domingo, 24 de fevereiro de 2013

Uma linda mulher -DORRIT HARAZIM


O GLOBO - 24/02/2013

Emmanuelle Riva não caiu em nenhuma das armadilhas da idade. Se, como já disse Mark Twain, rugas deveriam indicar apenas onde houve riso, no caso da aniversariante de hoje elas indicam onde houve e onde ainda há vida



Quando pisar no tapete vermelho
de Holywood, esta
noite, a francesa Emmanuelle
Riva merece eclipsar qualquer
concorrente. Não como favorita
ao prêmio de Melhor Atriz pela atuação
no perturbador filme “Amor”, de
Michael Haneke. É numa categoria
maior do que a de atriz: a de mulher.
Uma mulher que hoje completa 86
anos (tinha, portanto, 85 quando desempenhou
o estupendo papel) e cuja
beleza desconcerta, por deixar intactas
as marcas da vida.

De quebra, ela é capaz de arrasar
também no quesito elegância, embora
isso já seja de regra. Salvo surpresas,
costuma ser abissal a distância
entre o que adorna a silhueta de uma
europeia e o que é envergado por atrizes
americanas.

Emmanuelle Riva nasceu na região
de Vosges, Nordeste da França, no
mesmo ano da fundação da Academia
de Artes e Ciências Cinematográficas,
em Los Angeles. Veio a um
mundo do qual poucos bípedes ainda
guardam lembrança viva — em 1927,
Johnny Weissmuller batia um recorde
de natação atrás do outro, Charles
Lindbergh atravessou o Atlântico em
voo solo, Trotsky foi expulso do Partido
Comunista soviético e Fritz Lang
estreava o clássico “Metrópolis”.

Filha de família modesta, trabalhou
como costureira até aportar em Paris
para tentar a carreira de atriz. Irrompeu
com estrondo no mundo do cinema
em 1959, quase do nada, aos 32
anos. Como a heroína sem nome e
presença sublime de “Hiroshima Meu
Amor”, de Alain Resnais, cativou instantaneamente
o público. No papel
de uma atriz que está em Hiroshima e
vive um amor fragmentado com um
japonês, assombrou de imediato uma
geração inteira de cinéfilos. E o filme,
com roteiro de Marguerite Duras sobre
lembranças e esquecimento,
abriu caminho para a Nouvelle Vague
francesa. Foi considerado pelo diretor
Eric Rohmer como “o primeiro filme
moderno desde o fim do cinema
mudo”.

O austríaco Michael Haneke, à época
um rapazote de 17 anos, ficara impactado.
Não só ele. Difícil não lembrar da
dicção inimitável da atriz naquele filme
— a cadência quase hipnótica de frases
curtas repetidas à exaustão, formando
quase um poema concreto. “Fiquei fissurado”,
relembra o diretor de “Amor”,
“mas a perdi de vista”.

Não que Emmanuelle tivesse se escondido
do mundo pelos 50 anos seguintes.
Filmou esparsamente, com
hiatos de 10, às vezes 20 anos, selecionando
a dedo diretores e roteiros de
seu gosto. Desempenhou papéis pouco
convencionais com inteligência
despretensiosa. Nunca fez filmes comerciais.
À medida em que começaram
a escassear papéis para mulheres
de meia-idade, bandeou-se com encanto
para o teatro. “Como recusei alguns
papéis, pararam de me chamar.
E assim você forma um vazio, acaba
esquecida”, relembrou em entrevista
recente. Mas nunca deixou de ser um
talismã bem guardado do cinema
francês.

Ao ler o roteiro que Haneke lhe fizera
chegar, Emmanuelle Riva acendeu.
Foi atraída pelo olhar nada sentimental
do texto sobre a velhice e aceitou
submeter-se a um teste de elenco.
Não teve para mais ninguém. Segundo
contam o diretor e a atriz, bastou
uma cena e ambos souberam que o
papel era dela. E assim, quase sem
avisar, a inconstante jovem amante
de Hiroshima reaparece em “Amor”
como uma octogenária em declínio.
Pela segunda vez, ilumina a tela de
forma inesquecível.

Na vida real, a atriz vive num ambiente
não tão diferente do retratado no
filme — o mesmo apartamento parisiense
que ocupa há 50 anos. Sua vida
foi construída em torno de livros,
amigos e fotografia. Não tem filhos,
nunca casou e seu último companheiro
morreu há quatorze anos. Indagada
pelo semanário britânico Observer
se prefere ser chamada de
“Mademoiselle”, como Catherine Deneuve
(69 anos) e Jeanne Moreau
(85), escolheu “Madame”. “Acho mais
apropriado e charmoso”, explicou.

Emmanuelle Riva não caiu em nenhuma
das armadilhas da idade. Se,
como já disse Mark Twain, rugas deveriam
indicar apenas onde houve riso,
no caso da aniversariante de hoje elas
indicam onde houve e onde ainda há
vida. Percorreu com norte próprio a
passagem do tempo sem romantizar a
velhice como “melhor idade”. Deixa o
figurino de vovó moderna que faz parapeito
e asa-delta para suas conterrâneas.
E acompanha com curiosidade a
obsessão por saúde e longevidade, visível
num passar de olhos por qualquer
banca de jornal.

“Vou gostar se ainda me chamarem
para atuar mais uma vez. Mas se não
chamarem, não vou me aborrecer.
Continuo viva e gosto dessa sensação.
Acho que vou gostar da vida até a
morte”, explicou no ano passado,
quando “Amor” ganhou a Palma de
Ouro em Cannes. Em Los Angeles, esta
noite, ela será a atriz mais velha já
indicada pela Academia. Uma linda
mulher, a cada nova geração

