sábado, 16 de fevereiro de 2013

Julio Abramczyk

folha de são paulo

PLANTÃO MÉDICO
JULIO ABRAMCZYK julio@uol.com.br
Lanche engorda adolescente
TEMOS no Brasil pouco mais de 34 milhões de adolescentes, segundo o IBGE. No mesmo levantamento, realizado em 2010, 20,5% apresentavam excesso de peso e 4,9% eram obesos.
Uma das possíveis causas do excesso de peso desses jovens está um estudo de Amanda Solimani Teixeira e colaboradores da Faculdade de Saúde Pública da USP, publicado na "Revista Paulista de Pediatria".
Ao analisar os hábitos alimentares dos adolescentes, os autores viram que eles costumam substituir o almoço e o jantar por lanches.
Encontraram nos adolescentes obesos os que mais substituíam as refeições tradicionais por pizza, hambúrguer ou cachorro-quente.
Apesar de práticos e rápidos, os lanches são altamente calóricos, ricos em gordura e de pouco valor nutritivo.
Além de só engordar, essa alimentação inadequada, quando frequente, promove a redução na ingestão de alimentos saudáveis, como o arroz, o feijão, as frutas e as verduras com suas fibras, vitaminas e sais minerais.
Os autores sugerem a implantação, nas escolas, de um programa multidisciplinar com a participação de nutricionistas. Seriam orientados alunos e seus pais e responsáveis, visando à mudança de comportamento do adolescente frente à alimentação.
Essa medida de educação em saúde poderá evitar, nos futuros adultos obesos, o surgimento de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares.

    Xico Sá

    folha de são paulo

    O país do Amigo da Onça
    A pegadinha da água não quebra o decoro, a ética, a regra do jogo, nada disso, só revela o 'oncismo'
    Amigo torcedor, amigo secador, mais do que o país cordial, o país do jeitinho ou o país da malandragem caricata, o Brasil segue mesmo, tal e qual, é como a pátria do Amigo da Onça -aqui lembrando, para estes moços, pobres moços, o personagem do desenhista pernambucano Péricles (1924-1961).
    No futebol nem se fala. Somos não obrigatoriamente o que ocorre no Senado, por exemplo, apesar de sermos cúmplices na vida real e incendiários tão somente nas redes sociais etc.
    O que acontece nos jogos de bola, no entanto, é sempre a nossa cara. Cagada e cuspida. Um bando de muy amigos da onça. Mesmo dentro da mais absoluta legalidade, caso do Ronaldinho com o Rogério nesta semana no Independência.
    O corvo Edgar, que não tem nada de felino nesse jogo do bicho e muitos menos preza pela mínima moral da história, achou ótimo. Secou como nunca sua obsessão chamada tricolor paulista. Lembrai-vos, caríssimos são-paulinos, a agourenta ave nasceu sob o signo da supremacia do vosso time na Libertadores.
    Foi a então arrogância do clube do Morumbi, amigo, que deu as condições históricas e colheu os garranchos proletários para o ninho do lazarento gerado de uma costela de Poe e das assombrações do urubu de Augusto dos Anjos.
    Sendo o guarda-metas o Ceni, nossa, o corvo vibrou, digo, secou, mais ainda. Não tolera a simpatia do rapaz. Juro que não entendo o motivo. Não deve gostar dos grandes líderes. Não deve curtir quem alveja outros colegas de infortúnio com fulminantes cobranças de faltas. Goleiro que castiga goleiro não tem perdão para el cuervo.
    E chega de explicações e teses de boteco. Um copo d'água e uns agrados orais, como diria o poeta Mr. Catra -eis finalmente a delicadeza perdida-, não se nega a ninguém. Duvido, porém, meu caro, que outro boleiro beba da moringa do Ceni depois do gol do Jô protagonizado pelo genial 10 do Galo nas Minas Gerais.
    O tipo de episódio que deve mudar, doravante, os bons e recomendados modos do fair play. A pegadinha da água, como definiram ontem na Inglaterra, não quebra o decoro, a ética, a regra do jogo, nada. Ela só revela, repito, o "oncismo" -eu mato a sede na tua casa e lá mesmo apronto contigo. Talvez revele mais ainda: a pegada picaresca de anti-heróis brasileiros da literatura de cordel como João Grilo ou Chicó, personagem de "O Auto da Compadecida", do paraibano Ariano Suassuna, o mais ilustre torcedor do Sport Recife que já vi na Ilha do Retiro.
    Não creio em crime premeditado. O Onça é mais do improviso. Muito menos creio em um apagão de memória da zaga do São Paulo. Não se esquece de uma hora para outra que, em cobrança de lateral, não há impedimento. Caíram mesmo no conto do Amigo da Onça. Acontece.
    @xicosa
    xico.folha@uol.com.br

      Walter Ceneviva

      folha de são paulo

      Arrependimento do papa é possível
      É de acreditar que surjam pedidos de admiradores para que não saia; haverá também quem insista na renúncia
      A hipocrisia de muitos e a geração de uma imagem deturpada da Igreja foram destacadas pelo papa Bento 16, ao falar aos fiéis, na missa de quarta-feira, em Roma. Está na síntese de Clovis Rossi publicada nesta Folha anteontem.
      Lembrei-me da anotação quando um leitor, parando-me na rua, perguntou, de chofre: "O Bento pode arrepiar?". A pergunta, uma vez traduzida, é cabível.
      Isso porque o papa anunciou a decisão de renunciar a seu mandato. Está em carta por ele escrita a afirmação de que, por circunstâncias próprias de sua saúde combalida, optou por esse caminho.
      Durante o período final, Bento 16 prossegue no exercício do papado. Continua adotando as medidas de sua competência. Manterá seus encargos até a escolha de seu sucessor, mas já liberado das tarefas atuais. Aguardará a eleição do novo papa pelo conselho dos cardiais que representam o mundo católico. É de acreditar que surjam pedidos de seus admiradores para que não saia. Haverá também quem insista no cumprimento da renúncia.
      Entra na linha da avaliação, depois de sua fala, durante a missa, a possibilidade de que se arrependa. Que retire o pedido em tempo hábil.
      A interpretação aplicável esbarra no fato de que não há, na história do papado, paradigma igual ao enquadramento de desistência do renunciante.
      O último caso remotamente assemelhado surgiu há centenas de anos. O pontífice se apaixonou por uma senhora. Abandonou suas funções. Pouco depois, quis voltar ao cargo. Não foi aceito.
      A situação de Bento, embora política, será avaliada em termos do direito canônico, que corresponde ao conjunto dos cânones ou das normas aplicáveis à Igreja Católica e a seus seguidores. Fora da Igreja, não é direito propriamente dito, à moda das nações com seus governos e governantes. Assim será para o deferimento da renúncia e para avaliação do eventual arrependimento.
      Seriam aplicáveis as leis comuns, do Vaticano, em uma de tais alternativas? Recordemos que os preceitos eclesiásticos da Igreja não se confundem com a lei local, nem a lei local afasta o predomínio dos códigos canônicos para os temas da fé. Uma exceção é o casamento religioso com efeitos civis, permitido pela lei brasileira. Cuida-se de exceção aceita para as duas cerimônias, a civil e a religiosa, se assim for desejado pelos nubentes.
      A duplicidade das leis invocadas (a religiosa e a constitucional) não é cabível na análise da missiva com a qual o pontífice documentou sua renúncia. Trata-se de ato exclusivamente canônico, não encontrado em qualquer outra situação histórica do catolicismo, no qual quis "comunicar uma decisão de grande importância para a vida da igreja".
      Alude às rápidas transformações do mundo. Admite que "nos últimos meses" seu vigor diminuiu. Afirma a incapacidade de continuar no exercício das funções de chefe de sua Igreja, para as quais foi eleito. Anuncia que deixará vaga em "28 de fevereiro de 2013, às 20 horas, a sede de Roma".
      Quem vier depois e, outrossim, for competente (são suas palavras), convocará "o conclave para a eleição de um novo papa". Até lá, estará livre, em face das situações delineadas na missa, para desistir da renúncia ou a retardar, o que parece possível ante o vigoroso pronunciamento desta semana.


