apresentador de "Clô para os Íntimos" era tentadora demais. E o cãozinho seria a cereja no bolo.
    Sempre achei graça na justaposição de figuras "diferentes": anos depois, consegui fotografar o cantor do grupo de pós-punk Echo & the Bunnymen, Ian McCulloch, abraçando o pagodeiro Alexandre Pires. Também tentei, sem sucesso, juntar na mesma foto a atriz Catherine Deneuve e o diretor Zé do Caixão.
    Voltando ao Motörhead: fiz rapidamente as fotos da banda e perguntei a Lemmy se eles se importariam em tirar uma foto com uma "celebridade da TV brasileira". Lemmy perguntou quem era. Expliquei que era um famoso estilista, uma figura muito popular e meio excêntrica. A única definição que me veio à cabeça na hora foi "o Liberace brasileiro". "Liberace? Mas ele é pianista?", perguntou Lemmy. "Ok, pode chamar, mas rápido."
    Fui falar com Clodovil. Disse que a banda era muito famosa e que adoraria tirar uma foto com ele. Clodovil deu uma olhada para os quatro, virou-se para mim e disse: "Meu bem, não dá."
    Não houve jeito de convencer Clodovil. E a imagem dele, o cachorrinho nos braços, ao lado de Lemmy e do Motörhead, só existe na minha imaginação.

