quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O radical de centro Paradoxos de um intelectual por FERNANDO DE BARROS E SILVA



O radical de centro

Paradoxos de um intelectual
por FERNANDO DE BARROS E SILVA
 REVISTA PIAUÍ - EDIÇÃO 77 


 Se ocorresse a um álbum ilustrativo das figuras do poder no Brasil, uma das maiscuriosas seria o radical de centro. Não exatamente uma figurinha rara – muito menos do que ele próprio gostaria –, mas um tipo carimbado, ao mesmo tempo peculiar e sintomático do jeitinho brasileiro de reagir ao fim das utopias e vivenciar as frustrações da esquerda em escala mundial.
O radical de centro é, na sua origem, um intelectual que chegou atrasado ao espetáculo da História e foi pego no contrapé de suas convicções, mas a tempo de se emendar sem que virasse uma viúva inconsolável do mundo que se foi. Por exemplo, um intelectual da geração de Fernando Haddad. Fez sua educação político-sentimental mais ou menos entre o declínio da ditadura no Brasil e o fiasco planetário do socialismo, de meados dosanos 70 a 89, ano em que Lula também perdeu o trem rumo à estação Finlândia e Fernando Collor, da maneira destrambelhada que se sabe, colocou o país nos trilhos da modernização capitalista conservadora, onde até hoje nos encontramos (às vezes mais, às vezes menos).
O radical de centro deve seu enraizamento na paisagem brasileira a Fernando Henrique e Lula. Foi nos seus governos, quando o horizonte das mudanças de que eles eram portadores foi rebaixado e as perspectivas pessoais de certa esquerda paradoxalmente se ampliaram, que esse personagem meio desalojado de si mesmo finalmente se encontrou.
Hoje ele está em toda parte, transitando indefinidamente entre a empresa pública e a iniciativa privada, do cargo no governo (que ele chama de missão) ao assento no conselho de alguma empresa de proa (que ele finge ser um fardo). Hay que saltitar, pero sin perder las convicciones jamás– é este o seu lema.
Na direção de uma estatal, por exemplo, ele encontra energia para criticar os apadrinhamentos, a política de favores, o aparelhamento da máquina, os privilégios, com os quais, no entanto, convive de perto. Ao deixar o governo, procura transformar o desgaste acumulado durante anos de tensão retórica em gesto heroico e exemplo de resistência. Vira então colaborador regular de um jornal conservador, que faz oposição frontal e sistemática ao governo a que ele até a antevéspera servia. Afinal, é importante ocupar espaços na mídia burguesa, alargar o debate e coisa e tal.
 O radical de centro viaja sempre a favor da maré, mas transmite invariavelmente a sensação de que rema contra ela. Ele é o neomonopolista do bom-senso, defende sempre o meio do caminho entre dois pontos. E de lá, do meio do caminho, trata de agarrar os dois. Entre apocalípticos e integrados, fecha com ambos, reconhecendo-lhes as razões. Tem um pé no reino (ou na ruína) socialista, outro no PMDB. Ou na aliança do PP de Paulo Maluf com o PT pós-mensalão. O radical de centro é uma espécie de malandro contemporâneo. Mas um malandro de consciência infeliz, que não consegue deixar de se levar a sério. O seu samba é triste.
 Como intelectual que é, busca ser fiel às aspirações de juventude e ainda paga seu tributo ao pensamento sombrio da Escola de Frankfurt – é, afinal, um radical. Mas nunca deixa, ao mesmo tempo, de fazer a crítica construtiva àqueles que se protegeram na torre de marfim da teoria, sem pôr as mãos na massa – afinal, sabe reconhecer a importância das pequenas conquistas. Entre Adorno e Michel Temer, ele se equilibra sem sorrir.
A sua grande referência intelectual no Brasil é Roberto Schwarz, em quem enxerga, com justiça, o ponto mais alto que o pensamento de esquerda pode alcançar. Seu comportamento, porém, está mais próximo de outro Roberto, o Mangabeira Unger, aquele que certo dia acusou Lula de ser o presidente mais corrupto da história e tempos depois integrava o governo do mesmo Lula, brincando de salvar o país enquanto despachava de terno e gravata em uma secretaria qualquer de assuntos estratosféricos. Como esse outro Roberto, o radical de centro é hiperativo, participa de muitas comissões, acumula tarefas, anda sempre ocupado e parece sempre insatisfeito. Um pouco por tudo isso, e a despeito de sua cordialidade essencial, o veterano da esquerda o considera um tipo meio café com leite.