        LIVROS JURÍDICOS
        Confiança Contratual
        AUTOR Roberto Senise Lisboa
        EDITORA Atlas (0/xx/11/3357-9144)
        QUANTO R$ 55 (224 págs.)
        "Sem confiança mútua, não se negocia" dá a essência de Senise Lisboa, centrado na palavra-chave da "confiança". Essa ideia introduz o tema, em modo completado na segunda parte, que credencia a confiança como valor fundamental, encaixado no negócio até as expectativas do confiante, na busca da realização do interesse legítimo e digno.
        Responsabilidade Tributária e os Atos de Formação, Administração, Reorganização e Dissolução de Sociedades
        AUTOR Daniel Monteiro Peixoto
        EDITORA Saraiva (0/xx/11/3613-3344)
        QUANTO R$ 128 (586 págs.)
        Parceria Direito GV/Saraiva na tese de doutorado de Peixoto vê teoria e prática da responsabilidade. Eurico M. Diniz de Souza dá, no prefácio, a "formação teórica e filosófica" do autor.
        A Carta das Nações Unidas
        AUTORES Otávio A. Drummond Cançado Trindade
        EDITORA Del Rey (0/xx/31/3284-5845)
        QUANTO R$ 100 (328 págs.)
        Antonio Celso Alves Pereira elogia Trindade por sua tese de doutorado (UnB). Destaca o "rigor metodológico" dos quatro capítulos, com a constitucionalização do direito internacional, que retorna no terceiro capítulo. A adoção da Carta e construção de ordem constitucional, a contar do caso do Timor Leste.
        Registro Civil das Pessoas Naturais
        AUTORIA Lutero Xavier Assunção
        EDITORA Millennium (0/xx/19/3229-5588)
        QUANTO R$ 54 (256 págs.)
        Feliz inspiração de Assunção levou-o ao reexame do registro civil. Titular de cartório em Mirassol (SP), enfrentou o que chama de novos rumos do tema, em versão atualizada até os julgamentos do STF (Supremo Tribunal Federal) em 2011. Percorre normas gerais e especiais do assentamento e dá jurisprudência renovada.
        Fiscalização Trabalhista
        AUTORIA Melchíades R. Martins
        EDITORA LTr (0/xx/11/2167-1100)
        QUANTO R$ 60 (238 págs.)
        Repositório atualizado de jurisprudência, reúne aspectos administrativos e judiciários. Cobre a fiscalização em matéria de competência, oferecendo muitas decisões.
        O Prequestionamento nos Recursos Extraordinários e Especial
        AUTOR Luiz Carlos F. Guimarães
        EDITORA Letras Jurídicas (0/xx/11/3107-6501)
        QUANTO R$ 43 (136 págs.)
        Requisito essencial da admissibilidade encontra suprimento diversificado de doutrina e jurisprudência do tema.

          Após renúncia do papa, cardeais começam a ter tom mais crítico

          folha de são paulo

          ANÁLISE
          JOHN L. ALLEN JR.ESPECIAL PARA O “NATIONAL CATHOLIC REPORTER”, DE ROMANo começo da semana, sugeri que, porque o final do papado de Bento 16 não coincidirá com sua morte, talvez surja maior espaço psicológico para que os cardeais observem o pontificado de maneira crítica, sem que precisem se preocupar por estarem falando mal de um Papa morto.
          Uma pequena confirmação dessa teoria surgiu na forma de uma entrevista concedida a um jornal alemão pelo cardeal Joachim Meisner, de Colônia, um dos amigos mais próximos de Bento 16 no Colégio Cardinalício.
          Numa descrição das qualidades necessárias ao próximo papa, Meisner revelou que, em 2009, procurou Bento 16 em nome de um grupo de cardeais, solicitando que demitisse seu secretário de Estado, o italiano Tarciso Bertone.
          Bertone, 78, serviu ao então cardeal Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé entre 1995 e 2002 e sua indicação como secretário de Estado, em 2006, causou choque no Vaticano, por não ter experiência nesse campo.
          O secretário de Estado é visto como o "primeiro-ministro" do papa -o segundo homem mais importante na hierarquia do Vaticano.
          Ao longo do papado de Bento 16, foi atribuída a Bertone boa parte da culpa por uma série de incidentes vistos como gafes ou desastres.
          Ele se tornou um dos mais importantes símbolos do pensamento dominante sobre Bento 16, visto como um grande professor, mas não tão competente no que tange a administrar o Vaticano.
          Em 2009, a decisão do papa de suspender a excomunhão de quatro bispos tradicionalistas, um dos quais negava o Holocausto, causou controvérsia mundial.
          Bento 16 se viu forçado a enviar uma carta de tom angustiado aos bispos de todo o mundo, pedindo desculpas pela condução ineficiente do assunto mas também se queixando das amargas reações.
          Fontes culpam Bertone por não ter percebido a inevitabilidade do desastre, o que serve como contexto para o apelo de Meisner por sua demissão. De acordo com Meisner, Bento 16 respondeu: "Ouça com atenção: Bertone fica. Basta, basta, basta".
          "Depois disso, não voltei a mencionar o assunto", Meisner disse ao jornal "Frankfurter Rundschau". "É típico. Os Ratzinger são leais, e isso nem sempre facilita a vida deles."
          É certo que a revelação não representa crítica direta ao papa -pelo contrário: Meisner parece estar expressando admiração pela sua lealdade.
          Mas é evidente que ele critica a equipe de Bento 16, e há ainda uma indicação de que o próximo papa precisa selecionar melhor o talento administrativo de que se servirá -e que precisa haver prestação de contas mais séria quanto ao mau desempenho.
          Meisner opinou que o próximo papa precisa ter a profundidade cultural e intelectual de Bento de 16, mas ser muito mais novo.
          JOHN L. ALLEN JR. é autor de sete livros sobre a Igreja Católica

            Da paixão à excelência ( Filarmônica de Minas Gerais) - Fabio Mechetti‏

            Em cinco anos, a Filarmônica de Minas Gerais confirma sua vocação para o desenvolvimento da música clássica no estado, manifestação artística que indica o nível de emancipação social 

            Fabio Mechetti
            Estado de Minas: 16/02/2013 
            Até hoje, não conheci um músico que tenha escolhido seguir carreira pelas recompensas materiais – o que não quer dizer que elas não sejam importantes. O reconhecimento do trabalho, por meio de compensação financeira, não deve ser desprezado. Temos, afinal, que batalhar e nos empenhar, constante e bravamente, para relembrar a todos que poucas profissões revelam-se tão estressantes, exigentes e singulares quanto a de músico de orquestra. 