      Crítica da erótica desbotada

      folha de são paulo

      ENSAIO
      Que delícias um príncipe encantado sádico pode reservar ao público feminino de hoje?
      ELIANE ROBERT MORAES
      RESUMO Até que ponto "Cinquenta Tons", de E.L. James (Intrínseca) pertence à linhagem de obras eróticas capazes de desestabilizar o leitor? Ao contrário dos clássicos que inspiraram o sadismo e o masoquismo, a trilogia só reitera valores sexuais contemporâneos e espelha os nossos impasses amorosos e culturais.
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      O sucesso da trilogia "Cinquenta Tons" traz questões de fundo que demandam reflexão. Não se trata de discutir se os livros têm ou não algum valor literário. Para confirmar a baixa qualidade do texto, basta ler um ou dois parágrafos. O curioso, porém, é que tal evidência não reduz o fenômeno a mero problema sociológico, como acontece com a maior parte dos best-sellers. O fato de se concentrar na encenação de fantasias sexuais e, mais ainda, de explorar o delicado limiar entre o prazer e a dor, faz desses livros um caso particular, acrescido da novidade de que seu público é formado quase exclusivamente por mulheres.
      Lançado em 2011, o "mummy porn", como foi logo batizado, se tornou um fenômeno editorial no ano passado e, ao que tudo indica, promete atravessar 2013 ostentando novos números de tirar o fôlego. São milhões e milhões de leitores, espalhados pelos quatro cantos do mundo, que sustentam a base de uma pirâmide que movimenta milhões e milhões de dólares. Efetivamente, o domínio aqui é o do excesso.
      Engana-se, porém, quem associa o excesso das cifras mercadológicas ao excesso sexual que se reconhece como pedra de toque dos grandes títulos do erotismo literário. Nada a ver, portanto, com um romance como "História de O" (Ediouro), que causou furor ao ser lançado, em 1954, cativando tanto o público quanto a crítica.
      Assinado por Pauline Réage, pseudônimo da misteriosa Dominique Aury, o livro escandalizou ao pôr em cena uma heroína que se abandona ao papel de escrava sexual para se precipitar no absoluto de um êxtase que nem a morte consegue deter. Visto por muitos como um texto místico e não raro comparado aos escritos de Santa Teresa d'Ávila, "História de O" é um exemplo acabado daquela literatura erótica perturbadora, que produz em nós um imperioso deslocamento sensível e mental. Nada a ver, mesmo, com a tosca trilogia de E.L. James, que não tira nada nem ninguém do lugar.
      O conto de fadas da mocinha virgem que se apaixona pelo milionário altivo e bonitão repete uma velha fórmula que responde aos anseios femininos de uma paixão impossível e avassaladora. Sob um discreto "décor" de luxo, a ingênua Anastasia se vê capturada pelos encantos do jovem empresário Christian Grey, que lhe retribui o interesse com demonstrações de amor pouco ortodoxas.
      É ele quem decide desde os livros que ela, estudante de letras, deve ler, até as maneiras ousadas de como deve "explorar sua sensualidade e seus limites". É também ele a decidir que as práticas necessárias a tal exploração devem ser seguras e consensuais, como manda o figurino, e que a relação de ambos deve ser pautada pelos termos de um contrato, como manda sua condição social. Com hierarquias e regras das mais convencionais, o enredo chega a ser puritano e, não fossem as tais cenas de sexo, seria de perguntar qual a novidade que ele traz.
      Acontece que, até agora, a literatura "adulta" de grande público era destinada exclusivamente ao leitor masculino, a exemplo do que sempre ocorreu com revistas pornográficas e outras edições do gênero. Talvez E.L. James seja a primeira escritora de massa que, sem motivações feministas, tenha destinado ao leitorado feminino uma ficção, narrada por uma mulher, em torno do sexo explícito e até mesmo "hardcore".
      Vale insistir, pois, que o livro nada tem em comum com tentativas passadas de criar uma pornografia, digamos, "libertária", a começar por aquela voga de publicações focadas na conquista da "liberação sexual" que rendeu títulos populares nos anos 1970, como "O Relatório Hite", "A Mulher Sensual" ou "The Joy of Sex". Prova disso é que não há nem sequer uma linha que evoque aquela "sexualidade feminina" reclamada pelas herdeiras de Simone de Beauvoir e muito menos aquela "escrita erótica feminina" exaltada pelas seguidoras de Anaïs Nin.
      A bem da verdade, esse diferencial não constitui um problema em si, e a iniciativa seria bem-vinda se implicasse a superação de certas palavras de ordem do feminismo, já bastante gastas. Longe disso, porém, a equação que o romance coloca é de outro naipe.
      PODER
      Se a grande novidade está no combinado de ingredientes picantes e sentimentais que dá às leitoras de hoje acesso à velha "leitura reservada aos homens", as razões de seu sucesso não se esgotam aí. Nas entrelinhas, "Cinquenta Tons" sugere também um estranho desejo, que parte das mulheres, de refletir sobre os jogos de poder nas relações amorosas.
      No centro da trama está a relação entre o macho dominador e a fêmea submissa. Diversamente dos orgasmos, que são frequentes e múltiplos, o "happy ending" prometido a cada página, e a cada volume, é sempre postergado por causa de um grande segredo que viria a explicar as taras do herói e alçaria enfim os pombinhos à felicidade almejada. Enquanto isso não acontece, o par se abandona às incansáveis cenas eróticas que desfilam, uma a uma, diante do leitor e progridem em paralelo à sujeição da heroína.
      Seria demasiado simples ver aí apenas a confirmação da desigualdade entre os sexos. Ao colocar a simbólica repressão feminina a serviço do desejo, a trilogia transfere as tradicionais imagens da submissão para o obscuro plano da fantasia, no qual se revela o tempo forte da personagem e de suas leitoras. Talvez se possa pensar numa nostalgia de certa feminilidade que já não tem lugar no mundo atual, ou então numa curiosidade sobre o papel "passivo" que ficou interditado a um grande contingente de mulheres urbanas nos últimos tempos.
      Nada garante, porém, que haja aí uma intenção de volta para trás, pois o devaneio erótico sempre pode representar o negativo das experiências sexuais que essas mesmas mulheres vêm vivendo com seus parceiros. Se assim for, ganha particular sentido o fato de que o sadomasoquismo seja completamente romantizado na trama.
      Ora, que delícias um príncipe encantado sádico pode reservar ao público feminino contemporâneo?
      Antes de tudo, é de se crer que ele possa prometer um mar de sensações ao qual esse público não deve ser insensível. Mais importante, porém, é o fato de que sua persona ostenta todos os requisitos necessários para engendrar a fantasia de uma entrega total, fusional e sem reservas. Como, então, interpretar a improvável virgindade da heroína, senão por sua deliberação de se guardar para uma experiência desse quilate, sonhando com o dia em que forçosamente se abandonaria às mãos de um homem todo-poderoso?
      Escusado dizer que, se as leitoras se identificam com a casta Anastasia, não é por compartilharem de sua condição, mas precisamente porque, nessa condição inverossímil, ela pode lhes oferecer a imagem de uma entrega absoluta cada vez menos provável nas relações amorosas. De outro lado, o herói também se propõe como peça-chave desse imaginário, já que sua impassível figura impõe um desafio de grande porte para a mulher moderna: afinal, conseguir dobrá-lo pode ser um troféu e tanto, seja para provar o infalível "poder feminino", seja para provar o infalível "poder do amor".
      Há muita ambiguidade aí e, por certo, ela diz respeito às ambiguidades que envolvem as tramas de amor e de poder entre os sexos na sensibilidade contemporânea. Se já não é mais tão fácil saber "quem domina quem" ou "quem se submete a quem", muito menos é adequar o sonho da entrega amorosa às exigências de um individualismo cada vez mais implacável. O problema dos limites revela-se crucial e não há respostas prontas para a interrogação que fica pairando no ar: até onde se pode ir?
      IMPASSES
      Até onde ir? --esta é, com efeito, a questão nodal de "Cinquenta Tons". Formulada em termos puramente sexuais no desenrolar do enredo, a pergunta torna-se uma metáfora potente dos impasses da vida amorosa nos dias de hoje. Daí que a inquietação da personagem ecoe tão profundamente no espaço da leitura. E isso talvez seja o que há de mais interessante neste livro tão pouco interessante, rendido aos clichês mais óbvios do romantismo pop.
      Tome-se, a título de exemplo, uma das cenas finais do primeiro volume, quando a heroína é amarrada a uma cama de quatro colunas e vendada com uma máscara. "Ah, seu toque provoca um estremecimento delicioso. [...] nossa... já estou a ponto de explodir. Por que isso é tão erótico?"
      Já algemada, a jovem tem seu corpo percorrido por uma luva de pele à qual se seguem as tiras do açoite, que lhe rendem "uma agonia doce", num crescendo que progride conforme a música ambiente: "O coro recomeça... mais forte, mais forte, e ele me dá uma saraivada de golpes... e gemo e me contorço. Mais uma vez, o coro cessa e tudo fica em silêncio... a não ser minha respiração descontrolada... e meu desejo descontrolado. Por... ah... o que está acontecendo? O que ele vai fazer agora?"