O radical de centro segue petista, apesar de tudo. Petista crítico, claro. Mas nutre ternura pelo PSOL, sentimento do qual intimamente se orgulha. Vê os psolistas como bons selvagens da política brasileira, rousseauístasnuma época corrompida, grilos falantes a nos alertar para as ameaças da selva capitalista. O PSOL tem espaço cativo no seu coração, mas os hábitos e o padrão de vida do radical de centro são basicamente tucanos. Ele é uma espécie de condensado involuntariamente cômico e voluntariamente bem-sucedido do progressismo brasileiro.
E também é professor. Não precisa mais disso, mas gosta, acha bonito lecionar. Na sala de aula, inflama-se ao falar de ética, tema central de sua agenda pedagógica. Escreve frequentemente sobre o assunto. Vai, ou acredita ir sempre à raiz do problema. É um radical, como Marx. Na prática, vive como alguém de centro vive da política, de acordo com as possibilidades (e oportunidades) de sua época. À noite, com a cabeça no travesseiro, às vezes lhe toca refletir sobre os paradoxos insuperáveis da existência.
Outro dia o radical de centro ouviu pela primeira vez uma canção bem engraçadinha de Zeca Baleiro. Chama-sePastiche. Os versos que não lhe saíram mais da cabeça diziam o seguinte:

Um anjo veio e me disse: gauche!
A vida veio e me pintou guache

Caseiro e estranho por EUCANAÃ FERRAZ‏




Caseiro e estranho

por EUCANAÃ FERRAZ
REVISTA PIAUÍ - EDIÇÃO 77
Em 2005, os jurados do prestigioso prêmio literário Griffin assinalaram que os poemas de Matthew Rohrer mostram “a visão de mundo de um jovem americano incapaz de assumir o manto do herói, incapaz de ser ‘o adorável menino’”.
Nos versos desse poeta, nascido em 1970, no Michigan, e crescido em Oklahoma, o mundo também não é, de fato, um território de heróis. E, curiosamente, tudo ali é tão banal quanto inusitado. Nada é excepcional quanto aos temas – acontecimentos cotidianos, personagens comuns, cenas e ambientes urbanos ou flashes em que a natureza parece emergir da memória; o mesmo se dá com a forma – sintaxe clara, escolha vocabular descomplicada e tom decididamente coloquial. De tudo isso resulta, no entanto, um universo extravagante. O leitor logo percebe que está diante de significados movediços, construídos por frases instáveis, combinações estranhas e vazios. Trata-se, sem dúvida, de uma escrita marcada pelo insólito: se nada escapa da esfera cotidiana, o trivial vê-se inteiramente entrelaçado com a imaginação e a liberdade.
James Tate, poeta e professor, ao comentar um dos livros de Rohrer observou que seus poemas podem partir nosso coração com inesperadas reviravoltas: “Você acha que sabe onde está, mas você não sabe, e isso é inexplicavelmente triste.” E ainda: “Você experimenta algum tipo de emoção que não pode nomear, mas que é profunda e real.”
Essa escrita oblíqua, nervosa, tem ainda como grande aliado o humor. Em entrevista de agosto de 2010, Rohrer afirmou:
Eu amo humor na poesia... Quando você nunca o encontra, há algo de suspeito nisso. Na obra e também no poeta como pessoa.Mas não estou falando de poemas que são inteiramente piadas ou trocadilhos ou que são apenas engraçados. Isso é tão chato quanto qualquer outra coisa que bate numa tecla só. Eu acho que um poema deve ser capaz de ter comédia e tragédia na mesma dose. Esse tipo de variação emocional deveria ser possível em um poema – o poeta deve estar atento para as emoções, como elas conseguem se movimentar e de que modo o fazem. Isso me parece mais realista do que um poema inteiramente trágico ou meramente engraçado... Provavelmente, a maioria dos poemas não consegue isso. Eu só estou dizendo que todos nós devemos pensar que eles podem, e operam sob essa suposição, mesmo que a gente nunca consiga fazer isso.
Rohrer publicou, até o momento, A Hummock in the Malookas (1995), Satellite (2001), Nice Hat. Thanks, em parceria com Joshua Beckman (2002), A Green Light (2004), Rise Up (2007), They All Seemed Asleep (2008), A Plate of Chicken (2009) e Destroyer and Preserver(2011). Além da inclinação surrealista, da livre imaginação, do humor cortante, sempre destacados pela crítica, em todos os livros pode-se, igualmente, “ouvir” as leituras do poeta, suas conversas, encontrar cenas de jantares com amigos, de um passeio de carro, de brincadeiras com a filha. Seu surrealismo é, digamos, caseiro; assim como sua urbanidade é povoada por árvores, bichos, pássaros, e seu frescor não esconde uma melancolia intensa.
O não adorável menino é hoje um nome acolhido com entusiasmo no panorama da poesia americana contemporânea. Vive no Brooklyn e ensina no curso de escrita criativa, graduação e pós-graduação da Universidade de Nova York. Seus poemas, traduzidos por Sylvio Fraga Neto, aparecem pela primeira vez em português no Brasil.

UM GUIA DO MÊS DE JUNHO[1] PARA JOVENS

Quando seu dia começa com a consciência nítida da própria morte
            inspirada por um tema de televisão com o qual
            acordou na cabeça

e quando no trabalho você só consegue produzir longas listas
            de perguntas,
            perguntas boas, perguntas inteligentes, páginas
            de perguntas
            irrespondíveis se alastrando como uma árvore genealógica

e quando no almoço você dirige pela cidade e desconhecidos
            acenam de vitrines onde penduram bandeiras

e quando a noite é úmida demais para que apaixonados se deitem juntos
            mas o fazem mesmo assim e depois se arrependem da excitação
            nos lençóis grudentos

e quando, e especialmente quando, seu amor sai
            e você fica acordado por uma hora coçando picadas de mosquito
            nas coxas

e quando o bairro está tenso pelo que aconteceu com aquela
            menininha, tão tenso que uma porta batendo dispara alarmes de carro e
            atiça os animais

e quando num domingo senhores de idade são vistos chorando no boteco da esquina
            porque perderam contato com os filhos ou porque seus filhos
            batem nos filhos e é Dia dos Pais

e quando o calor é excessivo para certos passarinhos que simplesmente caem
            do céu

tenha paciência.

UM VELÓRIO PARA O TELEFONE

Um telefone desconectado queda morto na mesa.
O plástico frio.
Os furos no receptor como estrelas colapsadas negras.
O bocal, incapaz de gemer, de recitar novos poemas,
de pedir que alguém traga uma garrafa de vinho.

O casal idoso, que jantava, ficou chocado
quando o telefone se jogou no chão em vez de tocar novamente,

o fio espiral como o rasto de cabelo molhado numa piscina natural,
a maneira como que se deita amontoado na mesa,
o discador preso entre números.

Jamais ligará para o presidente.
Jamais ajudará o reencontro de antigos colegas.
Não sofrerá o silêncio incômodo de um convite romântico.
Nunca mais alguém ofegante.