            Ao nos decidirmos pela profissionalização, sabemos dos inúmeros sacrifícios e dificuldades, pessoais e profissionais, inerentes à escolha. Mas existe um momento em que se torna evidente que outra opção não existe, e que esta é traçada pela paixão pela música e a certeza de que, sem ela, o mundo perderia o sentido e a beleza. 

            É justamente essa paixão que nos impulsiona a investir em horas e horas de aulas e estudos – por vezes com alto investimento financeiro – e a suportar meses de distância do convívio familiar ou dos amigos. Somos também obrigados a abnegar atividades paralelas, que possam nos distrair dos objetivos finais.

            Apesar de tudo isso, preciso ressaltar que as emoções não são as únicas definidoras da eventual escolha pela profissão. Aos sentimentos, une-se o imensurável fenômeno chamado talento. Habilidade natural? Herança genética? Aptidão excepcional? O talento individual é o ingrediente a alimentar músicos e musicistas ao longo de toda a sua trajetória.

            Muitas pessoas talentosas, porém, não exercem completamente o potencial de suas aptidões especiais. O talento se apresenta – em quaisquer atividades – como ponto de partida e só desabrochará caso associado às oportunidades oferecidas e à prática intensa. Para músicos profissionais, muito mais importante será o esforço e a dedicação constante: nove em dez vezes, a disciplina ganhará do talento.

            Quando se escolhe ser músico de orquestra, deve-se assumir o compromisso de usar o talento individual (ou coletivo) não como privilégio herdado, mas como uma responsabilidade artística, de transcendência, para com aqueles que nos escolhem ouvir, e, assim, têm suas vidas melhoradas. Por isso é imprescindível a postura profissional. Devo frisar, aliás, que minha filosofia sobre tal postura – hoje “praticada” por mim como diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais – baseia-se em três pilares. 

            O primeiro diz respeito às ideias de Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C.). O maravilhoso no filósofo grego é que sua linha de pensamento mostra-se extremamente prática e aplicável ao dia a dia, munida de invejável utilitarismo. Em Ética, o pensador propõe que “toda a atividade humana é direcionada a uma finalidade simples, como objeto de um desejo universal humano, de algo que deva ser desfrutado e não como algo que deva ser simplesmente feito ou produzido”. Sua filosofia, pois, busca a felicidade, e não o cumprimento de obrigações. 

            Devemos espelhar essa filosofia na procura pelo bem-estar. Se acreditamos que nosso ofício escolhido levará à felicidade, faz sentido trabalhar melhor, já que, só assim, seremos mais felizes. Aristóteles vai além, ao afirmar que “a felicidade é um tipo de funcionamento da alma em direção à excelência perfeita”. Portanto, a busca pela excelência, em tudo o que fazemos, representa, em última instância, o caminho da felicidade. 

            O segundo pilar da postura de responsabilidade artística diz respeito ao caráter organizacional. Construí tal fundamento a partir da leitura de Good to great, livro de Jim Collins. A obra busca compreender por que certas empresas tornam-se grandes, e realizam todo o seu potencial, enquanto outras permanecem apenas como “boas” organizações. Na visão do autor, o “segredo” está, em primeiro lugar, na necessidade de se ter missão e visão bem definidas – e de não se deixar cair em tentações, como desvirtuar essa missão por sucesso ocasional ou diante de obstáculos “intransponíveis”. 

            Segundo Collins, também é preciso cercar-se de pessoas que, além de competentes, dividam os mesmos ideais e a busca por excelência. Some-se a isso a promoção de uma cultura da disciplina – em que todos os envolvidos funcionem dentro de certa consciência harmoniosa de intenções, capazes de nortear a “visão final” – e o desenvolvimento de trabalho cotidiano.

            O terceiro pilar a que me refiro talvez seja o mais importante de todos. E ele se baseia em um clássico da literatura universal: Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Escrita há mais de 400 anos, a obra-prima contém algo que define a função da arte, e, assim, o papel do artista. A “loucura” de Dom Quixote representa nossa constante luta, sempre motivada pelo idealismo. A grande arte e os grandes movimentos artísticos e estéticos não são os que, simplesmente, retratam ou contemplam a realidade, mas aqueles que tratam de modificá-la. 

            Toda a filosofia de Dom Quixote resume-se em sugerir que não há maior loucura do que ver o mundo como ele é, e não como deveria ser. As aventuras do velho cavaleiro andante são responsáveis pela experimentação de novas propostas, pelo traçado de novos caminhos. Além disso, alguns dos mais importantes valores humanos – mesmo que “produzidos” por uma mente aparentemente doentia – são prontamente resgatados por meio das peripécias do famoso personagem magistralmente criado por Cervantes.

            Inesquecível 

            Em rápida analogia, essa vem a ser nossa função, enquanto músicos, a cada concerto: transformar aquele momento de vida das pessoas em algo melhor do que outra experiência lhes pudesse oferecer. Essa é a filosofia artística capaz de justificar a existência de orquestras sinfônicas e de organizações culturais similares. Orquestras não existem para, forçosamente, dar emprego a músicos, mas sim para que – por meio do emprego de talento, disciplina e excelência – a existência de todos nós, dos dois lados do palco, seja não somente inesquecível, mas também, e principalmente, indispensável. 

            Criada e administrada, desde 21 de fevereiro de 2008, segundo os três pilares nos quais acredito, a Filarmônica de Minas Gerais é, certamente, um dos únicos projetos mundiais de orquestra sinfônica no início do século 21. Ao mesmo tempo em que observamos, nos países da Europa e da América do Norte – onde a cultura segue tradição relativamente contínua de desenvolvimento da música clássica, em geral, e sinfônica, em particular –, um declínio acentuado na quantidade de orquestras e no volume de público, vemos, no Brasil e em Minas Gerais, uma ousada e visionária ação, que recupera o interesse pela instituição sinfônica e investe na certeza de que expressões culturais e artísticas de alta qualidade têm papel expressivo no processo de emancipação social. 

            Com grande alegria e entusiasmo, percebemos que, desde sua criação, a filarmônica constrói um público cada vez maior, não só em Belo Horizonte, mas também no interior do estado e, até mesmo, no Brasil. Sem concessões, buscamos oferecer o melhor possível, em termos de repertório, de solistas etc., sempre a acreditar na força emocional da música de alta qualidade. O repertório sinfônico essencial é garantido na programação, mas ela sempre vai além de obras e estilos já conhecidos do grande público, pois acreditamos que nosso papel é também o de mostrar todas as possibilidades da criação musical de qualidade. O público – tanto aquele que comparece ao Palácio das Artes quanto o que nos prestigia nas outras apresentações – percebe algo especial e nos responde com aplausos, apoio e encorajamento. Eis a justificativa de nosso trabalho e de nossa existência.

            Essa rara chance de, há cinco anos, ter começado uma orquestra praticamente do zero revelou-se, para além do enorme desafio, a oportunidade, singularíssima, para que pudéssemos fazer a diferença, em busca da excelência sinfônica, com músicos e musicistas comprometidos e talentosos. Dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, continuamos a lutar – com a paixão que nutrimos pela música – para que possamos sempre oferecer espetáculos inesquecíveis – e, até mesmo, indispensáveis.
             
            * Fabio Mechetti é diretor artístico e regente titular da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.