      Mais uns parágrafos nessa lenga-lenga e "ele recomeça a se movimentar... saindo e entrando..." e "vai aumentando o ritmo. Acompanhando a intensidade da peça coral com uma precisão infinitesimal --é muito controlado... está totalmente no compasso da música. E eu não consigo suportar mais".
      A passagem, aqui bem resumida, ocupa seis páginas do erotismo romântico mais chinfrim, nas quais o frenesi exclamatório só perde para a volúpia das reticências, num festival de repetições e de gerúndios que, por si só, denunciam o valor do novo folhetim.
      Em que pese a nota erudita do jovem sádico --ao ensinar sua discípula que a música é "um moteto para quarenta vozes de Thomas Tallis"--, sua escolha de acessórios SM faz jus ao texto, recaindo sobre os produtos mais batidos do mercado sexual, como algemas, máscaras, luvas e chicotes. Tudo trabalha para acomodar Eros aos mais estreitos limites do realismo.
      Estranha, pois, que o livro seja às vezes comparado aos clássicos literários do sadismo e do masoquismo --que, diga-se de passagem, jamais se juntam numa só palavra. Ao inconcebível teatro das paixões que a literatura de Sade oferece aos seus leitores, expondo diante deles um erotismo sem freios nem fronteiras, se opõem as desbotadas fantasias desses "tons de cinza", que se rendem não só aos signos mais óbvios do consumismo como também às bagatelas da ideologia do "politicamente correto".
      Testemunho disso dá o contrato que o milionário "negocia" com a universitária, cujas cláusulas supõem tanto a frequentação de salões de beleza, a contratação de um personal trainer e a compra de roupas quanto a observação de "procedimentos de segurança" que protegem a jovem contra danos "físicos, mentais, emocionais, espirituais ou outros" (sic). Aqui até mesmo as perversões se submetem a uma orientação "correta", reiterada nas pautas higiênicas (como a interdição de manipular excrementos) e mesmo ecológicas (como a proibição do sexo com animais) que os libertinos sadianos tanto gostam de subverter.
      Não pense o leitor que a impossibilidade de aproximar E.L. James a Sade vá conduzi-la diretamente aos braços de Léopold von Sacher-Masoch, também invocado como um dos inspiradores do best-seller. Convém recordar que, se o livro do escritor austríaco se vale igualmente de um contrato entre algoz e vítima, não é jamais para restringir as atividades da dominadora para com seu fiel servo, mas antes para ampliá-las ao infinito.
      Ao se dirigir à sua senhora, o protagonista de "A Vênus das Peles" (Hedra), de 1870 se oferece como o mais servil dos escravos: "Sem qualquer limite, tua propriedade, sem vontade, para que disponhas de mim a teu bel-prazer, e que disso não tenhas o menor arrependimento. Enquanto saboreias a vida em todas as suas nervuras, enquanto desfrutas em opulento luxo da serena felicidade, do amor do Olimpo, eu gostaria de calçar e descalçar seus sapatos". Sem limites nem "procedimentos de segurança", o contrato não exclui nem mesmo a morte do submisso.
      De fato, tais comparações nos colocam diante de continentes distintos, um completamente estranho ao outro. Entre o desejo de absoluto que preside a erótica de um Sade ou de um Sacher-Masoch e o desejo de inclusão que orienta o imaginário da tola trilogia não há um só ponto em comum.
      Bem adequados à sensibilidade contemporânea, os romances da autora inglesa e seus congêneres jamais criam um mundo sexual autônomo, onde prevalecem os desregramentos da imaginação, mas antes preferem conformar suas fantasias ao que está na ordem do dia. Daí que seu apelo "sadomasoquista" faça eco tanto à parafernália dos "sex shops" quanto ao erotismo radical e previsível dos clubes SM, que são frutos da mesma demanda de inclusão evidenciada no best-seller.
      Tudo leva a crer, portanto, que o sucesso dos "soft porn" também responde aos anseios de uma época em que certa ideia de marginalidade perdeu seu poder de fogo e igualmente seu glamour. Cultivado por muitos escritores que se dedicaram à erótica literária --de Jean Genet a Henry Miller, de Bukowski a Roberto Piva--, o desejo de estar à margem da sociedade, de ficar fora do "sistema", parece reunir cada vez menos adeptos.
      O marginal, vestido de bom moço, vem cedendo lugar ao excluído e, em vez da transgressão, o que ele reivindica agora é sua inclusão. Desnecessário dizer que, uma vez "incluído", o sexo fica esvaziado da sua capacidade de perturbação, do seu poder de desvio e, sobretudo, da sua vocação subversiva.
      O que sobra é pouco: uma sexualidade conformada às exigências da ordem social; um erotismo reduzido às demandas da utilidade. Impossibilitados de recorrer ao absoluto de seus imaginários, sádicos e masoquistas devem se dar as mãos para formar um par e, de quebra, serem felizes para sempre.
      Eis a promessa do casal Grey e Anastasia: perfeitamente adaptados ao jogo dos papéis sociais, eles enfim brindam o "sadomasoquismo" com seus porta-vozes ideais. Não por acaso, isso ocorre num momento em que a prática da transgressão vem sendo cada vez mais normalizada pelo mercado.
      Nessa economia, como se vê, muita coisa se perde. Para começar, perde-se a possibilidade de contemplar o vazio que fundamenta todo excesso erótico genuíno. A saber, o vazio primordial que está na origem da nossa existência, da nossa imaginação e das nossas fantasias mais singulares, já que não há criação que prescinda de um espaço em branco inaugural.
      Nesse sentido, a trilogia de E.L. James pode ser alinhada a um empenho obstinado da indústria cultural para saturar, até a exaustão, esse vazio, alienando-nos do contato com seus perigos, seus horrores e também suas maravilhas. Ao reiterar os apelos sexuais que não cessam de nos assediar, condenando o erotismo à plena visibilidade, a tralha midiática oferece um repertório fechado e pronto de imagens, que funciona como um fast food do sexo. Mas isso ainda não esgota a questão.
      Se livros como os de Sade ou de Sacher-Masoch tendem a gerar resistências --e, não raro, desistências--, isso acontece porque, aos olhos de quem os lê, eles parecem insuportáveis. Parecem e efetivamente o são --e por isso mesmo, quando lidos, produzem um deslocamento fundamental em seus leitores. Afinal, só consegue vencer a resistência quem aceita sair da zona de conforto. E isso beira o insuportável quando se trata dessa literatura, que nada tem de palatável e muito menos de "soft".
      De fato, os artífices do excesso não douram a pílula: insistem em mostrar o horror como horror, não importa a qualidade de prazer que seus personagens possam tirar dele. Em suma, por mais absurdas que sejam as paixões descritas nesses textos, por mais que elas se associem ao sofrimento, seus autores nunca a esvaziam de uma gravidade essencial.
      É precisamente essa gravidade que se perde na pornografia leviana de "Cinquenta Tons". E é ela, obviamente, que nunca comparece na platitude dos discursos de seus protagonistas, como a seguinte fala do professoral Mr. Grey: "Há uma linha muito tênue entre prazer e dor, Anastasia. São os dois lados da mesma moeda, e não há um sem o outro. Posso lhe mostrar quão prazerosa pode ser a dor".
      Poupemos o leitor do restante da passagem: não é difícil perceber que os lugares-comuns operam aí no sentido de neutralizar a gravidade do enunciado, trivializando-o ao máximo. A alusão aos "dois lados da mesma moeda" confere certa naturalidade aos intercâmbios entre o prazer e a dor, enquanto a "linha tênue" sugere uma leveza no mínimo suspeita. Tudo concorre para simplificar o que não pode, nem deve, ser simplificado.
      Nunca é demais lembrar, pois, que a ideia do sofrimento como fonte de prazer sempre pode sensibilizar espíritos menos bem-intencionados que o mocinho sádico e a ingênua masoquista do best-seller. É de temer, inclusive, que a simplificação desse discurso acabe caindo em mãos erradas e sirva a interesses escusos, ainda mais num mundo em que mulheres são espancadas em casa, e gays nas ruas. Afinal, o que deixa de inquietar já está a meio caminho de se tornar "natural". E o que deixa de ter gravidade está apenas a um passo de se banalizar.
      Serão esses os efeitos colaterais da inofensiva leitura da nova pornografia romântica? Talvez. E talvez, no fundo, a expressão "mummy porn" queira realmente dizer que os perversos da hora estão pedindo o colo da mamãe, mas sem jamais colocar em questão o jugo do papai. Resta saber o que tudo isso tem a ver com aquela erótica militarizada que, poucos anos atrás, fez a festa de um bando de rapazes e mocinhas que se entediava nos sombrios corredores de Abu Ghraib.
      -
      "História de O" é um exemplo acabado daquela literatura erótica perturbadora, que produz em nós um imperioso deslocamento sensível e mental
      Talvez se possa pensar numa curiosidade sobre o papel "passivo" que ficou interditado a um grande contingente de mulheres urbanas nos últimos tempos
      Estranha que a trilogia seja comparada aos clássicos literários do sadismo e do masoquismo --que, diga-se de passagem, jamais se juntam numa só palavra
      Tudo leva a crer que o sucesso dos "soft porn" responde aos anseios de uma época em que certa ideia de marginalidade perdeu seu poder de fogo e seu glamour
      Se Sade ou Sacher-Masoch tendem a gerar resistências --e, não raro, desistências--, isso acontece porque, aos olhos de quem os lê, eles parecem insuportáveis