A arte da queda: Emanoel Araujo ou como voltar a levantar

folha de são paulo

A arte da queda: Emanoel Araujo ou como voltar a levantar

THAIS BILENKY
DE SÃO PAULO

Folha retraça a trajetória do artista, colecionador e curador Emanoel Araujo, conhecido tanto pelo temperamento explosivo como pelo empreendedorismo. Este retrato do diretor do museu Afro Brasil permite ver, além da figura geniosa, um personagem que faz da atividade na cultura uma causa pessoal.
*
Na véspera de seu aniversário de 72 anos, Emanoel Araujo foi trabalhar, tropeçou ao entrar em sua sala e caiu, batendo o rosto na mesa. Foi socorrido, levado ao hospital Sírio-Libanês, submetido a uma batelada de exames e liberado horas depois.
No dia seguinte, 15 de novembro de 2012, comemorou a data um pouco baqueado, depois de uma jornada de trabalho normal, cantando "Parabéns a Você" com funcionários do museu Afro Brasil, do qual é diretor-curador.
Não havia tempo para repousar. Na semana seguinte, no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, o museu receberia o evento com que o governo federal lançaria os editais do Ministério da Cultura para criadores negros.
Chegando, na ocasião, ao prédio que abriga a instituição no parque Ibirapuera, a ministra Marta Suplicy (PT) notou que ele está "cada vez mais recheado". "É ele, né?", disse, apontando o diretor.
Foi Marta quem assinou o decreto de criação do museu Afro Brasil, em seu último ano como prefeita de São Paulo, em 2004.
Com isso, permitiu que o artista plástico e curador realizasse um projeto que parece ter cultivado a vida inteira. Das 5.000 peças do acervo, 3.000 foram doadas oficialmente por ele. Outras 1.500, já cedidas em comodato, poderão ter o mesmo destino.
O manancial é farto. Emanoel Araujo organizou um evento no dia 25 de janeiro, 459º aniversário da cidade, para oficializar outras doações, além daquelas que já estão no museu: as 60 obras de "Retratos sem Parede" e as cerca de cem de "Iconografia de São Paulo", exposições inauguradas na data.
Ao longo dos anos, ele estima ter doado por volta de 2.000 obras a outras instituições, entre as quais a Pinacoteca do Estado, que dirigiu por uma década. Sua casa, no Bexiga, bairro tombado na região central de São Paulo, é ela própria um museu, com cerca de 300 peças expostas.
De fato, foi Marta quem instituiu o museu, mas, diz Araujo, "não adianta criar e esquecer". Por isso o diretor dedica maior gratidão a José Serra (PSDB), sucessor da petista na Prefeitura de São Paulo.
Em 2006, meses depois de Serra deixar a prefeitura, o então secretário municipal da Cultura, Carlos Augusto Calil, revogou o decreto que criou o museu e estabeleceu um convênio com o Afro Brasil enquanto instituição privada. Calil diz que o museu havia sido criado sem "previsão de cargos ou de orçamento".
A secretaria na época tinha uma dívida de R$ 20 milhões, afirma. "Em meio a essas dificuldades, Emanoel Araujo se recusou a doar a sua coleção à prefeitura, inviabilizando a oficialização desse museu no plano municipal." O convênio estabelecia que a prefeitura pagasse R$ 1,8 milhão por ano ao museu.
Araujo relata que o período foi complicado. "Calil sacaneou. Impediu que o museu se formalizasse. Precisava de concurso público, plano de carreiras e salários. Ele abortou tudo", lembra. Funcionários do Afro Brasil dizem que o diretor chegou a pagar salários tirando dinheiro do próprio bolso.
Em 2009, Serra, então governador, transformou o museu em OS (Organização Social), submetendo sua gestão ao Estado de São Paulo e quintuplicando seu orçamento.
Paulo Monteiro/Reprodução
Retrato de Emanoel Araujo feito pelo artista plástico Paulo Monteiro para a edição de 24/2/13 da Ilustríssima
Retrato de Emanoel Araujo feito pelo artista plástico Paulo Monteiro para a edição de 24/2/13 da "Ilustríssima"
VULCÃO
Durante a campanha para a eleição municipal de 2010, o ex-governador falou que o curador é um homem "vulcânico e explosivo". Pudera. Hoje, Emanoel Araujo declara voto "emocional" ("não por convicção ideológica") em Serra. Mas, há oito anos, ele pediu a Serra demissão da Secretaria Municipal de Cultura, três meses depois de assumi-la, de maneira "vulcânica" e, também, "explosiva".
Em carta aberta ao então prefeito, Araujo foi taxativo: "O senhor pensa mesmo que isso é cultura? Deixo a secretaria porque o senhor não tomou conhecimento desses cem penosos dias de administração em que, graças a poucos e abnegados servidores, conseguimos realizar muitos projetos e ações, inclusive o catálogo 'Brasileiro, Brasileiros', no qual encontra-se inserido um texto seu e a cujo lançamento, ontem, o senhor não compareceu, como programado".
Na mesma carta, ainda cutucou a então secretária estadual da Cultura, Claudia Costin. Ela havia recusado projeto que ele elaborou, por mais de ano, para instalar um Museu do Imaginário do Povo Brasileiro no prédio do antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social). As celas dariam lugar à Estação Pinacoteca. "Museu não é butique. Já disse isso à secretária Claudia Costin, quando ela quis instalar o Museu do Imaginário do Povo Brasileiro na Casa das Rosas."
Costin pediu demissão dois meses depois do ocorrido. "O orçamento da pasta à época era reduzido e não havia recursos para implantar o projeto e adquirir o acervo do Estado", justifica ela hoje.
Naquele momento, Serra respondeu, reservadamente, que havia posto um "ourives" --profissão do pai de Araújo-- em uma "pedreira". Hoje, ele diz que o artista "deixou a secretaria por sua única e exclusiva vontade", decisão que "em nada abalou" a relação entre os dois, que Serra qualifica como ªde amizade e confiança". Para o ex-governador, Araujo é "um grande artista, um formidável organizador", uma pessoa de "bom gosto e opiniões definidas". "É um patrimônio cultural, deveria ser tombado", brinca. Talvez o fato de ter aceitado a secretaria de Serra seja um gesto grandioso de amizade --Araujo diz ter recusado convite semelhante de Marta.
"Isso é coisa política de vocês", esbravejou o diretor-curador para a assessora da hoje ministra da Cultura na antessala de seu escritório no museu, minutos antes de o evento da Consciência Negra começar. Ele estava inconformado com o folder do edital, que não incluiu o logotipo do Estado de São Paulo. A assessora garantiu que o projetaria no telão.
Mas já era tarde. Araujo armava a expressão pela qual é conhecido: revira os olhos, arrebita o nariz e vira o rosto num ângulo de 180 graus, tudo ao mesmo tempo. O interlocutor fica sem ter para onde olhar ou com quem falar. O curador espia a repórter, dá uma piscadinha e discretamente sorri. "É muito auê."

Museu Afro Brasil

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Jorge Araújo/Folhapress
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Marta Suplicy, então prefeita de São Paulo em 2004, visita o museu Afro Brasil ao lado do curador Emanoel Araujo
NO QUARTO
O cômodo em que dorme Emanoel Araujo fica no segundo andar de uma casa construída por um escultor italiano. De frente para sua "linda cama" de estilo dom João 6ë, do século 19, feita de madeira jacarandá da Bahia, fica uma tela vermelha com uma figura de "mãe preta", de Di Cavalcanti. Na cabeceira à direita, há uma foto de seu pai, Vital, consertando uma coroa de ouro de Santo Amaro da Purificação, enquanto conversa com o pai de Caetano Veloso e Maria Bethânia, Zezinho. O escultor, o compositor e a cantora nasceram, em 1940, 42 e 46, respectivamente, na cidade do Recôncavo Baiano.
"Tenho uma imagem muito vívida de Seu Vital, pai dele, com a imensa família, no [bairro do] Sacramento. Não era preto como Emanoel. Era o que a gente chamava de 'cabo-verde': a pele era escura, mas não tinha o cabelo pixaim", conta Caetano Veloso.
Os dois estudaram juntos no ensino fundamental. "Emanoel foi um dos meus colegas mais queridos no ginásio Teodoro Sampaio, em Santo Amaro. E fiquei para sempre amigo dele. Hoje quase não nos vemos, mas sinto a amizade inabalável. Na porta da minha casa em Salvador, tem uma escultura dele, gigante, protegendo", afirma Caetano, que conta ainda que o artista plástico era então "fã de Ângela Maria, fascinado por Adalgisa Colombo e não apenas gostava de desenhar: queria dedicar-se a desenhar". "Como eu já desenhava figuras humanas com certa facilidade, ele me fazia perguntas. Gosto de dizer que o ensinei a desenhar. Ele responde, com graça, que me ensinou a cantar."
Sobre a cômoda, também de jacarandá, Araujo colocou em um porta-retratos uma fotografia de Tomie Ohtake, 99. "Eles se amam", diz Ricardo Ohtake, filho da artista. O aniversário dela é seis dias depois do de Araujo, e todo ano Tomie liga, ou intenta ligar, para lhe dar os parabéns.
SARAPATEL
A amizade entre eles começou na segunda metade da década de 1960. Para sua inauguração, o Museu Regional de Feira de Santana, na cidade baiana, havia convidado alguns artistas, entre os quais estava o par. Então com 20 e poucos anos, Emanoel Araujo aproveitou para chamar Tomie, já com mais de 50, para almoçar em sua casa, em Salvador, embora eles mal se conhecessem. E ainda arriscou oferecer à japonesa um sarapatel --iguaria nordestina feita à base de vísceras de porco e sangue coalhado. "Ela não só comeu um prato como repetiu", conta o filho.
Emanoel Araujo costuma cozinhar --sempre pratos baianos-- para receber seus convidados. É o polo agregador da turma, segundo Charles Cosac, sócio e editor da Cosac Naify. São seus frequentadores, além de Cosac, o engenheiro Hubert Alquéres, o jornalista Claudio Leal e o tucano José Henrique Reis Lobo, entre outros. Sua casa é o palco dos encontros, e suas obras de arte guardam histórias dos amigos. Uma das mais notáveis é a de um pavão empalhado.
Há alguns anos, Charles Cosac passeava por Londres quando viu na vitrine de uma loja de luxo duas aves da espécie empalhadas e se "apaixonou". Assim que pisou no Brasil, localizou um taxidermista em Porto Alegre, a quem encomendou duas cópias dos originais ingleses. Pagou cerca de R$ 10 mil pelos exemplares, o primeiro dos quais, tão logo ficou pronto, foi entregue na casa de Emanoel Araujo.
"Eu quero saber o que significa alguém mandar um pavão para a casa do outro!", reagiu o artista, exaltado. "Eu falei: 'Bem, para mim não significa nada'", relembra Cosac. Não adiantou. O amigo cancelou o segundo pavão e mandou buscar o de Manuca, como o chama. Acontece que, no meio tempo, um outro amigo visitou Araujo e, quando viu o pavão, também se apaixonou --e encomendou um para si, com o mesmo taxidermista.
Manuca mudou de ideia e resolveu que ficaria com o bicho. Como a outra peça tinha acabado de ganhar um novo dono, Charles acabou ficando sem nenhum.
"Ah... Tem que aceitar, né? Eu não reclamei, sou muito educado. Às vezes, mas sou. Não sei se ele queria me chamar de pavão, mas eu não me pavoneio. Um dia mando de volta", diverte-se Araujo.
Não há espaço desocupado na casa do artista, embora nenhum dos medalhões, telas do século 19, maquinetas, esculturas e outros apetrechos --como um troféu Coca-Cola Light Plus-- seja de sua autoria. Até mesmo o banheiro é decorado.
"Minha aposentadoria está aqui, nessas paredes. Eu tenho pavor do vazio. Talvez seja por carência afetiva", ri, numa tentativa vã de explicar por que mantém a coleção excêntrica --mesmo quando vivia com seu companheiro (foram duas longas relações, a última encerrada há 20 anos), as paredes eram lotadas.