            Missão (quase) impossível-Gustavo Fonseca‏

            O ofício de traduzir, associado ao luto e ao fracasso pelo filósofo francês Paul Ricœur, alimenta-se da falha para disseminar a hospitalidade linguística na babel contemporânea 

            Gustavo Fonseca
            Estado de Minas: 16/02/2013 
            Cena de Romeu e Julieta em montagem do grupo Galpão: texto sobre amor e paixão desafia tradutores há séculos (Gustavo Campos/Divulgação - 4/12/99)
            Cena de Romeu e Julieta em montagem do grupo Galpão: texto sobre amor e paixão desafia tradutores há séculos


            Dada a relevância da tradução para a circulação de ideias e as dificuldades linguístico-culturais inerentes à atividade, não é de surpreender que tantos pensadores ilustres ao longo da história tenham refletido sobre o processo de verter um texto numa língua estrangeira. Na França do século 20, por exemplo, seguindo uma tradição nacional secular e na esteira de grandes autores que refletiram sobre a linguagem, como Michel Foucault, Jacques Derrida e Antoine Berman, o filósofo e doutor em letras Paul Ricœur, que se destacou por seu trabalho sobre hermenêutica, fenomenologia e teologia cristã, produziu expressiva obra sobre o ato de traduzir. Na pequena coletânea Sobre a tradução, a Editora UFMG disponibiliza ao leitor brasileiro três de seus principais ensaios dedicados ao tema: “Desafio e felicidade da tradução”, “O paradigma da tradução” e “Uma ‘passagem’: traduzir o intraduzível”.

            No primeiro texto, na verdade um discurso pronunciado no Instituto Histórico Alemão em 1997, Ricœur comenta a angústia do tradutor diante do impedimento de realizar a contento seu trabalho, qual seja, manter intacto o sentido original pretendido pelo autor, o assombro do “fantasma da tradução perfeita”. Para superar essa barreira, Ricœur recorre à psicanálise freudiana e sugere um trabalho de luto, isto é, a continuidade da tarefa de traduzir mesmo estando ciente da falha, do fracasso desse projeto. Em outras palavras, a renúncia ao ideal da tradução perfeita. Dessa forma, para Ricœur, é possível assumir as duas tarefas aparentemente discordantes de “levar o autor ao leitor” e de “levar o leitor ao autor”, expressões que Ricœur toma emprestadas de Schleiermacher. 

            Estando o tradutor livre da angústia originada dessa falta, surge-lhe, de acordo com Ricœur, o prazer de traduzir: “E é esse luto da tradução absoluta que faz a felicidade de traduzir. A felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência sem adequação. Nisso está sua felicidade”. E conclui: “Admitindo e assumindo a irredutibilidade do par do próprio e do estrangeiro, o tradutor encontra sua recompensa no reconhecimento do estatuto incontornável da dialogicidade do ato de traduzir como o horizonte razoável do desejo de traduzir. A despeito da agonística que dramatiza a tarefa do tradutor, este pode encontrar sua felicidade no que eu gostaria de chamar de hospitalidade linguística”. 

            No segundo texto, a aula inaugural de Ricœur na Faculdade de Teologia Protestante de Paris, publicada em artigo na revista Esprit em 1999, o autor retoma os temas abordados em “Desafio e felicidade da tradução” aprofundando-os. Nele, sobressai a defesa do abandono da dicotomia tradutibilidade versus intradutibilidade em favor da alternativa fidelidade versus traição. Na raiz da escolha, novamente o fracasso da tradução perfeita, fato que paralisaria o tradutor, impedindo o trânsito dos textos entre falantes de línguas diferentes, cuja diversidade é ainda incompreensível para o homem e motivo do mito da torre de Babel, belamente emiuçado por Ricœur, e do sonho da protolíngua, a língua perfeita, universal. Para Ricœur, seguindo George Steiner, autor de Após Babel, “compreender é traduzir”. Mais que isso: “Sem a prova do estrangeiro, seríamos sensíveis à estranheza de nossa própria língua? (...) sem essa prova, não seríamos ameaçados de nos fechar na amargura de um monólogo, a sós com nossos livros? Honra então à hospitalidade linguística”. 

            Ainda em “O paradigma da tradução”, de novo sob clara influência de Freud, Ricœur explica o ato de traduzir, acima de tudo, como um desejo. Desse impulso, segundo o filósofo francês, origina-se o trabalho de tradução elaborado por Goethe, o grande clássico; Von Humboldt e os românticos Novalis, os irmãos Schlegel, Schleiermacher, tradutor de Platão, e Hölderlin, tradutor de Sófocles. Mais recentemente, Walter Benjamin, o herdeiro de Hölderlin, segundo Ricœur. E por trás de todos esses expoentes, ressalta o autor, Lutero, tradutor da Bíblia para o alemão movido por sua vontade de “germanizar” as escrituras sagradas, antes restritas ao latim de São Jerônimo. “O que esses apaixonados por tradução esperaram de seu desejo? Aquilo que um deles chamou de alargamento do horizonte de sua própria língua – e ainda o que todos chamaram de formação, Bildung, isto é, ao mesmo tempo configuração e educação, e em primeiro lugar, se ouso dizer, a descoberta de sua própria língua e de seus recursos inaproveitados”. Mais uma vez, portanto, na falta se esconde a origem do desejo.

            Fechando a coletânea, no artigo “Uma ‘passagem’: traduzir o intraduzível”, inédito até 2004, Ricœur volta-se uma vez mais à impossibilidade de verter plenamente uma mensagem verbal de uma língua a outra, o que o leva a continuar defendendo a ideia de hospitalidade linguística. Para ele, no entanto, nesse processo, mais do que dominar as características fonéticas, morfológicas, sintáticas e semânticas das línguas de trabalho, cabe ao tradutor se familiarizar com a cultura dos povos falantes dessas línguas. Assim, de acordo com Ricœur, “a tarefa do tradutor não vai da palavra à frase, ao texto, ao conjunto cultural, mas o inverso: impregnando-se por vastas leituras do espírito de uma cultura, o tradutor desce novamente do texto à frase e à palavra”. 

            Shakespeare 
            Justamente por esse caráter subjetivo da tradução, longe da idealizada correspondência conceitual entre as línguas, é que os resultados obtidos pelos tradutores são tão díspares. Para comprovar esse fato, ainda segundo Ricœur, nada melhor do que comparar as incessantes traduções dos grandes textos, dos grandes autores, como a Bíblia, Homero, Shakespeare, Dostoiévski, Goethe... A cada tradução, revela-se tanto do texto original quanto do tradutor e de seu ambiente cultural. E, ciente de suas singularidades e limitações, o bom tradutor as assume – e mesmo baseia nelas seu projeto. É o que faz com propriedade o poeta Geraldo Carneiro no livro bilíngue O discurso do amor rasgado: poemas, cenas e fragmentos de William Shakespeare. 

            Nessa publicação, o poeta-tradutor se propõe a deixar de lado a erudição, tão presente em tantas outras versões dos textos shakespearianos nas mais diversas línguas, em favor da “eros-dicção” de Shakespeare, “a qualidade que suas palavras guardam de tocar as pessoas e suscitar paixões”. Sua meta é fazer com que as palavras do autor inglês cheguem aos olhos e ouvidos dos leitores com certo frescor, “como se algum poeta popular tivesse acabado de cantá-las no balcão de uma Julieta pós-moderna”. Para isso, Geraldo Carneiro renuncia às palavras empoladas e arcaicas, à sintaxe difícil (tão comuns nas traduções em língua portuguesa de Shakespeare e que só afastam os interessados) e privilegia um vocabulário e um fraseado mais familiares ao brasileiro contemporâneo, mas sem empobrecer a poética shakespeariana. Dessa forma, confirma uma ideia com que Ricœur flerta em “Uma ‘passagem’: traduzir o intraduzível”: a de que “só um poeta pode traduzir um poeta”.