        Vinicius Torres Freire

        folha de são paulo

        Grito do Ipiranga na China
        Meta do Brasil é crescer como a China até o bicentenário da Independência, sugere Dilma em campanha
        QUAL É o nosso objetivo? Nosso, dos brasileiros, deste país? Se perguntarem a Dilma Rousseff, ela dirá que é dobrar a nossa renda per capita. Foi o que a presidente contou na sexta-feira, quando entregava um kit (sic) de motoniveladoras, retroescavadeiras e caminhões-caçamba para prefeitos gaúchos.
        Quando a renda média terá dobrado? Como a presidente usa o método confuso de discursar, ficou meio difícil de saber (leia a transcrição oficial do discurso no final desta coluna). Parece que a nossa meta é dobrar a renda per capita até 2022, quando o Grito do Ipiranga de Pedro 1º faz 200 anos.
        É fácil ver que isso não faz o menor sentido. Seria necessário que a economia brasileira crescesse ao ritmo de quase 9% ao ano para que a nossa renda média dobrasse até 2012, dadas as estimativas de aumento da população até lá e o fato de que o PIB deste terceiro ano de Dilma vai crescer uns 3%.
        O Brasil precisaria, pois, crescer tanto quanto a China a partir do ano que vem e continuar nessa toada até 2022. Mas este país jamais cresceu tão rápido assim numa década. Passou raspando nos dez anos contados até 1976, quando a renda per capita crescera 87,5%, depois de anos de "milagre econômico". Milagre, ressalte-se.
        Para insistir uma última vez na aritmética do devaneio, a renda média do Brasil deveria crescer entre 7,5% e 8% ao ano. No governo Lula, cresceu em média 2,8% ao ano. Sob Dilma, menos ainda.
        Países de renda média, tal como o Brasil, não crescem a 8% ao ano por uma década. É mais fácil acelerar quando se é mais pobre. Mesmo na Coreia do Sul, um caso de sucesso extraordinário, o crescimento da renda per capita desceu a ainda excepcionais 5% ao ano quando os coreanos andavam com a mesma renda média do Brasil de hoje.
        Porém, saímos da picuinha aritmética para um absurdo socioeconômico quando nos comparamos à Coréia do Sul. Os motivos do crescimento econômico ainda são meio misteriosos, mas sabe-se mais ou menos o que não dá certo.
        O governo do Brasil paga os juros mais altos do mundo sobre uma dívida que não vale tal pena: que não dá retorno. Numa lista de 137 países, em 2010 o Brasil aparecia em 84º no que diz respeito aos anos de estudo de maiores de 25 anos. Estamos entre os dez países mais desiguais. Somos um dos mais violentos do mundo (em homicídios).
        O disparate maior da meta "o dobro em uma década" é enfim político. Qual o programa para, numa década, darmos cabo das nossas maiores aberrações? Não há.
        Não é possível que Dilma acredite nessa história da dobradinha numa década. Isso é conversa de campanha eleitoral. Mas vai ser ruim assim a sua propaganda?
        Enfim, o discurso de Dilma: "Daqui a alguns anos nós comemoraremos os 200 anos da nossa independência. E nesse dia nós vamos ter que olhar para trás e ver o que fizemos para construir a nossa soberania, o nosso desenvolvimento e o bem-estar do nosso povo. E aí, se vocês perguntarem para mim: qual é o nosso objetivo? O nosso objetivo é dobrar a nossa renda per capita. É esse o objetivo deste país. Ele se mede, fundamentalmente, pela renda per capita da nossa população. É essa a medida e o metro que nós devemos usar".

          MARTHA MEDEIROS - Simples, fácil e comum

          Zero Hora - 14/04/2013

          Tenho mergulhado numa questão que parece prosaica, mas é de importância vital para melhor conduzirmos os dias: por que as pessoas rejeitam aquilo que é simples, fácil e comum?

          O mundo evolui através de conexões reais: relacionamentos amorosos, relacionamentos profissionais e relacionamentos familiares – basicamente. É através deles que nos enriquecemos, que nossos sonhos são atingidos e que o viver bem é alcançado. No entanto, como nos atrapalhamos com essas relações. Tornamos tudo mais difícil do que o necessário. Estabelecemos um modo de viver que privilegia o complicado em detrimento do que é simples. Talvez porque o simples nos pareça frívolo. Quem disse?

          Não temos controle sobre o que pode dar errado, e muita coisa dá: a reação negativa diante dos nossos esforços, o cancelamento de projetos, o desamor, as inundações, as doenças, a falta de dinheiro, as limitações da velhice, o que mais? Sempre há mais.

          Então, justamente por essa longa lista de adversidades que podem ocorrer, torna-se obrigatório facilitar o que depende de nós. É uma ilusão achar que pareceremos sábios e sedutores se nossa vida for um nó cego. Fala-se muito em inteligência emocional, mas poucos discutem o seu oposto: a burrice emocional, que faz com que tantos façam escolhas estapafúrdias a fim de que pelo menos sua estranheza seja reconhecida.

          O simples, o fácil e o comum. Você sabe do que se trata, mas não custa lembrar.

          Ser objetivo e dizer a verdade, em vez de fazer misteriozinhos que só travam a comunicação. Investir no básico (a casa, a alimentação, o trabalho, o estudo) em vez de torrar as economias em extravagâncias que não sedimentam nada. Tratar bem as pessoas, dando-lhes crédito, em vez de brigar à toa. Saber pedir desculpas, esclarecer mal-entendidos e limpar o caminho para o convívio, ao invés de morrer abraçado ao próprio orgulho. Não gastar seu tempo com causas perdidas.

          Unir-se a pessoas do bem. Informar-se previamente sobre o que o aguarda, seja um novo projeto, uma viagem, um concurso público, uma entrevista - preparar-se não tira o gostinho da aventura, só potencializa sua realização.

          Se você sabe que não vai mudar de ideia, diga logo sim ou não, para que enrolar? Cuide do seu amor. Não dê corda para quem você não deseja por perto. Procure ajuda quando precisar. Não chegue atrasado. Não se envergonhe de gostar do que todos gostam: optar por caminhos espinhentos às vezes serve apenas para forçar uma vitimização. O mundo já é cruel o suficiente para ainda procurarmos encrenca e chatice por conta própria. Há outras maneiras de aparecer.

          Temos escolha. De todos os tipos. As boas escolhas são divulgadas. As más escolhas são mais secretas e, por isso, confundidas com autenticidade, fica a impressão de que dificultar a própria vida fará com que o cidadão mereça uma medalha de honra ao mérito ao final da jornada. Quem acredita que o desgaste honra a existência, depois não pode reclamar por ter virado o super-herói de um gibi que ninguém lê.