Emanoel Araujo

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Eduardo Knapp/Folhapress
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Retrato do artista plástico e diretor curador do museu Afro Brasil, Emanoel Araujo, em sua casa em São Paulo
TRIO
Emanoel Araujo foi o primeiro de 11 irmãos. Na década de 1980, no intervalo de dois anos, perdeu a mãe, o pai e duas irmãs, com as quais formava um trio. Olga fez uma cirurgia para tirar um tumor no cérebro e não resistiu. Com sua morte, Letícia teve um "surto psiquiátrico" e "se fechou", lembra pausadamente o primogênito.
"Não gosto de família. É um mal necessário. Sempre gostei de ser só. Não sei se é porque éramos muitos. Sou um péssimo ser domável", diz, circunspecto.
Ele não fala propriamente em trauma, mas suas relações o deixaram com má impressão sobre a intimidade. "É infernal conviver com uma pessoa." Sabendo-se detentor de uma opinião explosiva em tempos em que "tudo é homofobia", o artista ironiza o casamento gay e se diz contra a adoção de filhos por casais do mesmo sexo. Embora ressalve que não é alheio aos casos recentes de ataques homofóbicos, não retira seu parecer.
"Uma vez que uma pessoa se determina numa opção sexual, não pode voltar atrás. Se queria ser pai, por que não virou hétero, não pegou sua mulher e fez seu filho? Que é isso, gente? Sou homossexual, vou querer ter uma filhinha? Isso realmente é meio canalha. Também acho um absurdo alguém que queira se casar e vai ao altar ou ao juiz. Pode casar e descasar no dia seguinte. Muito bonito, superemocionante ter seu dia de princesa, seu belo vestido, flores, flores e flores." Aí para, sorri e conclui: "Depois dessa, vou ter que sair da cidade".
PAULISTANO
Mas em São Paulo está e em São Paulo ficou. Trinta anos após desembarcar na capital paulista, Emanoel Araujo recebeu em 1994 o título de cidadão paulistano do então vereador Marcos Mendonça --e é como paulistano que se apresenta.
Antes de se tornar secretário municipal, tocou, de 1992 a 2002, uma das mais importantes instituições culturais paulistas, a Pinacoteca do Estado. Quando seu nome foi anunciado, enfrentou resistência da alta sociedade local. "Mas tinha que ser um baiano?", artistas comentavam na cerimônia e posse. "E preto e homossexual", emendava ele próprio.
"Sempre haverá pedras no caminho. O sucesso incomoda", assevera. "Outro dia me disseram que sou egoísta. Fico pensando: me desviei do meu ateliê para contribuir com gestões culturais, dediquei 40 anos à atividade pública, doei obras. Onde está o egoísmo?" Ele acha que seu temperamento pode influenciar o julgamento alheio, mas que sem ele não teria realizado o que realizou. "Você não me vê em coquetel badalado. Para que as pessoas não perguntem o que aquele negro está fazendo aqui Ðprefiro nem estar presenteº, diz. ªO Brasil é um país racista, menina."
Desafiado pela descrença, fez uma gestão até hoje tida como inovadora à frente da Pinacoteca. Com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, botou o prédio do museu abaixo, integrou seu pátio ao jardim da Luz, contrariou ordem da prefeitura e removeu uma escada da fachada, arrancou eucalipto na calada da noite --e assim por diante. Movimentou público recorde à época, 150 mil visitantes em 38 dias, com a exposição de esculturas de Auguste Rodin, em 1995.
Marcos Mendonça, que então já havia se tornado secretário estadual da Cultura Ðcargo que exerceu até 2002Ð, conta que formou uma equipe só para viabilizar os projetos mirabolantes do diretor. "A gente acreditava na genialidade fantástica dele", lembra. E conta: "Um dia, Emanoel me descobre um coreto que seria demolido, numa cidadezinha da Bahia. Como a gente faz para adquirir um coreto?". Lá foram Mendonça e equipe dar um jeito de trazer a peça, que está no jardim da Luz até hoje.
Enquanto o prédio estava em reforma, exposições da Pinacoteca foram montadas no pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, que hoje é a sede do museu Afro Brasil. Nicéa Camargo, ex-Nicéa Pitta, então primeira-dama paulistana, tentando chegar à abertura de uma delas, se perdeu na imensidão do parque.
"Ela ficou muito nervosa, desesperada. Fui procurá-la", lembra Araujo. "Não tem sinalização", ela resmungou. "A culpa é do seu marido [Celso Pitta, então prefeito]", ele respondeu. "Mas não me diga o senhor que é Deus", desafiou Nicéa. "Eu sou! Meu nome quer dizer 'o Senhor está conosco'." Passada a raiva, conta o curador, acabou ganhando a simpatia de Nicéa.
Deixar a Pinacoteca não foi fácil. Emanoel Araujo diz que não pisou mais no museu, e pessoas que o circundam dizem que ele tem mágoas de Marcelo Araujo, seu sucessor, pelo rumo que este deu, por exemplo, ao antigo Dops. Ambos negam. "Foi um imenso privilégio assumir a direção daquela instituição após a gestão de Emanoel, que foi o responsável pelo maravilhoso processo de restauro e revitalização. Encontrei um museu dotado das melhores condições técnicas e com grande visibilidade pública", afirma Marcelo Araujo, hoje secretário de Estado da Cultura, instância à qual se reporta o museu Afro Brasil. Os gastos da instituição superam seu orçamento anual, de R$ 9 milhões, impedindo que se realize a primeira reforma do pavilhão, erguido 60 anos atrás. Marcelo Araujo diz que a verba é "compatível com as metas previstas".
COTAS
Se até agora as divergências entre os dois Araujo não foram escancaradas, não se pode dizer o mesmo quando a questão é a das das cotas para negros. "Ao mesmo tempo em que [o negro] precisa de protagonismo, não pode ter monopólio. É complicado", afirmou o Araujo Marcelo durante o evento de lançamento do edital de acesso a negros na cultura de Marta.
Já o Araujo Emanoel assume posição exatamente contrária. "Não sei muito bem por que as pessoas são contra a cota. Ferreira Gullar, Caetano Veloso, eles não têm mais filho nenhum concorrendo a universidade nenhuma", provoca.
Caetano responde: "Seu caminho do Sacramento a postos como a diretoria da Pinacoteca deve ter lhe mostrado aspectos das entranhas da sociedade brasileira que o levaram a dar caráter político ao pertencimento negro-africano que ele já desenvolvia na dimensão cultural em suas gravuras. Apaixonado como sou pelo mito da originalidade brasileira, fiz algum coro à reação contra a americanização da conversa sobre raça no Brasil. Mas, além de ser mais apaixonado por Emanoel do que por qualquer mito, considero as cotas raciais um assunto que deve ser visto com circunspecção e respeito. Se Emanoel quiser me convencer, fico a favor das contas sem nuances".
Para Araujo, "as cotas não tiram o mérito". "Ninguém vai lá [e diz] 'sou negro, vou entrar'. Elas são um numeral reservado para essas pessoas, como também tem um reservado para os brancos. Nós, os negros, pagamos impostos, por que temos que ser sempre escravos? O que é muito estranho é que os afrodescendentes estudam numa escola pública e, na hora de ir para a universidade, têm que ir para uma particular. E muitos param, porque não podem pagar."
Ele continua. "A ambiguidade corre neste país. Não se pode falar em raça, porque a palavra não existe mais, `raça é a raça humana', os antropólogos dizem. Mas tem racismo! Onde é que estão os embaixadores negros no Brasil? Aí alguém fala que tem Joaquim Barbosa [presidente do Supremo Tribunal Federal]. Mas Joaquim Barbosa é um elemento. E os outros? Pelé é um. E daí? Vai ficar com a bandeira de que o rei do futebol é negro. E daí? Não justifica dizer que as cotas vão trazer racismo. O país já é racista, discriminatório. Um pouquinho a mais, um pouquinho a menos, que diferença faz?"
O compositor Paulinho da Viola, amigo de Emanoel Araujo desde os anos 1980, afirma que ele é "proeminente na defesa da causa do negro no Brasil". "Uma figura de ponta. Todo o seu trabalho, por si só, já o demonstra. Essa coisa do museu não é brincadeira, é algo muito importante para todos nós, negros, e para todo o nosso povo", comenta o sambista. "Além de ser uma pessoa extremamente culta e muito inteligente, é um artista excepcional. É um agitador cultural."
SONHO
Para Charles Cosac, "Emanoel é escravo de si mesmo". "Ele não para nem dormindo. Acho que o sonho dele é tudo museu, museu, exposição, curadoria", diverte-se Fátima Pádua, sua secretária há 17 anos, que passa 12 horas por dia a seu lado, se diz "suspeita" para falar. "Emanoel é envolvente e carismático. Ele tem aquele jeito de querer afastar, parece que quer dar um choque. Mas é só fachada, porque ele tem um coração muito grande." Ela acha que o ritmo de trabalho de Emanoel Araujo intensificou-se no último ano. "Ele disse que não pensa na morte. Mas outro dia falou que o avô morreu aos 72 anos."
"É tão estranho ver um museu vazio", dizia o curador numa tarde cinzenta de fraco movimento em novembro, alguns dias antes daquela queda em sua sala. Foram precisas apenas duas semanas para o contra-ataque. No Dia da Consciência Negra, o diretor-curador recebeu um dos maiores públicos do museu Afro Brasil desde sua abertura: cerca de 5.000 visitantes. Emanoel Araujo pode até cair, mas sempre encontra um jeito de levantar.
Paulo Monteiro/Reprodução
Retrato de Emanoel Araujo feito pelo artista plástico Paulo Monteiro para a edição de 24/2/13 da "Ilustríssima"
Retrato de Emanoel Araujo feito pelo artista plástico Paulo Monteiro para a edição de 24/2/13 da "Ilustríssima"