            A seleção de Geraldo Carneiro é constituída de cinco sonetos (15, 18, 65, 76 e 116) e de trechos das peças Romeu e Julieta, A tempestade, Antônio e Cleópatra, Os dois cavalheiros de Verona e Trabalhos de amor perdidos. Como não poderia deixar de ser, alguns dos mais belos textos shakespearianos sobre os prazeres e dores do amor, suas angústias e esperanças, sua salvação e perdição. No soneto 76, que a abre a coletânea, a constância da temática amorosa: “Por que meu verso é sempre tão carente/ De mutações e variação de temas?/ Por que não olho as coisas do presente/ Atrás de outras receitas e sistemas?/ Por que só escrevo essa monotonia,/ Tão incapaz de produzir inventos/ Que cada verso quase denuncia/ Meu nome e seu lugar de nascimento?/ Pois saiba, amor, só escrevo a seu respeito/ E sobre o amor, são meus únicos temas,/ E assim vou refazendo o que foi feito/ Reinventando as palavras do poema./ Como o sol, novo e velho a cada dia,/ O meu amor rediz o que dizia”. 

            Na outra ponta, fechando o livro, logo em seguida ao fim trágico dos jovens amantes Romeu e Julieta, o soneto 116, um alento sobre a perenidade do amor verdadeiro: “Não tenha eu restrições ao casamento/ De almas sinceras, pois não é amor/ O amor que muda ao sabor do momento,/ E se move e remove em desamor./ Oh, não, o amor é marca mais constante/ Que enfrenta a tempestade e não balança,/ É a estrela-guia dos batéis errantes,/ Cujo valor lá no alto não se alcança./ O amor não é bufão do Tempo, embora/ Sua foice vá ceifando a face a fundo./ O amor não muda com o passar das horas,/ Mas se sustenta até o final do mundo./ Se é engano meu, e assim provado for,/ Nunca escrevi, ninguém jamais amou”.

            A iniciativa de Geraldo Carneiro, que há 30 anos falha (no sentido de Ricœur) em traduções de Shakespeare, cumpre o importante papel não apenas de hospedar em português brasileiro textos do maior escritor em língua inglesa, mas sobretudo de ampliar nossas versões da obra shakespeariana, ainda pouco traduzida no Brasil em comparação com os grandes autores franceses, por exemplo. Um fato que não passou despercebido a Millôr Fernandes, outro poeta-tradutor do Bardo e maior incentivador dessas traduções feitas por Geraldo Carneiro. Que mais tradutores compartilhem desse desejo e se aventurem nessa passagem de traduzir o intraduzível. 

            SOBRE A TRADUÇÃO
            De Paul Ricœur
            Editora UFMG, 72 páginas, R$ 24

            O DISCURSO DO AMOR RASGADO
            Poemas, cenas e fragmentos de William Shakespeare
            Tradução: Geraldo Carneiro
            Editora Nova Fronteira, 136 páginas, R$ 39,90

            Angelo Oswaldo de Araújo Santos - Vieira e o mito das minas‏

            Já no século 17, o imperador da língua portuguesa advertia contra a malogro da mineração. O ouro brasileiro projetou a Inglaterra, enquanto Portugal e a América dividiram a escória 

            Angelo Oswaldo de Araújo Santos
            Estado de Minas: 16/02/2013 
            Padre Antônio Vieira, óleo sobre tela de António José Nunes Júnior, 1868, Biblioteca Nacional de Portugal

 (Biblioteca Nacional de Portugal/Reprodução)
            Padre Antônio Vieira, óleo sobre tela de António José Nunes Júnior, 1868, Biblioteca Nacional de Portugal
            O padre Antônio Vieira, que morreu em 1697, quando se espalhavam mundo afora as notícias da opulência das minas finalmente achadas no Brasil, foi um dos maiores entusiastas da restauração do reino de Portugal, em 1640, e sonhava com as glórias de que os portugueses iriam novamente se cobrir. Vislumbrava o Quinto Império nas Cinco Quinas (as cinco chagas de Cristo) que se gravam no brasão lusitano, e acreditava que Deus jamais iria desfavorecer o reino catolicíssimo. Advertiu o próprio Criador, quando os “hereges” holandeses ocupavam o Nordeste brasileiro: “Quare obdormis, Domine?”. Por que dormes, Senhor? – perquiriu o Pai eterno, cobrando pressa na ajuda divina às armas de Portugal contra as de Holanda: “Exurge, quare obdormis?”. 

            Assombroso orador sacro – “imperador da língua portuguesa”, segundo o poeta Fernando Pessoa – e hábil diplomata, não poderia imaginar que, em 1703, seu país iria assinar o Tratado de Methuen com a Inglaterra, pelo qual os ingleses ficaram com a maior parte do ouro das Minas Gerais, fragilizaram o poder de Lisboa e deram início à chamada Revolução Industrial. O sonho delirante do Padre Vieira acabou para sempre nesse acordo terrível. Mas um sermão de 1656 guarda o seu fabuloso vaticínio a respeito do malogro do ciclo do ouro no destino da metrópole.

            Na verdade, ele previu o que iria ocorrer, cerca de meio século antes do advento do famoso manuscrito. Construiu original e instigante interpretação acerca do bom sucesso da mineração. No Sermão da Primeira Oitava da Páscoa, pregado na matriz de Belém do Pará, em 1656, Vieira confortou a decepção dos colonos ante a notícia do insucesso das expedições em busca de ouro na Região Amazônica, dizendo-lhes que “as minas, no caso em que se descobrissem, seriam de grande dano, em particular para este Estado”, sendo “que para o mesmo reino em geral antes haviam de ser de maior opressão e ruína, que de utilidade e aumento”. 

             “E para que comecemos pelos exemplos mais vizinhos” – argumentou Vieira – “que utilidades se têm seguido a Espanha do seu famoso Potosi e de outras minas desta mesma América? A mesma Espanha confessa e chora que lhe não têm servido mais que de a despovoar e empobrecer. Eles cavam e navegam a prata, e os estrangeiros a logram. Para os outros é a substância dos preciosos metais, e para eles a escória.”

            Continuou o pregador: “Lá disse Isaías falando do Reino de Israel: Argentum tuum versum est in scoriam; e o mesmo se poderá dizer sem metáfora da prata de Espanha. Ainda com mais doméstica propriedade se lhe pode aplicar o dito do seu mesmo patrão Santiago. Argentum vestrum aeruginavit, pois a prata se lhe tem convertido em cobre, e a fama e opulência de tanto milhão, em belhão”.

            Segundo o dicionário do velho Morais, belhão é “moeda de baixa lei, ou muita liga”. Com o irônico trocadilho, cifrou-se o futuro de Portugal. Não se pode negar que, da parte de Vieira, tenham faltado cuidados no sentido de preparar os portugueses para a auris sacra fames, a fome sagrada do ouro. Assim como a Espanha e sua prata do Alto Peru, Portugal viu o seu ouro passar a outros países, e o tratado de 1703 foi o grande instrumento de transferência da fortuna das Minas Gerais para os cofres de Londres.