          Danuza Leão

          folha de são paulo

          O medo, o luxo, a PEC
          Nos dias de hoje é preciso ter cuidado, há quem fique a favor de qualquer invasão, quando ouve falar em luxo
          Tem dias que a gente acorda e fica com medo; isso me aconteceu esta semana.
          Tive medo quando vi as fotos dos índios que invadiram o hotel Fazenda da Lagoa, no sul da Bahia. Há pouco tempo, um ou dois meses, conheci o hotel, através de um programa de TV sobre arquitetura; o local parecia o paraíso sobre a terra.
          Era mesmo muito bonito, e dizer que era um hotel de luxo é maneira de falar; na verdade, os bangalôs, a decoração feita apenas com o artesanato local, os jardins, era tudo que podia haver de mais simples e mais brasileiro, e de um enorme bom gosto, o que o tornava luxuoso, no sentido puro da palavra (nos dias de hoje é preciso ter cuidado com esta palavra, pois há quem fique a favor de qualquer invasão, quando ouve falar em luxo).
          Saber que uma propriedade foi invadida traz insegurança, e fico pensando no que deve ter sido para os donos que trabalharam dez anos para fazê-lo admirado no mundo todo. A Funai fez com que os índios saíssem do hotel, mas e se eles voltarem, qual a solução? Botar um bando de seguranças em volta do hotel, no meio dos coqueiros?
          Por mais que o mundo seja hostil, não há refúgio que nos pareça mais seguro do que nossa casa, seja ela um castelo ou um casebre; é nela que nos sentimos protegidos, e quando se imagina que esse espaço pode ser violado, vem o grande medo.
          Já me aconteceu: há muitos anos, cheguei em meu apartamento e encontrei-o todo revirado; tinha sido assaltado. Foi terrível ver minhas gavetas abertas, minha cama usada, a casa toda mexida. O roubo não teve importância, diante da violência que foi a invasão de minha casa.
          E agora vamos a meu assunto predileto, atualmente: a PEC das domésticas, e são duas historinhas verdadeiras. Uma amiga foi contratar uma empregada, e se surpreendeu com a proposta da candidata: por razões pessoais, ela propôs um horário de 16h às 21h.
          Minha amiga ficou radiante: ela sai de casa para o trabalho às 10h e chega, dependendo do trânsito, entre 18h e 19h. Assim, teria quem lhe preparasse um jantarzinho, mas aí, pensou, seria hora extra noturna o que para ela seria muito caro.
          A pretendente ao emprego só estava disponível nesse horário, e como não encontrava trabalho, abriu mão da hora extra noturna, só queria um bom salário. Se acertaram, mas aí criou-se o problema. Segundo a PEC, mesmo as duas partes estando de acordo e assinando um contrato, não pode, pois fica fora da lei. E agora?
          Outro caso: um casal muito muito rico, tem duas empregadas há uns 15 anos, que dormem no emprego. Quando veio a PEC, a dona da casa -que não suporta a ideia de ter um livro de ponto em casa, e ao mesmo tempo quer ter o direito de pedir um chá às 10h da noite-, fez as contas com o contador, soube o quanto lhe custaria pagar as horas extras, e chamou as duas para conversar.
          Nenhuma delas queria virar diarista, pois estavam gostavam do emprego e tinham, cada uma, seu quarto confortável, ar condicionado e televisão; foi combinado, então um bom aumento. Os principais direitos elas já tinham, foi então acrescentado o FGTS, e como nenhuma das duas pretendia ter filhos, os auxílio creche e maternidade estavam fora da questão.
          O que o empregador não aceitava era se sentir vigiada pelo Grande Irmão, de George Orwell, a cada vez que pedisse um chá às 10h da noite. As partes se acertaram, mas talvez estejam vivendo na ilegalidade.
          Tenho a impressão que o governo está interferindo um pouco mais do que o tolerável na relação entre empregado e empregador no trabalho doméstico.
          P.S.: O prefeito do Rio inventou uma multa altíssima para quem jogar um só amendoim nas ruas da cidade.
          Quem comprar um chiclete no jornaleiro vai ter que engolir o papel, pois as (poucas) latas de lixo do Rio são do tamanho de uma sacola Chanel.

          Patrulha mirim - Em SP, 45% das crianças estão acima do peso

          folha de são paulo

          Estudo mostra que orientações sobre estilo de vida saudável transmitidas às crianças provocam mudança nos hábitos dos pais
          CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULO"Ele virou o fiscal da casa, presta atenção no que comemos e se estamos praticando atividade física. Mas ainda resiste em comer frutas e verduras", diz o analista de sistemas Fábio Guedes, 46.
          O "fiscal" é o filho Vinícius, 11, uma das 197 crianças que participaram de um projeto educacional inédito que avaliou o poder de persuasão dos alunos na mudança de hábitos dos pais e na adoção de um estilo de vida saudável.
          A conclusão é que, sim, a estratégia dá certo. Os pais reduziram os riscos cardiovasculares, calculados sobre fatores como obesidade, tabagismo, colesterol, pressão alta e diabetes.
          Fábio e sua mulher, Mônica, por exemplo, cortaram as massas e passaram a fazer hidroginástica duas vezes por semana. Tiveram, com isso, redução das medidas.
          O estudo foi feito em uma escola privada de Jundiaí (SP) e publicado na revista científica "European Journal of Preventive Cardiology". Na terça-feira (16), o trabalho será apresentado em um fórum de cardiologia em Roma.
          "Fomos premiados na Europa e nos EUA. Até a China quis conhecer a nossa experiência. Mas aqui a repercussão foi zero", queixa-se o cardiologista Bruno Caramelli, pesquisador do InCor (Instituto do Coração) e coordenador do trabalho.
          ORIENTAÇÕES
          O projeto envolveu alunos com idades entre 6 e 10 anos e seus pais. Eles foram divididos em dois grupos, com duas abordagens distintas.
          Pais de estudantes do período da manhã (grupo-controle) receberam folhetos educativos com orientações sobre alimentação saudável e a importância de realizar atividades físicas. Seus filhos não receberam informações.
          Os pais dos alunos da tarde também receberam os folhetos, mas os filhos assistiram a palestras sobre prevenção cardiovascular. Nutricionistas ensinaram como seguir uma alimentação saudável e fisioterapeutas explicavam a importância dos exercícios.
          "Em momento algum foi dito às crianças para cobrarem dos pais essas atitudes saudáveis", explica a cardiologista Luciana Fornari, autora principal do estudo.
          Os dois grupos passaram por exames e medidas de peso, altura e pressão arterial.
          Ao final de um ano, 91% dos pais do grupo da intervenção deixaram o estágio de alto risco com relação às doenças cardiovasculares. Já a diminuição entre os pais do grupo-controle foi de 13%.
          "Quando os conceitos são passados de forma divertida, as crianças os incorporam e cobram mudanças da família", afirma Luciana.
          A iniciativa agora está sendo replicada em duas escolas públicas de Campo Limpo Paulista (SP). Participam dele cerca de 500 crianças e mil pais. A proposta é ver, a longo prazo, se o efeito das mudanças será duradouro.
          No projeto em Jundiaí, algumas delas não foram. "Na época do programa, caminhávamos todos os dias, éramos estimulados. Agora falta tempo", diz Sueli Razzé, 47, mãe da aluna Natalie, 13.
          Sem atividade física, o marido engordou três quilos e a filha, um. "Sem incentivo permanente, é difícil manter."
          Já alguns dos bons hábitos alimentares permanecem. "Cortei as frituras e quase não faço mais doces", conta.