O melhor da cultura em 9 indicações - Ilmos da edição

folha de são paulo

ILUSTRÍSSIMA SEMANA
O MELHOR DA CULTURA EM 9 INDICAÇÕES
BRASILEIRO
MOSTRA | LUGAR NENHUM
Espaços vazios, esquecidos e anônimos e situações corriqueiras são o foco de oito artistas contemporâneos brasileiros que estarão em mostra no Instituto Moreira Salles do Rio. A exposição trará 56 obras entre pinturas de artistas, como Ana Prata e Rodrigo Andrade, e imagens de fotógrafos, como Lina Kim e Celina Yamauchi. A curadoria é de Lorenzo Mammì e Heloisa Espada. Na abertura, às 17h, haverá debate com os curadores e o doutor em história da arte Sérgio Bruno Martins.
sábado (2) a 2/6 | de terça a domingo, das 11h às 20h | grátis
PALESTRA | ROMANCE DE FORMAÇÃO
A Biblioteca Mário de Andrade inicia ciclo de 16 palestras sobre grandes representantes desse subgênero literário. A curadoria é de Murilo Marcondes de Moura e de Marcus Vinícius Mazzari, que convidaram especialistas para falar de livros como "Dom Quixote", de Cervantes, e "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", obra de Goethe com a qual o germanista Mazzari abre o ciclo, no próximo sábado, 2/3. Programação completa em folha.com/ilustrissima.
até junho | aos sábados, das 10h às 12h | grátis
MÚSICA CLÁSSICA | OSESP
A Osesp começa nesta quinta-feira sua temporada de 2013, com a titular Marin Alsop regendo duas peças sinfônicas de Richard Strauss, e o pianista francês Jean-Yves Thibaudet, com o "Concerto em Sol Maior", de Ravel. Stravinsky é o grande homenageado do ano, pelo centenário de "A Sagração da Primavera". E Thibaudet é apenas um dos superlativos pianistas convidados. Haverá sobretudo Paul Lewis, que fará em junho o "Concerto nº 1", de Brahms, mas também Hélène Grimaud, em maio, com o "Concerto nº 5", de Beethoven. Ainda do compositor alemão, em março, Nicholas Angelich fará o "Concerto nº 3".
A orquestra programará Verdi e Wagner, pelo bicentenário de nascimento de ambos, e estreará peças encomendadas a seis compositores brasileiros, entre eles Marlos Nobre e André Mehmari. (João Batista Natali)
Mais informações no site www.osesp.art.br
ERUDITO
LIVRO | OS CADERNOS ANATÔMICOS DE LEONARDO DA VINCI
Os mais de 1.200 trabalhos do artista e cientista florentino (1452-1519) como anatomista foram reproduzidos no livro pelos professores Charles D. O'Malley e John Bertrand de C. M. Saunders. As obras, feitas entre 1498 e 1513, surpreendem pela precisão e mostram o aperfeiçoamento cronológico de Da Vinci no desenho dos órgãos e dos sistemas anatomofuncionais do corpo humano.
trad. Pedro Carlos Piantino Lemos e Maria Cristina Vilhena Carnevale | Unicamp e Ateliê Editoral | 520 págs. | R$ 280
LIVRO | JACOB BURCKHARDT
O historiador suíço (1818-97) vem sendo estudado no Brasil por Cássio Fernandes, da Unifesp, que em "O Retrato na Pintura Italiana do Renascimento" organiza e traduz os seus últimos trabalhos, escritos entre 1893 e 1895. Suas obras são peça fundamental nos estudos sobre o retrato pictórico na Itália dos séculos 14 a 16.
Editora da Unicamp | 216 págs. R$ 46
LIVRO | CLAUDE LÉVI-STRAUSS
"Antropologia Estrutural Dois", editado pela primeira vez no país em 1976, reúne ensaios e transcrições de seminários em que o autor (1908-2009) aborda questões como organização social e critérios científicos nas disciplinas sociais e humanas. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés.
Cosac Naify | 448 págs. | R$ 79
ESTRANGEIRO
LIVRO | O JARDIM SECRETO
Um acidente grave faz com que um jardim de uma casa se mantenha fechado por uma década, mas duas crianças solitárias acabam por descobri-lo e arrumá-lo. O romance de Frances Hodgson Burnett (1849-1924), britânica criada nos EUA, foi escrito em 1911 e ganhou fama mundial com o filme homônimo de 1993.
trad. Sonia Moreira | Penguin Companhia 344 págs. | R$ 29,50
POP
MOSTRA | SESC POMPEIA
Ao completar 30 anos, a unidade do Sesc montou uma linha do tempo de sua história: da construção do prédio fabril, em 1938, até a restauração, que privilegiou os espaços de convívio, comandada pela arquiteta Lina Bo Bardi. O livro "Cidadela da Liberdade: Lina Bo Bardi e o Sesc Pompeia" (Edições Sesc São Paulo), dos curadores André Vainer e Marcelo Ferraz também integra as comemorações.
de quinta (28) a 30/6 | grátis
CURSO | TIPOGRAFIA EM DIÁLOGO
Responsável pelo projeto tipográfico do dicionário Houaiss, Rodolfo Capeto ministra curso de três aulas sobre a história da tipografia, sua evolução técnica e a relação com a tecnologia. Desconto para estudantes e idosos.
Centro Universitário Maria Antonia de terça (26) a quinta (28), das 19h30 às 22h | R$ 200