            A descoberta das minas gerais do ouro, no final do século 17, havia alvoroçado a vida portuguesa em momento crucial. Desde a restauração da monarquia lusitana pela casa de Bragança, Portugal sonhava com a riqueza que julgava ainda escondida no interior selvagem do Brasil, a exemplo do que havia sido reservado aos espanhóis, no Oeste do continente sul-americano. Com a responsabilidade de consolidar a independência, depois de 60 anos de domínio espanhol, o rei dom João IV sabia que, sem uma resposta positiva das entranhas brasileiras, o reino não teria como se firmar e ficaria à mercê de uma nova sujeição aos interesses insubmissos de Madri. Constrangido no finisterris da Península Ibérica, seria fatalmente devorado pela Espanha, caso não encontrasse tesouros no Brasil, já que se haviam rapidamente perdido os louros das conquistas inauguradas por Vasco da Gama no Oriente.

            Empenhou-se o primeiro Bragança no sentido de incentivar a busca do ouro nos sertões do Brasil, estimulando sobretudo os paulistas à aventura. Aferrados ao apresamento de índios para venda como escravos nas plantações de cana e nos engenhos de açúcar do Nordeste, os paulistas desciam o Tietê no rumo do Rio Paraná, pelo qual alcançavam os territórios dos guaranis, retornando com levas de bugres (palavra que vem de búlgaros, tidos como bárbaros europeus) à vila fundada em 1554 pelos jesuítas exatamente para educar e proteger os indígenas. Sertanistas experimentados, a gente de São Paulo vai assim organizar caravanas, que ganham o nome de bandeiras. Os bandeirantes se arregimentaram não só na vila do colégio jesuíta, mas também nas povoações surgidas entre sesmarias no Vale do Rio Paraíba do Sul, o chamado Norte de São Paulo, como Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá, de vez que a rota principal era precisamente a Serra da Mantiqueira, a grande muralha para além da qual se supunha estar o eldorado.

            Da Bahia, subindo o São Francisco, o rio dos currais, na trilha dos rebanhos da Casa da Torre de Garcia d’Ávila, várias expedições se beneficiaram de apoio oficial, contando com o beneplácito da metrópole e do governo geral da colônia, sediado em Salvador. Foram as entradas. Algumas delas chegaram ao Norte do de Minas Gerais, sem êxito, contudo, quanto ao achamento do ouro. Isso só veio a ocorrer com a bandeira de Fernão Dias, que partiu de São Paulo em 1674, ultrapassou a Mantiqueira e acompanhou o Rio Paraopeba, afluente do São Francisco, pelo qual atingiu o Centro e o Norte de Minas.

            Manuel Borba Gato, genro de Fernão Dias, afastou-se da bandeira no Sumidouro, perto de Lagoa Santa, e tomou a direção de uma grande montanha, a ita-beraba-açu indicada pelos índios, ou seja, a pedra brilhante grande. Na realidade, era o morro logo depois batizado como Serra da Piedade, que faz parte do belo horizonte da capital mineira e guarda, na ermida construída pelo português Antônio Bracarena, uma Pietà de Aleijadinho. O que brilhava era minério de ferro. Mas Borba Gato recolheu ouro da melhor qualidade na confluência do Rio Sabará com o Rio das Velhas (o Guaicuí, rio das tribos ancestrais). O arraial ali implantado ganhou o nome de Sabará, corruptela de itaberabaaçu e sabarabuçu.

            Em 1696, a bandeira de Salvador Fernandes Furtado chegou ao Rio do Carmo, junto ao qual fundou a cidade de Mariana. Dois anos depois, os bandeirantes Antônio Dias de Oliveira e padre João de Faria Fialho descobriram a região do Ouro Preto, ouro excepcional, recoberto por uma camada negra de óxido de ferro. Em seguida, incontáveis grupos de desbravadores logo tornados garimpeiros multiplicaram arraiais pelo vasto território dos ricos aluviões. Invadiram o ivituruí, o Morro dos Ventos Frígidos ou Serro Frio, ao norte; Pitangui e Itapecerica, a oeste; Rio das Mortes, Sapucaí e Campanha, ao sul. O leste eram as Minas Gerais sem fim, até o Rio Casca, contidas pelas áreas proibidas dos sertões do Rio Doce, para que não houvesse saída para a capitania do Espírito Santo e seu porto.

            Emboabas 

            Milhares de pessoas se contaminaram com a febre do ouro, procedentes de São Paulo, Rio de Janeiro e Nordeste, além de Portugal, que teve receio de ver o reino despovoado em razão do excesso de imigrantes para as minas do Brasil. O ano de 1701 registrou grave desabastecimento e crescente tensão nas Minas, já que os moradores se entregaram à faina das bateias e abandonaram as plantações de milho que haviam garantido a longa jornada até o sítio da fortuna.

            Em 1709, para viabilizar a presença do Estado português, foi criada a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, cumprindo a promessa de dom João IV (1640-1656), mantida por dom Afonso V (1656-1668) e dom Pedro II (1668-1706), até a assunção de dom João V (1706-1750), de que a governança do território aurífero seria dada aos paulistas, caso o conquistassem. Isso provocou a Guerra dos Emboabas, que durou até 1720, uma vez que os paulistas entraram em conflito com portugueses, fluminenses, baianos e pernambucanos, pretendendo hegemonia total sobre as minas. Em 1711, foram criadas as três primeiras vilas de Minas Gerais, Mariana, Ouro Preto e Sabará, com suas câmaras municipais, pelo governador Antônio de Albuquerque, enquanto o rei mandava recolher e queimar os exemplares de Cultura e opulência do Brasil, publicado pelo jesuíta Antonil, em Lisboa, com todos os detalhes relativos ao itinerário que levava aos principais focos mineradores. 

            Na mesma ocasião, o corsário francês Dugay-Trouin havia invadido e pilhado o Rio de Janeiro, o que fez Albuquerque descer o Caminho Novo com seis mil homens de armas para defender a cidade já arrasada e o acesso ao tesouro do Brasil. Mas em 1703, os ingleses já tinham entrado em cena e ficado com tudo.

            A vida pareceu demasiadamente fácil, de uma hora para outra, quando os primeiros navios começaram a desembarcar os cofres de barras de ouro no porto de Lisboa. Era o milagre do fervor católico e da audácia dos bandeirantes, pelos quais se materializara, enfim, o desejo que descera da caravela de Cabral dois séculos antes, sem qualquer resposta imediata da selva e dos silvícolas. Portugal inundou-se de ouro, mas o país passou a se esvaziar. O Norte inteiro abandonou vinhedos e vinícolas, aldeias e vilas, correndo a Matosinhos rezar ao Senhor Bom Jesus antes da viagem apavorante pelo oceano em busca do paraíso dourado no meio de longínquas e altíssimas montanhas.

            Teria fascinado os portugueses a possibilidade de venda direta de sua produção de vinho aos ingleses. Resolvido o problema comercial e garantidas as safras, o Norte não mais se evacuaria, pois a continuidade da produção poderia reter a população ensandecida pelos apelos das Minas Gerais. Portugal foi então o primeiro país a criar um passaporte para os nacionais que saíssem, a fim de controlar o êxodo (passaportes eram exigidos apenas na entrada e não na saída dos estados). Mas as terras propícias à agricultura foram assim direcionadas para a vitivinicultura, o que levou à escassez de alimentos e ao aumento dos preços e das importações.