            Em SP, 45% das crianças estão acima do peso
            DÉBORA MISMETTIEDITORA DE "CIÊNCIA+SAÚDE"Quase a metade das crianças e dos adolescentes paulistanos está acima do peso, de acordo com uma pesquisa que tirou medidas de 476 jovens em mutirões em parques, estações de metrô e escolas estaduais.
            Dados nacionais da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), divulgados em 2010 pelo IBGE, mostram que, no país, um terço das crianças de 5 a 9 anos está acima do peso. No Sudeste, a proporção é maior, de 40%.
            O estudo faz parte do programa de reeducação alimentar "Meu Pratinho Saudável" que, em São Paulo, tem o apoio do governo estadual.
            Ana Paula Alves, coordenadora da divisão de nutrição do Instituto da Criança do HC, afirma que o objetivo do programa é orientar crianças sobre como montar uma refeição saudável.
            O ideal, segundo o projeto, é preencher metade do prato com verduras e legumes, um quarto com carboidratos e dividir o restante entre proteína e leguminosas, como feijão e lentilha.
            Em um projeto-piloto desenvolvido em uma escola estadual de São Paulo, a nutricionista conta que os estudantes usaram peças de resina imitando os alimentos para mostrar como montariam seus pratos.
            "Era sempre metade ou mais de arroz e feijão. Verdura nem aparecia. Elas diziam: Meu pai não compra, meu pai não gosta'. Como você vai falar da importância disso se você não consome?"
            O objetivo, diz Alves, é levar a informação às escolas, passando os conceitos também para o corpo docente.
            A experiência das escolas nos EUA, onde os índices de obesidade são ainda mais altos que os brasileiros, mostra que, se houver uma política consistente, é possível obter resultados positivos.
            Pesquisas recentes mostraram que grandes cidades americanas conseguiram reduzir, ainda que discretamente, os índices de obesidade infantil. Em Nova York, entre 2007 e 2011, o número de crianças obesas caiu 5,5%.
            Especialistas ligaram a tendência aos esforços de escolas como as da Filadélfia --onde a obesidade caiu 5% no período--, que proibiram a venda de bebidas açucaradas e cortaram as frituras.

              Marcelo Gleiser

              folha de são paulo

              Quão rara é a vida no Universo?
              Satélites querem identificar planetas parecidos com a Terra, mas a ciência mostra que somos raros e valiosos
              NESTA SEMANA, a agência espacial americana Nasa autorizou a construção de um satélite caçador de planetas parecidos com a Terra, mas que giram em torno de estrelas distantes. Com o nome de Tess (do inglês "Transit Exoplanet Survey Satellite"), ele identificará a ligeira queda da luz estelar provocada pela passagem de um planeta à frente de uma estrela, o método do "trânsito", e deverá ser lançado em 2017.
              Kepler, a missão atual, usa o mesmo método e vem identificando milhares de potenciais planetas e confirmando centenas deles. Tess buscará planetas em uma região bem mais ampla do céu, focando em estrelas mais brilhantes.
              Com isso, cientistas esperam identificar planetas mais parecidos com a Terra. A questão é saber quão raro é o nosso planeta, já que a maioria das estrelas tem planetas orbitando à sua volta.
              Nossa galáxia, a Via Láctea, tem em torno de 200 bilhões de estrelas. Se pelo menos metade delas tem planetas e se, em média, estrelas têm em torno de quatro planetas, chegamos a 400 bilhões de planetas só na nossa galáxia.
              Como não só planetas mas também suas luas podem ter condições favoráveis à vida, o número pode chegar a um trilhão de mundos. Sabemos que ao menos um planeta nesse trilhão tem vida. Quantos outros podem ter? Milhões? Centenas? Nenhum?
              Parte da resposta depende justamente da frequência com que planetas rochosos como a Terra aparecem dentro da "zona habitável", a região em torno de uma estrela onde planetas e luas podem ter água líquida. A complicação é que certas luas fora dessa zona podem ter água líquida, como é o caso de Europa, a lua de Júpiter, que tem um oceano com quatro vezes mais água do que todos os oceanos da Terra, sob uma camada de gelo de dois quilômetros de espessura.
              Portanto, um otimista diria que o Universo é cheio de vida, que é questão de tempo até acharmos algum sinal disso. Afinal, com tantos planetas e luas por aí... Só que a vida é algo muito complexo. O primeiro passo --reações químicas que de alguma forma geram vida da não vida-- não é algo trivial. Tanto que não temos a menor ideia de como repeti-lo no laboratório.
              Missões como Kepler e Tess poderão até identificar traços de substâncias ligadas à vida na atmosfera de exoplanetas, como o ozônio e o oxigênio. Se isso ocorrer, teremos evidência de que a vida pode existir por lá. E é muito provável que algum tipo de vida simples exista em outros mundos.
              Mas se você for um entusiasta de inteligências extraterrestres, a coisa fica bem mais difícil. Da vida simples aos seres multicelulares --e destes aos inteligentes--há muitos obstáculos que dependem dos detalhes da história do planeta.
              Junte a isso a ausência de contato com "eles" e vemos que provavelmente estamos sós. Se não sós, ao menos isolados neste canto da galáxia. O que significa que somos raros e valiosos. Essa é uma das grandes revelações da ciência atual. Basta o mundo se convencer disso e começar a mudar.