    ILUSTRÍSSIMOS DESTA EDIÇÃO
    BENJAMIN SCHWARTZ é cartunista da revista "New Yorker". Pág. 3
    BERNARDO DE MELLO FRANCO, 29, é correspondente da Folha em Londres. Pág. 7
    CACO GALHARDO, 45, cartunista e ilustrador, é autor de "Dom Quixote em Quadrinhos" (Peirópolis). Pág. 6
    CAETANO W. GALINDO, 39, é professor da UFPR e tradutor. Pág. 3
    IAN MCEWAN, 64, escritor, é autor de "Serena" (Companhia das Letras). Pág. 3
    FLORA SÜSSEKIND, 57, é professora da Unirio e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa. Pág. 6
    JÚLIO MEDAGLIA, 74, é maestro, compositor, arranjador e membro da Academia Paulista de Letras. Pág. 7
    MARC PHILIPPE ESKENAZI é editor-assistente de cartuns na "New Yorker". Pág. 3
    MARCELO COMPARINI, 32, é pintor. Pág. 8
    PAULO MONTEIRO, 51, é artista plástico. Pág. 4
    RÉGIS BONVICINO, 57, poeta e diretor da revista eletrônica Sibila (sibila.com.br), é autor de mais de 25 livros, entre os quais "Até Agora - Poemas Reunidos 1905-2007" (Imprensa Oficial do Estado, 2010) e "Estado Crítico", a ser lançado neste ano. Pág. 8
    THAIS BILENKY, 26, é jornalista da Folha. Pág. 4