            O Tratado de Methuen é conhecido como o Tratado dos Panos e Vinhos, porque Portugal se comprometeu a comprar toda a produção têxtil inglesa para que a Inglaterra adquirisse a produção vinícola nacional. Firmado no reinado de dom Pedro III, três anos antes da chegada ao trono de dom João V, que morreu em 1750 como o Luís XIV lusitano, e vigente até 1836, suas três cláusulas concederam a franquia do mercado inglês aos vinhos de Portugal e a dos mercados portugueses aos tecidos da Inglaterra. Nas cláusulas secretas, ficou assegurado o domínio português na margem norte do Rio da Prata, a banda oriental onde havia sido fundada a cidade lusa de Colônia do Sacramento, mais tarde graças aos mesmos ingleses declarada República Oriental do Uruguai, uma espécie de amortecedor entre Brasil e Argentina. 

            Como havia déficit no balanço de pagamentos em favor dos tecidos e manufaturados ingleses, o ouro de Minas Gerais cobriu a diferença e bancou o êxito da Revolução Industrial, financiando o progresso da Inglaterra. Dona Maria I mandou destruir as rocas de fiar disseminadas pelas Minas para que o pano inglês não perdesse mercado. O resto do ouro se foi. De acordo com a previsão do Padre Vieira, os portugueses ficaram com a escória, que continua a ser, três séculos depois, a cota parte dos mineiros do Brasil. 

            João Paulo-Moderninhos conservadores‏

            Estado de Minas 16/02/2013

            O anúncio da renúncia do papa Bento XVI revelou que todos são modernos. Não houve quem, na onda de comentar o que significa a saída de cena do líder religioso, deixasse de enquadrar o papa como conservador. Na verdade, houve quase uma comemoração velada da vitória das demandas do mundo sobre os ombros envelhecidos do renitente passadista. Sem entrar nos méritos e nas causas da decisão do homem Ratzinger – que merecem respeito por sua coragem e desprendimento – é importante mostrar que nem tão modernos assim são os críticos do papa.

            Há muitas maneiras de definir o conservadorismo. Nosso tempo pós-moderno parece ter resumido o progressismo apenas a questões referentes ao indivíduo. Assim, a Igreja ficou para trás porque não acompanhou, no processo de aggiornamento tocado pelo consumo, anseios de felicidade que brotam do desejo sexual, do conforto dos bens de consumo e da competição conspícua. A Igreja se tornou velha pelo fato de não entender que o homem quer gozar o tempo todo, na posse de corpos e objetos e em relações de poder verticais.

            Os moderninhos, no entanto, são conservadores em política, tanto quanto o papa, que combateu a teologia da libertação e o compromisso com a justiça social. Em outras palavras, o papa era conservador em política e comportamento. Os “críticos” que hoje falam em novas tendências da Igreja são igualmente reacionários em política, embora se anistiem a si próprios defendendo o direito de prazer individual acima da busca pela igualdade social.

            Acredito que, hoje em dia, ninguém espere a decisão do papa para saber se vai ou não usar camisinha; se vai manter o casamento sem amor; se vai discriminar os gays; se vai considerar as mulheres incapazes de certas funções (como dirigir missas). Os que usam os argumentos da Igreja, frente a tantas evidências contrárias da ciência, do humanismo e da civilização, já eram preconceituosos, homofóbicos e machistas muito antes da ascensão dos conservadores aos postos de mando na Igreja.

            Se a forma como a Igreja se porta em relação a essas questões é hedionda, desumana e odiosa, tudo que podemos esperar é que, com o tempo, se torne tão extemporânea como desimportante. Tudo leva a crer que não será na Igreja nem no pensamento religioso que o homem buscará inspiração para sua jornada na Terra. A Igreja não tem nada a ensinar em termos de comportamento sexual, uniões afetivas, uso de preservativos, homossexualidade e temas afins. 

            Outro campo em que a religião só atrapalha é o da relação como conhecimento. A história nos ensina que o saber é a reforma de uma ilusão. Todo pensamento que parte da certeza absoluta será não apenas equivocado como perigoso. O fundamentalismo, seja ele da razão ou do espírito, é o que nos afasta da humildade de nossa ignorância e da coragem de buscar um pouco de luz. Assim como não podemos esperar da religião auxílio sobre o que fazemos com nossos órgãos sexuais, não podemos esperar dela qualquer esclarecimento com relação os mistérios da matéria.

            Se a religião agoniza para o sexo e o conhecimento, servirá para quê? É justamente essa questão que aponta para a dimensão simbólica do ato de renúncia de Ratzinger. A religião cuida das coisas do espírito. É nesse campo que se pode cobrar, esperar, seguir, obedecer ou criticar as religiões. E não se trata de uma questão menor, já que a espiritualidade é dimensão constitutiva de nosso ser no mundo. A Igreja, por isso, é convidada a participar do grande e aberto debate sobre a ética e a política. 

            E é aqui que o conservadorismo é mais grave: o atraso em política não nos impede apenas de sermos felizes, mas efetivamente humanos. Todos os erros do papa em matéria de comportamento e ciência não podem fazer mais mal à Igreja que seus equívocos em matéria de política. Do papado de João Paulo II e Bento XVI ficaram lições preocupantes de reacionarismo político. Não se trata de um debate entre diferentes concepções de sociedade, mas de elisão do diálogo em nome de valores particulares e, aí sim, conservadores. 

            É importante reparar que a Igreja nunca gostou de liberdade. Para ser mais realista, menos ainda de democracia. O papa João Paulo II chegou a chamar a atenção para o que considerava um das formas de idolatria moderna, como se democratizar fosse, de alguma forma, enfraquecer a autoridade centralizadora. Instituições fechadas não gostam de conversa e não consideram que as pessoas são iguais. Por isso a Igreja nunca será democrática. Sua base é a hierarquia, não a equidade.

            Libertação

            A Teologia da Libertação foi a última grande tentativa de modernizar a Igreja sob o ponto de vista da política. Mesmo partindo, como o nome indica, da perspectiva teológica, seu horizonte era a sociedade dos homens e a necessidade de seu aprimoramento em direção a uma moral da igualdade e da justiça social. O movimento cristão decorrente da Teologia da Libertação, ao transformar as pessoas na verdadeira Igreja, criava um compromisso com a transformação social. A Igreja se faz povo.

            A opção teológica e pastoral tinha, por isso, uma tradução política nas práticas sociais, com base no profetismo hebraico e na leitura contemporânea dos pecados da civilização. Para a compreensão dos descaminhos do mundo, a escolha foi o a filosofia do materialismo histórico, o que deu nova dimensão ao compromisso espiritual da religião cristã. Havia, dessa forma, uma teologia, uma hermenêutica da história e uma práxis social. O objetivo era a libertação de todas as formas de opressão. A Teologia da Libertação criou o chamada opção preferencial pelos pobres.

            Ferramenta de aprimoramento político a partir da leitura espiritual do mundo, a Teologia da Libertação avançou para programas ampliados de crítica social, que ia da denúncia dos contextos de opressão ao anúncio de circunstâncias humanizadoras, que passavam pela mudança das relações de poder (mais democracia) e da organização econômica (mais distribuição de renda). 