                O polêmico Dr. Sêmen - Diogo Bercito

                folha de são paulo


                Médico palestino diz que trafica esperma de presos para fecundar suas mulheres, que confirmam ter engravidado dessa forma; Israel afirma que o contrabando é difícil, mas não impossível
                DIOGO BERCITOENVIADO ESPECIAL A NABLUS (CISJORDÂNIA)O palestino Ammar al Ziben, 38, está detido há 16 anos em Israel. Cumpre 27 sentenças de prisão perpétua e está proibido de receber visitas íntimas.
                Ammar dizia à mulher, separado dela por um vidro, que já se considerava morto, incapacitado de dar continuidade à linhagem familiar.
                Até que um recente esquema de contrabando de esperma e fertilização in vitro culminou, segundo o médico responsável, no nascimento de um pequeno garoto chamado Muhannad. Seu filho.
                Seria o resultado de uma amostra de sêmen traficada de dentro de uma prisão para um laboratório, desafiando as autoridades penitenciárias israelenses.
                Mas o garoto é também fruto da defesa do médico Salim Abu Khaizaran, 56, de que é preciso mitigar o que considera o drama familiar dos mais de 4.700 prisioneiros palestinos em Israel.
                "Somos uma sociedade conservadora e gostamos de ter filhos", diz à Folha. "Há uma pressão muito grande sobre as mulheres. Em alguns casos, se o marido é solto, elas já não estão mais no período fértil e têm de aceitar que ele se case de novo."
                A ideia de contrabandear sêmen dos palestinos partiu das lideranças presidiárias, que procuraram Abu Khaizaran para perguntar a ele se a fertilização seria viável do ponto de vista técnico.
                O médico, por sua vez, consultou as autoridades islâmicas para investigar se a fertilização seria aceita religiosamente. Seria, e um pronunciamento legal ("fatwa") foi emitido a seu favor.
                Foi a vez de Dallal al Ziben, mulher de Ammar, ir à clínica e pedir que Abu Khaizaran lhe ajudasse a realizar o sonho do marido: ter um filho. Antes da prisão, ele já tinha gerado duas meninas.
                DOR
                A ideia veio a Ammar em 2004, depois da morte de sua mãe, então em greve de fome pela libertação do filho. "Ele queria trazer uma pessoa à vida", diz Dallal, 32.
                "No começo eu estava hesitante. Pensava em como as pessoas iriam olhar para mim, grávida, sabendo que meu marido está na prisão."
                Encorajada pela família e pelo vilarejo de Maythalun, aceitou. Segundo ela, foram necessárias três tentativas, incluindo um fracasso na fertilização e um aborto natural. "Que ninguém pense que foi fácil. Foi muito doloroso, e não sei se faria de novo", diz.
                Muhannad foi recebido com alegria na vila, "como se fosse uma festa de casamento", conta. Para o marido, diz, significou uma razão para lutar pela soltura.
                Ammar foi preso em 1997, condenado pela acusação de treinar homens-bomba, de acordo com a sua mulher.
                Segundo o médico, outras oito mulheres estão grávidas após passarem pelo mesmo procedimento. Na clínica, diz Abu Khaizaran, existem mais de 60 amostras de esperma de prisioneiros palestinos congeladas.
                O médico e Dallal se recusaram a explicar de que maneira o sêmen é traficado e em que condições é retirado.
                Procurada pela Folha, a autoridade penitenciária israelense diz que o contrabando de sêmen na prisão seria "muito difícil" de ocorrer. Mas não impossível.
                "As condições de visita são restritivas, e só as crianças de até oito anos podem tocar os prisioneiros", diz a porta-voz Sivan Weizman. "Estão sempre sob vigilância."
                Mas as crianças não são revistadas ao sair.
                Weizman afirma que a proibição a visitas íntimas é por segurança. "Visitantes podem trazer outras coisas, como um telefone, uma arma", diz.
                TESTEMUNHAS
                No quesito técnico, a fertilização in vitro com o sêmen tirado da prisão seria também viável, de acordo com especialistas consultados pela Folha.
                Antes de congelar a amostra, Abu Khaizaran exige que duas testemunhas do marido e duas da mulher confirmem qual é a autoria do sêmen.
                Os prisioneiros palestinos são um dos assuntos-chave para a retomada das negociações entre árabes e israelenses. O presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, exige que parte dos detentos seja solta.
                Se para Israel eles são considerados terroristas, para palestinos os presidiários são encarados como heróis da resistência à ocupação.
                Quando morrem na prisão, eles são enterrados como mártires, caso no início do mês de Maysara Abu Hamdiyeh --vítima de um câncer de esôfago, pelo qual ele era tratado em hospital.
                O assunto estará especialmente em foco nesta semana. No dia 17, é relembrado o "dia do prisioneiro" nos territórios palestinos, e há manifestações programadas.
                "É uma questão emocional", diz Abu Khaizaran. "Somos uma comunidade pequena, e todos conhecem alguém que está na prisão."
                Ele afirma que não cobra pelos procedimentos médicos e que por causa disso tem grande prejuízo.
                Também afirma que recusa o apoio oferecido pelos grupos políticos Hamas e Fatah, pois não quer "politizar o assunto".
                "Que tipo de pessoa eu seria se pedisse dinheiro para essas famílias?"

                  SAIBA MAIS
                  Especialistas afirmam que método é viável
                  DO ENVIADO A NABLUSNão há detalhes de como é feito o transporte do sêmen entre a prisão e a clínica de Abu Khaizaran. Mas médicos ouvidos pela reportagem afirmam que, caso não haja longo tempo entre a ejaculação e o congelamento, a fertilização é tecnicamente viável.
                  "Um homem ejacula milhões de espermatozoides", afirma Dirceu Mendes Pereira, diretor da clínica Profert e conselheiro da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana. "Se [o congelamento] for feito após duas, três horas, é possível", diz.
                  A fertilização in vitro, método usado por Abu Khaizaran, é a técnica mais sofisticada na reprodução assistida. É feita em laboratório, inserindo um espermatozoide em um óvulo e, em seguida, o embrião no útero.
                  Nas condições descritas pela reportagem, Arnaldo Cambiaghi, médico do IPGO (Instituto Paulista de Ginecologia e Obstetrícia), diz que é possível que a fertilização tenha ocorrido.

                    Ministro palestino diz que governo dá apoio a iniciativa
                    DO ENVIADO A BELÉM (CISJORDÂNIA)Mesmo que haja desenvolvimento econômico e ampliação do controle palestino na Cisjordânia, "ainda assim, o processo de paz vai emperrar se nossos filhos continuarem detidos", diz Issa Qaraqe, ministro palestino de Assuntos de Cativos e Libertos.
                    Ele recebe a Folha em Belém para discutir essa questão que, afirma, "representa um valor cultural palestino".
                    "O povo tem um nível de identificação muito mais próximo com os prisioneiros do que com o muro e os assentamentos", afirma Qaraqe.
                    Procurada pela reportagem, a autoridade penitenciária israelense não quis comentar o caso específico de Yigal Amir, citado pelo ministro durante a entrevista.
                    Mas uma porta-voz confirmou que, ao contrário dos prisioneiros palestinos, o assassino de Yitzhak Rabin teve o direito de se casar na prisão e também de receber visitas íntimas da mulher.
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                    Folha - Um médico palestino diz que participa de esquema de contrabando de sêmen para engravidar mulheres de prisioneiros. O que o sr. pensa?
                    Issa Qaraqe - Apoio esse ato. Mas o processo ainda ocorre pelas costas das autoridades israelenses. Os prisioneiros transportam o sêmen secretamente. Se pegos, terão de enfrentar sentenças mais longas.
                    Qual é a importância política dos prisioneiros palestinos?
                    Eles representam um valor cultural. É um dos primeiros passos para criar uma paz justa. Manter palestinos nas prisões israelenses é sinal de que a ocupação dos territórios irá continuar.
                    A independência palestina está relacionada à prática da liberdade. Nosso esforço é representado pelos que estão atrás das grades das prisões.
                    Há um valor emocional?
                    Sim. A questão está relacionada ao sofrimento do povo e dos que têm conexões com os prisioneiros. Todo tipo de passo no processo político que ignore a liberdade dos prisioneiros não terá valor para a população.
                    Caso haja desenvolvimento econômico, caso áreas passem para controle palestino, --ainda assim o processo de paz vai emperrar se nossos filhos continuarem na prisão.
                    Palestinos chamam em árabe um homem preso de "cativo", e não "prisioneiro". Israel diz que são "terroristas". Há uma divergência de visões?
                    É claro. Os israelenses não os reconhecem como prisioneiros políticos; para eles, são criminosos. Como povo, consideramos esses homens guerreiros da liberdade. São pessoas que deram a vida pela causa. Nós nos recusamos a tratá-las como terroristas.
                    O sr. acredita que o tratamento a prisioneiros palestinos e israelenses seja igualitário?
                    Não. Existe discriminação. Os judeus são mais bem tratados. Yigal Amir [que assassinou o ex-premiê israelense Yitzhak Rabin em 1995] casou-se dentro da prisão e recebe visitas íntimas.