      Caminhos da fé verdadeira - Ian McEwan

      folha de são paulo

      Apostasia ficcional
      IAN MCEWAN
      TRADUÇÃO CAETANO W. GALINDOComo um clérigo do fim da era vitoriana que se debate, no escuro, com suas Dúvidas, tenho momentos em que minha fé na ficção vacila, até chegar à beira de um colapso. Eu me vejo perguntando: 'Será que eu sou mesmo um fiel?'. E depois: 'Será que algum dia fui?'. As primeiras a cair são as narrativas desconjuntadas e distorcidas da ficção experimental. Ach fazer o quê? Depois, o milagre da concepção virginal do realismo fantástico. Quanto a este, porém, eu sempre fui meio recalcitrante. É quando as águas geladas do ceticismo começam a subir em volta do próprio realismo que eu sei que minha longa noite teve início.
      A empresa toda se vê privada de sentido. Romances? Eu não sei como ou quando suspender minha descrença. O que um Henry imaginário disse a uma Sue inexistente, a infância solitária de Henry, sua guerra, seu divórcio, seu êxtase e sua luta com a verdade e o quanto ele é um espelho de seus tempos -eu não acredito em uma só palavra; nem no artifício enferrujado de fingir que o clima tem alguma coisa a ver com o estado de espírito de Henry nem no artifício enferrujado do fingimento.
      Quando o deus da ficção deserta você, tudo tem que ser abandonado. A igreja forrada de livros e o púlpito com microfone, a respeitosa congregação, o catecismo do entrevistador, confissões disfarçadas de perguntas, a fila de suplicantes em busca do poder curativo de um autógrafo, a bênção ou a maldição do resenhista. Confesso que já estive naquele tipo de mesas-redondas em que, com outros fiéis, entoa-se a liturgia que diz que os humanos são fabuladores, que "não podemos viver" sem histórias. Você não pode viver, os padres sempre insinuam, sem eles. (Ah, mas podemos.) O meu coração em dúvida tropeça quando entro na seção de ficção de uma livraria e vejo as torres infindas sobre as mesas de lançamentos, as frases súplices na capa ("Ele a amava, mas ela seria capaz de ouvi-lo?"), as sinopses da trama na sobrecapa em seu sincero presente verbal: "Henry se liberta de seu casamento e embarca em uma série de loucas...".
      É aí que eu acho que vou para o túmulo sem ler "Anna Kariênina" pela quinta vez, ou "Madame Bovary" pela quarta. Eu estou com 64 anos. Com sorte, posso ter ainda uns bons 20 anos de leitura pela frente. Quero saber do mundo! Mandem cosmologistas falando da criação do tempo, analistas do Holocausto, aquele filósofo que aderiu à neurociência, aquele matemático que consegue descrever a beleza dos números para um imbecil, o historiador das ascensões e quedas dos impérios, os fãs da Guerra Civil Inglesa.
      Descontados alguns prazeres literários bem espaçados, o que é que eu vou saber quando terminar mais um romance, além do remorso ou do triunfo de Henry? Será que um romancista pode me fazer o favor de me explicar por que a Revolução Industrial começou, ou como o bóson de Higgs confere massa às partículas elementares, ou como evoluiu a moral, ou o que Salieri achava do jovem Schubert em seu coro? Se eu me importasse minimamente com os choramingos de um Henry, eu poderia ler uma das "Dream Songs" de John Berryman em menos de quatro minutos. E, com as 15 horas assim poupadas, me deter sobre algum relato jurídico (eventos reais!), uma cartilha tão boa quanto qualquer outra sobre a estranheza e a selvageria do coração humano.
      Essa apostasia se infiltra pela larga brecha que separa o fim de um romance e o começo de outro. Não é um bloqueio, não é tanto uma longa noite quanto uma questão de profunda indiferença. A felicidade está em outros lugares. Podem se passar meses e aí vir uma mudança, um realinhamento. Começa com um cutucão. Um detalhe, uma frase ou uma oração podem promover o princípio de um retorno ao rebanho. Não precisa ser brilhante. Só tem que exsudar certo tipo de calor imaginativo.
      Uma recente reversão à fé começou com a releitura de dois contos. (A brevidade é persuasiva.) O primeiro foi o discutidíssimo e elogiadíssimo "Sinais e Símbolos", de Nabokov. Um casal de velhos abatidos visita o filho mentalmente perturbado num hospital psiquiátrico, no dia do aniversário dele. A mãe não usa maquiagem. Em vez disso, "ela apresentou um rosto branco e nu à mesquinha luz dos dias da primavera". Tom perfeito e um ritmo que se enrosca em torno de um paradoxo discreto ou modesto -a primavera, convencionalmente portadora de esperança, traz apenas críticas à aparência pessoal.
      O segundo foi "Twin Beds in Rome", de John Updike. Os Maple decidiram se divorciar, mas, em termos sexuais, um não consegue deixar o outro em paz. Por hábito, eles tiram umas férias na Itália. Chegando lá, Richard acha seus sapatos, que lhe pareciam perfeitamente confortáveis em casa, uma fonte de tortura e mal consegue andar. Ele e Joan topam com uma sapataria romana onde ele compra um par de mocassins pretos de couro de crocodilo. "Eram apertados, por terem um formato elegante, mas estavam mortos -eles não mordiam com a veemência vital, enfurecida, dos outros." Eu gostei daquele "mortos". O crocodilo estava morto, sugere essa tranquila observação. Uma criatura viva deve ter sido a causa do tormento dos sapatos americanos. O cotidiano, segundo a própria formulação de Updike, recebe o que lhe é lindamente devido -em termos cômicos e nada ambíguos.
      Um ex-aluno da Universidade Cornell lembrou na revista literária "TriQuarterly": "Acaricie os detalhes", Nabokov dizia, com o "r" vibrante, numa voz que era a carícia ríspida da língua de um gato, "os divinos detalhes!".
      Aceito de bom grado o conselho. Não emito qualquer grande juízo a respeito das sentenças acima; só digo que elas marcaram o começo de um derretimento em minha indiferença. Tanto uma como outra ilustram o generoso talento com que a ficção comenta o microscópico rendilhado da consciência, as letras miúdas da subjetividade. Ambas são relatos em terceira pessoa que contêm uma pérola de experiência em primeira pessoa -a luz mesquinha da primavera, os sapatos que não estão mais vivos e não mordem. Ao apreciar essas linhas, você não está só em sintonia com seus autores mas também com todos que as apreciam. No ato do reconhecimento, as rígidas fronteiras do eu cedem um pouco. Isso não acontece quando você fica sabendo o que um bóson de Higgs faz.
      Eu tenho uma lembrança de mim quando criança, acariciando um detalhe de um romance. Evocar esse momento é mais uma forma de restaurar a fé na ficção. A experiência foi hipnótica e deixou marcas para toda a vida, pois me mostrou como os mundos da realidade e da ficção podem se interpenetrar. Eu estava com 13 anos, sozinho na biblioteca da escola, enfeitiçado por "O Mensageiro", de L.P. Hartley. Seu herói, Leo, vindo de origens humildes, passa as férias de verão de 1900 com um colega de escola cuja família é dona de uma imensa casa de campo. O foco, claro, é o papel de Leo como mensageiro num caso amoroso ilícito. Contudo o que me atraiu foi a onda de calor de julho e o fascínio do menininho pelo termômetro da estufa e por saber se ele chegaria a 40 graus. O exemplar daquela semana da revista satírica
      "Punch" chega à casa e, nele, um desenho mostra "Mr. Punch sob uma sombrinha, enxugando a testa, enquanto Toby, o cachorrinho, murchava atrás dele com a língua de fora".
      Eu me lembro de largar o livro e, num gesto inspirado, atravessar a biblioteca até onde estavam guardados os antigos volumes encadernados da "Punch", pegar o volume de 1900 e ir até julho. E lá estavam eles, o cachorro morrendo de calor, a sombrinha e Mr. Punch, apertando um lenço contra a testa! Era verdade. Eu fiquei cativado, extasiado com o poder de uma coisa simultaneamente imaginada e real. E, por um breve instante, senti uma tristeza nova, uma saudade de um mundo do qual eu estava excluído. Por um momento eu tinha sido Leo, vendo o que ele via; e aí estava de volta a 1962, no internato, sem amantes que me usassem de correio, sem onda de calor, só com aquele pequeno vestígio dentro de uma revista amarelada.
      Eu não via isso assim na época, mas tinha percebido como o realismo pode ganhar força por meio do verdadeiro. Vinte anos depois, eu tentaria por conta própria. Coisas que nunca aconteceram podem se emaranhar com coisas que de fato aconteceram; um ser imaginário pode dar a mão para o real de carne e osso, pode morar na sua casa, como um Henry meu um dia morou, pode ler tudo que você leu e até fazer amor com sua mulher. O ateu pode se deitar com o fiel, a enciclopédia, com o poema. Tudo que foi absorvido e meditado durante os meses sem fé -ciência, matemática, história, direito e todo o resto- você pode levar com você e colocar em uso quando voltar mais uma vez para a única fé verdadeira.