            A derrocada da Teologia da Libertação, entre os muros da Igreja, se traduziu ideologicamente no reforço do neoliberalismo fora dos limites de sua cidadela. Assim, ao recusar a política, a Igreja nada mais fez que reforçar sua leitura política da realidade, conforme veio construindo no decorrer dos séculos em sua opção preferencial pelos ricos e poderosos. O cisma atual não é entre política mais ou menos conservadora. A política não parece mais estar em questão.

            O sucessor de Bento vai emergir de uma problemática que envolve mais sexo que política, mais pedofilia que justiça social, mais liberdade individual que luta contra a opressão. A Igreja já mostrou que não entende nada de sexo. Se a instituição não se tocar para sua responsabilidade com a sociedade, depois de se tornar obsoleta em comportamento vai se mostrar descartável em política. O gesto do papa que renuncia, ao identificar seus limites, mostra que ele se tocou pela dimensão humana do tempo. Não resolve tudo, mas já um bom sinal.


            jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

            Os rebeldes do Caparaó

            Há 46 anos, o regime militar instaurado pelo golpe de 1964 detectava o primeiro sinal de insurgência com a descoberta de um movimento de guerrilha numa das maiores serras das Gerais 

            Estado de Minas: 16/02/2013 
            Tendo à frente o ex-3º sargento Amadeu Filipe da Luz Ferreira, os prisioneiros da Serra do Caparaó se põem em fila antes de serem levados para Juiz de Fora, onde iriam ser submetidos a inquéritos, na 4ª Região Militar
            Tendo à frente o ex-3º sargento Amadeu Filipe da Luz Ferreira, os prisioneiros da Serra do Caparaó se põem em fila antes de serem levados para Juiz de Fora, onde iriam ser submetidos a inquéritos, na 4ª Região Militar

             

            “Afinal apareceu uma coisa diferente no Brasil, coisa que de certo modo quebra a monotonia cotidiana.” Foi assim que Carlos Drummond de Andrade abriu sua crônica publicada no Estado de Minas, em 7 de abril de 1967, tratando da Guerrilha do Caparaó, primeiro movimento armado de oposição ao regime militar instaurado com o golpe de 31 de março de 1964. Um dia antes, os últimos integrantes do grupo que tentou implantar nas montanhas de Minas um modelo de resistência nos moldes da guerrilha de Sierra Maestra, em Cuba, haviam sido presos pela Polícia Militar do estado com pouca resistência. Entre o final de 1966 e data de sua prisão, os insurgentes tentaram despertar o país para uma atitude que se tornava cada vez mais rígida da cúpula militar. Não conseguiram de imediato. Mas, com o tempo, a mobilização dos cerca de 20 homens que subiram a Serra do Caparaó, na Zona da Mata mineira, se tornou conhecida. 

            A gestação da primeira ação armada contra a ditadura começou nos próprios quartéis, logo nas semanas seguintes ao golpe, quando cerca de 1 mil militares, acusados de subversão, foram expulsos do Exército, Marinha e Aeronáutica. Muitos deles haviam apoiado a posse de João Goulart, vice-presidente de Jânio Quadros, em 1961, depois que o presidente renunciou, o que gerou insatisfação de alguns setores das Forças Armadas. Depois de 1964, as divergências internas seriam punidas com expulsões e prisões. Foram esses sargentos e marinheiros que perderam seus empregos e sofreram com a linha-dura dos novos líderes do Brasil os primeiros a se organizar para denunciar o autoritarismo do regime.

            Influenciados pelo cenário internacional, em que ganhava cada vez mais destaque a Revolução Cubana e a pregação do revolucionário Ernesto Che Guevara contrária à intervenção dos Estados Unidos na América Latina, os sargentos se reagruparam clandestinamente para articular uma resposta ao grupo que chegou ao poder. Depois de procurar apoio do político gaúcho Leonel Brizola, que estava exilado no Uruguai, e conseguir financiamento do governo cubano, os sargentos criaram o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Mas no Sul os levantes não foram para frente e a região da Serra do Caparaó, na divisa de Minas com o Espirito Santo, se tornou a melhor opção para os insurgentes.

            SEM APOIO A partir do segundo semestre de 1966, guerrilheiros foram chegando de vários estados, em pequenos grupos ou individualmente, cada um levando o armamento possível. A primeira tarefa era fazer reconhecimento da região, trançando os melhores pontos para montar guardas, e fazendo contato com moradores da região, na tentativa de ganhar apoio para a causa. No entanto, ao contrário do plano traçado, a participação da população da região não ocorreu e a movimentação dos guerrilheiros acabou gerando curiosidade e desconfiança sobre o que se passava por ali. 

            O dinheiro que vinha de Cuba parou de chegar e a dificuldade de levar a ação adiante ficou cada vez mais clara para o grupo, que enfrentava também a presença de ratos nos depósitos de comida. Os alimentos ficavam contaminados e as doenças começaram a se espalhar entre os guerrilheiros. Aos poucos a resistência seria minada, com alguns homens desistindo da luta e outros sem condições físicas de manter seus postos. As prisões começaram em março, quando dois insurgentes foram presos na tentativa de embarcar em um trem em Espera Feliz, nos sopé do Caparaó. Cercada pela Polícia Militar de Minas, que já acompanhava a movimentação do grupo, a dupla foi presa e entregue ao Exército (4ª Região Militar), em Juiz de Fora.

            No final de março, as forças de segurança já tinham identificado o acampamento da guerrilha e poucos remanescentes tentaram reagir – houve até troca da tiros com a polícia –, mas sem representar grande resistência. Alguns que conseguiram fugir da serra – em número não confirmado pelos registros oficiais – foram presos às margens da BR-116 e também levados para o presídio de Linhares, em Juiz de Fora. 

            O contragolpe do regime militar contou com um grande efetivo. Nos dias seguintes, mais de 3 mil homens foram enviados à região à procura de guerrilheiros que poderiam ter ficado no Caparaó. Helicópteros fizeram bombardeios e dezenas de civis, principalmente na região de Manhumirim, nos arrabaldes da serra, também foram detidos, acusados de ter colaborado com os “bandoleiros ladrões de gado”. O primeiro ato contra o regime militar acabou antes mesmo de ter sido colocado em prática efetivamente, mas a mensagem de insatisfação contra a ditadura serviu de exemplo para grupos que passaram a surgir no final da década de 1960, e até o retorno da democracia deixaram claro que o autoritarismo dos quartéis não passaria em branco.

            Constatando o fracasso do levante – “vencido pelos ratos, antes do combate com as tropas” –, o escritor mineiro não deixa de valorizar a tentativa: “Aqueles camaradas magros, barbudos, enfraquecidos, que desciam da montanha e se esgueiravam entre sombras, intrigavam os moradores das margens do Manhuaçu. Até a polícia acorda nessas ocasiões. E polícia acordando, o Exército vai ver o que é que há. Foi. Os guerrilheiros presos, e a Serra do Caparaó, ao que tudo indica, não será mais agora-outrora uma versão mineira de Sierra Maestra. Mas aconteceu. Esse nome de guerrilheiros soa a nossos ouvidos com um timbre de herói moderno, que às vezes tem sorte, e muitas outras entra pelo cano. Mas, sem dúvida impressiona mais do que o guerreiro, tão velho e gasto este último que até o Ministério da Guerra mudou de nome, pela reforma administrativa”, finaliza Drummond.