Em muitos sentidos o telefone está aliviado.




AH, SIM, AQUELA PERGUNTA

Os médicos desistiram, estão na recepção cochichando
com as velhas secretárias. O terceiro andar está espesso de flores.
Um padre divaga em silêncio.
Lê a etiqueta de uma pintura a óleo.

Em cada quarto um paciente ofegante.
Suas doenças são insabíveis; os médicos desistiram,
há um cheiro que pode ser dos corpos ou da comida que encomendaram.
A respiração difícil se junta às roucas luzes fluorescentes.

O padre, proibido de desistir, faz sua ronda de novo.
Nos quartos, as telas das tevês são azuis e um fluido pinga corajosamente.
Os médicos desistiram, então maquininhas vigiam os pacientes
e arrulham em consolo. Os pacientes estão encolhendo.
Uma menina e um menino são enviados de quarto em quarto para confortá-los
mas com as portas fechadas ela beija a bochecha do menino.
Os pacientes nada sabem e o fluido pinga.
Os médicos desistiram, deixaram para trás seus estetoscópios,
que ficam lá, escutando e escutando.




LAMENTO DE UMA CRIANÇA CANTANDO NO TELHADO

Uma formiga indo de uma lâmina de grama
para outra, mil vezes a mesma coisa
no retângulo ensolarado.
Quando a luz do sol nos alcança, chega transformada,
enormes partículas azuis.
Quando nos alcança é antiga, e nós somos antigos.
Mantemos nossas bexigas no corpo com alças azuis.
Melros se elevam dos tufos de grama para dentro da luz,
se amando. Ou fazendo algo parecido,
simplesmente cometendo atos sob o sol, cada um resultando
no próximo, até chegar ao telhado onde uma criança ri.
Sua bola tem uma hélice dentro, ela decola,
sobe, o menino percebe que essa pode ser sua última chance
de dizer algo a ela.
Oh, bola, você foi o brinquedo perfeito.
Quando eu chegar à puberdade deixarei este retângulo
em busca de uma mulher igual a você.



Algum cara disse que Wittgenstein provou que não há pensamento sem linguagem.
Wittgenstein nunca viu um passarinho ou um urso.
Árvores balançavam no parque e suas copas se encostavam com ternura.
Mesmo sendo o mais novo, eu sou o professor!
Corvos gritam para mim no telhado e não conseguem pousar.
Acordo indistinguível da manhã deslavada.
Tudo que sou é pensamento sem linguagem.
Credo

Acredito que exista algo mais

acontecendo mas ninguém
nunca saberá
então nos apaixonamos.

Também poderia ser verdade que nosso
abridor de lata do dia a dia tenha sido algo
muito mais nobre, que jamais reconheceremos.

Acredito que a mulher adormecida ao meu lado
não se importe com o que acontece
lá fora e seu corpo está aquecido
de esperança,
o que é um belo começo.




FELIZ ANIVERSÁRIO

O amor dos outros é perfeito
em sua imperfeição, abre caminho
ao campo de flores na montanha.
Eu te trouxe essa flor
dos altos prados do Colorado
com todo o peso do verão azul
em cima.
Quando puxei a flor, ela suspirou.
Bem-me-quer.
Você morava em Florença e eu estava bêbado.
Estarei sempre bêbado.





Poema

Você ligou, está no ônibus, no domingo,
acabei de tomar banho e espero você
chegar. Nuvens vêm deslizando do mar,
mas o quarto é delicadamente aceso pela camisa
verde que você me deu. Tenho praticado
uma nova forma de dizer oi e é fantástica.
Você estava tão triste: tchau: eu estava tão triste.
Todas as lojas estavam fechadas mas o céu
era alto e azul. Fui dar uma volta para ver se passava,
mas devo ter andando na direção errada.


[1] Junho é o primeiro mês de verão nos Estados Unidos. [N. T.]