        A Casa de Rui Barbosa está viva entre os que se foram - Flora Süssekind

        folha de são paulo

        Do lugar do morto
        A Casa de Rui Barbosa está viva entre os que se foram
        FLORA SÜSSEKINDRESUMO Declarações recentes do ex-presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa reavivam temores sobre o futuro da instituição, que quase foi extinta no governo Collor (1990-92). Pesquisadora da fundação faz balanço dos méritos da Casa Rui e das dificuldades enfrentadas para mantê-la como polo ativo de produção de conhecimento.
        Uma relação de intimidade mesmo relativa com a vida cultural brasileira moderna e contemporânea já evidenciaria o potencial crítico de que, nela, se revestiu, em momentos significativos, a adoção de perspectiva póstuma.
        Seria desse lugar narrativo irônico-tumular que Machado de Assis redefiniria como forma livre, dialógica, ziguezagueante, a prosa de ficção oitocentista em "Memorias Póstumas de Brás Cubas". Seria, igualmente, um diálogo (em constante refiguração) entre o presente e a força das coisas mortas, a presença ativa dessas mortes, que orientaria boa parte da poesia de Drummond. Seria, também, como um misto de cerimonia fúnebre e de lugar impositivo, violento, de rememoração que se apresentaria uma das mais incisivas realizações contemporâneas, no campo das artes visuais, a exposição "111", de Nuno Ramos, sobre a invasão da Casa de Detenção de São Paulo pela PM em 1992 e a morte de 111 presidiários que dela resultaria.
        Seria possível multiplicar a serie mortuária com os cemitérios de João Cabral, os usos do autorretrato como vampiro por Torquato Neto, os esqueletos e ossadas de Ângelo Venosa, o enterro da classe média de Sebastião Nunes ou os epitáfios e autoepitáfios com que se divertiam Sebastião Uchoa Leite, Valêncio Xavier e José Paulo Paes. É deste ultimo, por sinal, um implicante epitáfio de Rui Barbosa, no qual ele funcionaria como antagonista retorico da poética elíptica de Paes.
        Nas últimas semanas, não mais o patrono, mas a Fundação Casa de Rui Barbosa como um todo receberia atestado de óbito que, se em direção inversa à dessa série, e sem a sua força crítica, talvez possa ser exposto, por contraste, aqui. Com ênfase em algumas imagens-guia (cemitério, favela) empregadas, sucessivamente, por Emir Sader e Wanderley Guilherme dos Santos.
        Não foi a primeira vez. No começo do governo de Fernando Collor de Melo (1990-92), a Casa Rui estava na lista das instituições extintas. A maior parte dos funcionários ouviu, aliás, a notícia da extinção pelo rádio, a caminho do trabalho. Organizou-se uma ocupação da instituição dia e noite, como forma de protesto, contando-se, nesse momento, com a adesão de artistas, músicos, intelectuais, frequentadores dos jardins, mães empurrando carrinhos de bebês, usuários da biblioteca e dos acervos. Houve até, salvo engano, um encantador de cobras que se dispôs a se apresentar, em solidariedade aos funcionários, no auditório da instituição.
        Dessa extinção, a fundação escaparia. E ganharia força suficiente para, graças à interlocução do antropólogo Gilberto Velho (1945-2012) e com o apoio dos funcionários, fazer voltar à função de gestor Mário Machado, responsável por um novo concurso para pesquisadores e pela criação de um novo setor, o do estudo das políticas culturais no país, que vem sendo muito bem conduzido, desde então, pela historiadora Lia Calabre.
        A segunda morte foi decretada recentemente por Emir Sader em declaração ao jornal "O Globo", no final do mês passado: "Aquilo é um cemitério. Estão há dez anos sem concurso. A última geração está lá sem fazer nada, esperando a aposentadoria". Lembre-se que Sader -que agora nega interesse no posto deixado vago por Wanderley Guilherme dos Santos em janeiro- chegou a ser indicado para a presidência da fundação no começo do governo Dilma e, depois de uma sucessão de manifestações na imprensa, seria retirado do cargo antes mesmo de assumi-lo de fato.
        Há dois anos, revelando total desconhecimento do acervo documental, das bibliotecas e do trabalho realizado na Casa Rui, Sader sugerira a sua transformação num instituto de pesquisas aplicadas (de temática difusa e sem considerar o acervo disponível -e em expansão- da própria FCRB). Sugestões que receberam críticas duras de todo o conjunto de pesquisadores em atividade então na instituição.
        EXERCÍCIO Nas suas declarações pré-Carnaval, mais do que à FCRB, ou ao seu corpo de funcionários (que, sem concurso há dez anos, multiplicam-se por três, por quatro, e exercem muitas vezes funções que não são absolutamente as suas, do contrário a instituição já estaria fechada), a analogia negativa com um cemitério parece apontar, mais uma vez, para o próprio Sader e para um tipo de intervenção intelectual editorializada, de divulgação -constrangedoramente pouco afeita à pesquisa de fontes primárias e à prática regular da investigação conceitual e ao trabalho material lento, obstinado, paciente, de decifração de manuscritos, de listagem de abonações, de escuta dos vestígios, do outro, dos desacordos e variantes, conjugado à necessidade de refiguração sistemática do próprio método arquivístico ao longo do processo de pesquisa.
        Se voltado para a compreensão, intervenção e transformação do presente, o exercício historiográfico -como já observou, belamente, Arlete Farge no seu estudo sobre a experiência do arquivo- "é, antes de tudo, um encontro com a morte", uma tensão entre "o próximo (muito próximo) e o distante, o defunto", um cuidado reiterado de distinguir o novo no velho, as interferências entre tempos, ritmos, silêncios, delimitações, uma escrita em constante construção e revisão. Nesse sentido, a alusão ao cemitério não escandaliza pesquisadores de fato, afeitos a esse convívio, aos desmentidos e armadilhas que essa matéria velha, esses mortos lhes impõem. E aos exercícios de deslocamento e humildade que esse convívio, esse colocar-se no lugar do morto, necessariamente exigem.
        Também parecendo colocar-se em perspectiva aérea, hierárquica ("Eu nunca saí da minha sala. Nunca fiz social"), o ex-presidente da instituição, Wanderley Guilherme dos Santos -em entrevista, já neste mês, também ao jornal "O Globo", que muitos funcionários hesitaram em considerar inteiramente fidedigna-, reiteraria em parte os comentários de Sader.
        Não chega a reproduzir a analogia ao campo funéreo, optando, curiosamente, pela imagem da favela, como impressão inicial (negativa) provocada pelo Centro de Pesquisa. E evocando, desse modo, a desordem, a quantidade de papéis, livros, fichas, empilhados em cada mesa, em cada setor. Imagem de desordem e falta de assepsia e estranha repulsa pela geografia urbana das favelas, que entraria em contradição com outra observação, sobre o caráter acomodado, a execução rotineira de suas tarefas pelos funcionários.
        "O problema é o conformismo que paira nos servidores", declararia na mesma entrevista. Talvez o que o tenha espantado tenha sido, ao contrário, não um conformismo, mas a capacidade de esses funcionários se manterem em suas funções mesmo nas condições mais adversas, de apresentarem projetos de edição, de seminários, de constituição de um instituto de estudos avançados (em convênio com instituições brasileiras e estrangeiras), ampliando para isso o programa de bolsas, extremamente eficaz, implementado ainda na gestão de Rachel Valença à frente do Centro de Pesquisa, e conduzido por Antônio Herculano Lopes.
        TERRA ARRASADA Foi importante, no entanto, na gestão de Wanderley Guilherme, não se optar por uma política de terra arrasada e ter sido dada continuidade a projetos iniciados na gestão anterior, de José Almino Alencar, como o da compra das casas vizinhas que ampliarão o espaço para os acervos ou como a luta por um concurso para reposição de vagas na fundação.
        O que é de estranhar, quando se observa o edital, é o pedido de uma vaga apenas para pesquisador, quando setores que abrigavam 12 pesquisadores regulares contam hoje às vezes com apenas 4, o que dificulta macroprojetos ambiciosos como o do português medieval, o de revisão do pré-modernismo, ou a edição crítica de Drummond, para mencionar apenas três. A indicação de que não se priorizou, num centro de pesquisa, a contratação de pesquisadores não deixa de assustar. E lembrar a possibilidade de a extinção do período Collor estar sendo reavivada talvez surdamente.
        Talvez valha a pena sublinhar, nesse sentido, a importância de existirem (também no campo das ciências humanas) centros de pesquisa dotados de relativa autonomia, como tem sido a Casa Rui.
        Foi essa autonomia que permitiu à instituição a discussão de questões, gêneros, períodos, autores esquecidos, priorizando o âmbito da historiografia literária num momento em que esse campo estava quase morto nas faculdades de letras. E que proporcionou a variedade e a qualidade de trabalhos sobre o Império e a Primeira República que vêm sendo realizados pelo setor de história, estudos de história da língua como os conduzidos atualmente por Ivana Bentes e Laura do Carmo, estudos críticos sobre o Supremo, sobre o direito dos refugiados, como os realizados pelo setor de direito, além das inserções entre a produção mais contemporânea e a perspectiva histórica, presentes em seminários, livros, apresentações e fóruns de debate diversos, que têm sido realizados ao longo das décadas de funcionamento da Fundação Casa de Rui Barbosa.