                    Clovis Rossi

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                    Deus vence pleito, mas não governa
                    A identificação com Chávez, alçado aos altares, pode dar para vencer hoje, mas não serve para administração
                    Marie Metz, enviada especial da revista "The Atlantic", faz uma comparação perfeita entre a campanha eleitoral de outubro de 2012, em que Hugo Chávez venceu Henrique Capriles, com a que termina hoje com o mesmo Capriles enfrentando Nicolás Maduro: "Em outubro de 2012, Hugo Chávez era um líder sem medo, um homem extremamente poderoso cujo carisma (e benefícios monetários) causavam a adulação de muitos. Hoje, Chávez não é mais esse homem. Ele é Deus".
                    Deus não pode perder eleição, o que significa teoricamente que Maduro, o representante de Chávez na Terra, pode considerar-se eleito.
                    Mas, se a deificação de Chávez é uma bênção para o ex-motorista de ônibus, será também um problema por uma coleção de motivos. O principal deles: Deus ganha eleição, mas não pode governar, a menos que se transforme em um "pajarito" que apareça diuturnamente no Palácio de Miraflores, a sede do governo, para soprar o que fazer.
                    É improvável que apareça, ao menos a julgar pelo que diz uma autoridade no tema, o arcebispo de Caracas, cardeal Jorge Urosa: "Chávez é um ser humano, como todos nós. Não pode ser comparado a Cristo".
                    Que um cardeal tenha que perder tempo com um, digamos, esclarecimento do tipo diz bem do clima de misticismo com que Maduro cercou a sua campanha. Espero que não acredite no que ele próprio diz, sob pena de termos um fanático enlouquecido governando um dos principais países da América Latina, ainda por cima membro do Mercosul, o bloco comercial que o Brasil gostaria de liderar.
                    A coleção de problemas para Maduro por seu abraço a "deus" Chávez começa na própria noite eleitoral: se o apadrinhado obtiver menos que os 8 milhões de votos conseguidos pelo padrinho em 2012, já será sinal de que nem todos os cidadãos cumpriram o juramento espalhado por toda Caracas: "Chávez, te lo juro, mi voto es para Maduro".
                    Pior ainda: no comício final, Maduro pediu 10 milhões de votos. Se não os conseguir, provará que seu apelo está longe de se equiparar ao de Chávez, por mais que se tenha enrolado no manto do líder morto e açulado a emoção provocada pela perda do "comandante".
                    Terminada a apuração, instalado Maduro em Miraflores, virão problemas que mesmo um Deus de verdade teria dificuldade para resolver, a saber:
                    1 - A inflação, só em março, foi de 2,8%, sugerindo uma taxa anual de 30%. O Brasil, como se sabe, está assustado porque a sua taxa anual acaba de bater em 6,6%.
                    2 - A escassez de alimentos básicos só faz aumentar: passou de 11% da cesta básica em novembro para 17,7% em março.
                    3 - O deficit das contas públicas chegou a 15% do Produto Interno Bruto, taxa que até Deus consideraria insustentável.
                    4 - A produção automotriz, setor de peso na indústria, caiu 51,07% no primeiro trimestre, em relação a idêntico período de 2012.
                    Sem falar na violência, a maior preocupação dos venezuelanos.
                    A devoção popular a Chávez permitiu passar por cima desse tipo de dificuldades. Mas Maduro ainda não tem lugar no altar.

                    AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Olhando pela fresta‏


                    Estado de Minas: 14/04/2013 


                    Estou olhando (por uma fresta) o que comem e como comem as pessoas sentadas no restaurante ao lado. Meu ponto de vista é do lado de cá: estou num restaurante que é separado de outro por um vidro fumê. No entanto, de metro em metro, tem uma fresta que me deixa ver, recortado, o que ocorre no restaurante ao lado. Pura bisbilhotice. Afinal, a crônica, às vezes, o que é senão olhar por um buraco de fechadura a vida pessoal e social? E, por este olhar, tomar a parte pelo todo. Por um detalhe, dar notícia do conjunto. Com todos os riscos. Sempre.

                    Onde estou? Vou me posicionar ante o leitor?

                    Como não achei lugar num restaurante que serve massas e saladas, além de outros pratos, fartamente, caí com minha mulher neste aqui e fico sabendo que tem um maître que, apesar de uruguaio, faz comidas gregas. Surpreendo-me vendo no cardápio: tem até o iogurte grego, que entrou na moda nos supermercados, mas aqui, garantem, não é industrial.

                    No princípio não me preocupei em saber o que estavam comendo atrás desse vidro fosco. Confortável nessa mesa, escolhi um risoto que tinha vários ingredientes extras. A mulher pediu um haddock, que veio maravilhoso, melhor até que meu risoto. Como ela se cuida, notei que comeu o peixe e os aspargos, poupando-se de comer as batatas, que, dizem, engordam.

                    Ia comendo meu saboroso risoto sem me dar conta que no restaurante ao lado, separado de mim, apenas por um vidro, transcorria mais um episódio da barbárie culinária. Antes não tivesse olhado pela fresta. Era outro mundo, outro cardápio, outra cultura. Como é que pode tanta diferença entre um vidro e outro? Coisas do shopping. Tem que agradar a todos.

                    Primeira diferença que percebo do lado de lá: jovens, muitos jovens. Sorridentes, inconscientes, movimentando-se sempre. E rindo. Mesas como aquelas de refeitório de internato.

                    Do lado de cá, onde estou, gente mais velha, famílias ao redor de mesas de até seis lugares. Este restaurante é especializado em vinhos. Penso: vai ver que a diferença entre um e outro deve ser o preço. Mas é mais do que isto: é uma diferença cultural que se concretiza no cardápio.

                    Por exemplo: nestes cincos centímetros em que cabem meus olhos, o que vejo?

                    Vejo uma voracidade juvenil. Um rapaz moreno, truculento, pega o seu hambúrguer, com aquele pão que mais parece uma muxiba, bota toda a carga de catchup no sanduíche e, não satisfeito, chupa gulosamente no plástico que restou de tempero. E ri. À sua frente, garrafas de refrigerantes com aquelas doses assassinas de açúcar (disfarçado). Seus colegas estão num jantar pantagruélico de calorias criminosas.

                    Aproveito e dou uma vasculhada com meu olhar indiscreto nas outras mesas do restaurante vizinho. Uma adolescente bota (saborosamente ) na boca uma colher de marshmallow. Aquela coisa pegajosa eleva-a ao paraíso. Se ela ouvisse Mozart, a sensação seria a mesma.

                    E dá-lhe, batata frita!

                    Meu Deus! Estamos no reino da batata frita. Dizem que foi uma descoberta na América, lá no Lago Titicaca. E que assim salvamos a Europa da fome. Se for verdade, agora trata-se de salvar jovens e velhos da gordura engordativa.

                    Os jovens que entrevejo do outro lado são gordos, gordos em progresso. Não é à toa que o governo e as televisões desencadearam essa campanha por uma alimentação menos daninha. Às vezes chego a pensar que foi o ditador da Coreia do Norte que inventou o fast food, que é mais danoso que qualquer bomba atômica.


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