          George Orwell volta à BBC, agora em bronze - Bernardo Mello Franco

          folha de são paulo

          DIÁRIO DE LONDRES
          o mapa da cultura
          Censura à estátua
          George Orwell volta à BBC, agora em bronze
          BERNARDO MELLO FRANCONão, não é o Bial. O pai do verdadeiro Big Brother, George Orwell (1903-1950), também trocou o jornalismo por outro ramo. Mas manteve distância segura de gente vocacionada para brilhar em reality shows.
          Orwell preferiu a literatura às redações. No clássico "1984", descreveu um regime totalitário em que o Grande Irmão investia em câmeras para espionar a vida de cada cidadão. As cenas de tortura do livro se passam numa certa Sala 101, referência ao local das reuniões longas e improdutivas que aborreciam o autor quando ele ainda assinava seu nome real, Eric Blair, e batia ponto na BBC.
          Há poucos dias, o conselho de Westminster, que administra parte do centro de Londres, autorizou a instalação de uma estátua do escritor em frente à Broadcasting House, a sede reformada da rede britânica. Nada anormal, se o anúncio não incluísse a informação de que a homenagem deveria ter saído antes, mas foi censurada pela emissora.
          O responsável pelo veto foi Mark Thompson, diretor-geral da BBC até o ano passado. Segundo revelou uma das idealizadoras da estátua, ele achou que o ex-funcionário ilustre não merecia a deferência por ter sido "muito esquerdista". O executivo, que agora manda no "New York Times", confirmou a história.
          Não deixa de ser irônico que o "esquerdismo" tenha sido usado para punir um escritor que teve uma de suas obras transformada em peça de campanha contra o comunismo. Socialista democrático, Orwell despejou suas críticas à URSS em "A Revolução dos Bichos", fábula sobre os desmandos de Stálin. Morreu em 1950, quando ainda pegava mal na esquerda criticar o Guia Genial dos Povos.
          A estátua custará 110 mil libras (cerca de R$ 330 mil) e será bancada por doações de gente como o dramaturgo Tom Stoppard e o humorista Rowan Atkinson, o Mr. Bean.
          Enquanto o Orwell de bronze não é inaugurado, os fãs do escritor podem se deleitar com um site da BBC sobre a sua passagem pela rede. A página reúne material de primeira, como o fac-símile da sua carta de demissão, datilografada em setembro de 1943. Está tudo em bbc.co.uk/archive/orwell.
          EU POLACO, TU POLACAS
          "Dzien dobry" não é "good morning", mas a chance de ouvir as duas palavras como cumprimento é cada vez maior por aqui. Na dúvida, improvise um sorriso: você acabou de receber um bom-dia em polonês.
          O idioma acaba de se tornar o mais falado na Inglaterra depois do inglês, segundo o Censo 2011, divulgado no final do mês passado. Deixou para trás o panjabi e o urdu, que lembram o colonialismo britânico na Ásia e ainda reinam absolutos nos mercadinhos 24 horas.
          A imigração polonesa viveu seu auge em 2004, quando o Reino Unido abriu as portas a novos integrantes da União Europeia. Com a crise econômica, muita gente voltou para casa nos últimos anos, e agora o país do Leste Europeu vive uma invasão cultural ao contrário. Os linguistas de lá batizaram o fenômeno de "ponglish", uma mistura de polonês e inglês que já criou palavras engraçadas como "tiszert" ("t-shirt", ou camiseta).
          BOLAS DA VEZ
          O censo também investigou as línguas menos faladas na terra da rainha. Ganhou outro resquício colonial: o crioulo caribenho, com apenas dois falantes. Mais fácil ouvir o inglês jamaicano, cultivado por cantores que imitam Bob Marley no metrô.
          Quem estiver atrás de investimento seguro deve apostar em escolas de inglês para falantes de romeno e búlgaro. São as línguas dos novos migrantes, que poderão fincar bandeira na ilha.
          FILA PARA SE MOLHAR
          Numa cidade onde chove o tempo todo, parece estranho que legiões de moradores e turistas enfrentem até três horas de fila num museu para... pegar chuva. Mas esta é a receita do sucesso da "Rain Room", instalação do grupo de arte contemporânea Random International que tem lotado o Barbican Centre desde outubro.
          O programa é entrar numa sala escura, em grupos de cinco por vez, e caminhar numa simulação de chuva torrencial. Um conjunto de sensores controla os jatos d'água para não encharcar os visitantes, contanto que eles não estejam de preto e evitem movimentos bruscos.
          Ninguém sai inteiramente seco, mas a reação geral é positiva. "Mesmo sabendo como funciona, parece mágica", diz a carioca Elisa Cristophe, que esteve lá em dezembro e se orgulha de ter esperado apenas uma hora e meia para entrar.
          A mostra termina no próximo domingo. Como a vida anda corrida, este diarista vai se contentar com a chuva do lado de fora.

            Arquivo aberto - Julio Medaglia

            folha de são paulo

            ARQUIVO ABERTO
            memórias que viram histórias
            As crias de Curt Lange
            São Paulo, 1959
            JÚLIO MEDAGLIARevirando arquivos em casa, encontrei uma reportagem da extinta revista carioca "O Cruzeiro" do dia 29/8/59. A reportagem acusava o renomado musicólogo alemão naturalizado uruguaio Francisco Curt Lange de roubar manuscritos de obras do barroco mineiro musical e se negar a entregá-los a uma biblioteca pública brasileira, já que se tratava de patrimônio histórico nacional.
            A tese em si estava correta, não fossem os acontecimentos que precederam esse texto malicioso, que ameaçava o cientista musical e descobridor daquele acervo com um mandado de busca e apreensão.
            Curt Lange (1903-97) iniciou seus contatos com a América do Sul na década de 1930. Já famoso, foi levado ao Uruguai para criar uma rádio cultural e uma sinfônica. Com o início da Segunda Guerra, resolveu ficar por lá. Casou-se com uma uruguaia, naturalizou-se cidadão daquele país e latinizou seu nome de batismo, que era Franz Kurt Lange.
            Iniciou uma vasta investigação sobre a música latino-americana, conferindo aos mais diversos acervos encontrados um status cultural até então inimaginável. Tendo feito inúmeras investigações culturais no Brasil, jamais acreditou na tese de nossos musicólogos de que a música brasileira de concerto se iniciara nos primórdios do século 19 com o padre José Maurício e com os músicos da Corte.
            Depois de dezenas e infrutíferas tentativas, batendo na porta das mais diferentes instituições brasileiras, Lange resolveu fazer a pesquisa por sua conta e risco. Com um Jeep adquirido a preço de banana depois da guerra, Lange rumou para as regiões onde o "gold rush" havia propiciado um surto cultural -sobretudo Ouro Preto, Mariana e Diamantina.
            Aos poucos Lange foi identificando resquícios de velhas instituições e confrarias (todas de mulatos) e, em casas de família, armários antigos repletos de papel velho com anotações musicais. Eles eram vendidos em época de festas juninas para fazer foguete -papel velho explode fácil, diziam.
            Adquirindo e reunindo montanhas dessa papelada em seu apartamento no Rio, Lange foi aos poucos restaurando e identificando um tesouro adormecido por quase dois séculos. Passada a fase inicial de descoberta e restauração daquele surpreendente barroco mulato, Lange iniciou outro calvário: a busca de instituições musicais que editassem e apresentassem as obras.
            Nesse momento iniciou-se o bombardeio que culminou com a desonesta reportagem de "O Cruzeiro". Lange nunca se negou a mostrar esses manuscritos que havia adquirido em suas andanças, mas não os repassava a ninguém, pois o Brasil não possuía à época instituições em condições de entender, restaurar e preservar o acervo.
            Apavorado com as ameaças que vinha recebendo, Lange colocou todo o material em seu carro e rumou para minha casa em São Paulo. Minha mãe possuía um enorme armário de madeira em uma dispensa. Esvaziamos o móvel para abrigar aqueles pacotes repletos de manuscritos.
            Apresentei Lange ao mestre Sergio Buarque de Holanda que, identificando a seriedade do trabalho, o convidou para uma série de palestras na USP. A partir de então ninguém ousou questionar a validade da pesquisa e o valor artístico dos manuscritos.
            Na casa, tínhamos uma vira-lata que havia sumido. Depois de alguns dias a encontramos dentro do armário onde estavam as partituras, pouco antes de elas voltarem para a casa de Lange no Rio. Bob, como era chamada, tinha tido quatro filhotes que, no aconchego daquele armário, e sobre "macio estofamento", nasceram com plena saúde.
            Brinquei com minha mãe: "Veja que lindos! Todos pretinhos!" Ela respondeu: "Claro, são filhos do barroco mineiro. Você queria que fossem loiros e de olhos azuis?" Não tivemos dúvidas. Homenageamos os mestres mulatos dando o nome deles a cada filhote: Lobinho (Lobo de Mesquita), Neves (Inácio Parreiras Neves, ao mais clarinho), Rochinha (Francisco Gomes da Rocha) e Marquinhos (Marcos Coelho Neto).