domingo, 3 de fevereiro de 2013

Sim,eles falam - Silvia Corrêa


Sim, eles falam


É um ritual: estaciono e eles começam a latir em um coral ritmado, igual todos os dias. Latem sem ver meu carro, porque paro longe do portão. Certamente, o barulho do motor anuncia minha chegada.
Os latidos são muito semelhantes quando Nenê, minha fiel ajudante, chega para trabalhar. Mas mudam completamente quando o entregador de pizza toca a campainha, um pedestre desavisado caminha mais perto do muro ou quando esquilos pulam entre as árvores.
Para quem os ouve, parece evidente: eles conversam entre si e com os cães da vizinhança. E as características do latido mudam conforme a mensagem que emitem: "Você chegou!", "Cuidado, estranho" e "Bom dia, Nenê!". Será?
Ilustração Tiago Elcerdo
A veterinária Sophia Yan, da Universidade de Davis, na Califórnia, foi atrás das respostas. Ela gravou latidos de dez cães, emitidos em três situações: quando um estranho batia à porta, se eram deixados do lado de fora da casa e quando estavam brincando. Jogou tudo em um computador, que analisou frequência,duração e amplitude dos latidos. E concluiu que há ao menos dois tipos: de incômodo e de alegria.
Na Hungria, cientistas foram além: resolveram checar se os outros cachorros entendiam as mensagens. Eles gravaram quatro sons: dois tipos de latidos (emitidos na presença de um estranho e quando os cães eram amarrados a uma árvore e deixados sozinhos) e dois ruídos, uma furadeira e um refrigerador.
Tocaram os sons para 14 outros cães, monitorando a frequência cardíaca deles, e notaram que ela subia, e bastante, apenas quando eram expostos ao latido de aproximação de estranhos.
Para os pesquisadores, não há dúvida: os cães são capazes de emitir diferentes sons conforme a situação em que se encontram e, mais do que isso, são capazes de perceber diferenças entre os latidos originados em diferentes contextos.
Em resumo: eles falam. Nosso desafio, agora, é compreender as sutis nuances dessa linguagem.
Sílvia Corrêa
Sílvia Corrêa cursou jornalismo e veterinária. Trabalhou por 13 anos naFolha e, depois, nas principais emissoras de televisão do país. Escreve aos domingos, a cada duas semanas,na revista são paulo

Laertevisão

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cartum

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CHICLETE COM BANANA      ANGELI

ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE

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DAIQUIRI      CACO GALHARDO

CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES

FERNANDO GONSALES
MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI

ADÃO ITURRUSGARAI
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER

ALLAN SIEBER
GARFIELD      JIM DAVIS

JIM DAVIS
HAGAR      DIK BROWNE

DIK BROWNE

Charge

folha de são paulo

CHARGE

Acumulação primitiva - Fernando Bonassi

FOLHA DE SÃO PAULO

IMAGINAÇÃO
prosa, poesia e tradução

FERNANDO BONASSIAgora está provado: é realmente como num conto de fadas ou história de piratas, pois a pesquisa de uma consultoria econômica independente revelou que os nossos representantes dentre os homens mais ricos do mundo, todos, sem exceção, têm em comum o fato de haverem obtido uma cópia do mapa do tesouro quando seus pais morreram ou se aposentaram a bem do serviço público. É documento considerado apócrifo por muitos diplomatas e historiadores oficiais, e sua existência é veementemente desmentida por aquelas famílias de intelectuais banqueiros e latifundiários acadêmicos que se apossaram deles. Não querem falar no assunto, é claro, pois implicaria revelar os poderes ocultos e as palavras mágicas com o segredo original de sua prosperidade. Cada um desses papéis centenários custou uma média de setenta e cinco mil dólares, comprados de gente pobre, analfabeta, ou incapaz de compreender os sinais cifrados que eles continham. Teriam sido financiados por um banco do Estado, num regime de partilha com o setor privado em que os recursos não chegavam aos verdadeiros proprietários, esgotando-se pelo caminho. As cópias, que passaram de mão em mão fechada até os nossos dias, ensinam exatamente o passo a passo, os valores a serem doados e o local determinado onde existem esses supostos tesouros que, nas histórias tradicionais, são compostos por sabedoria, caráter e responsabilidade, mas aqui tratam de lugares obscuros como cavernas, tribunais, pântanos e regiões onde prospectar petróleo, incentivos fiscais, manganês, ferro, informações privilegiadas, urânio, obras de construção civil, gás natural, armamentos, imprensa e fertilidade do solo. Com os proventos derivados desses mapas do tesouro é que os nossos homens mais ricos do mundo e suas famílias praticam caridade, construindo museus em sua própria memória e garantindo a sobrevida de municípios importantes para o turismo nas regiões carentes e potencialmente explosivas. Nada disso deve ser motivo de vergonha, mas de orgulho, pois tais mapas, se comprados com dinheiro público como se diz, tornam a todos nós, cidadãos contribuintes, sócios e cúmplices desses empreendimentos bilionários. Viva!

    O submarino verde [Leonilson] - João Pedrosa

    folha de são paulo

    ARQUIVO ABERTO
    Memórias que viram história
    São Paulo, anos 1980
    JOÃO PEDROSAConheci José Leonilson Bezerra Dias (1957-93) em 1982, durante sua primeira exposição em São Paulo, na galeria Luisa Strina. Ele me convidou a visitá-lo e imediatamente iniciamos uma amizade que durou até sua morte.
    As políticas e poéticas ilustrações na Folha, os artistas de que gostava, os amigos, as festinhas, a feitura diária de sua obra, as viagens, exposições, colecionadores, marchands: tudo isso compunha o mundo particular de Leo, que era habilmente cultivado, mas que às vezes ruía de súbito.
    Numa dessas ocasiões, ele me ligou chorando. Corri então até a sua casa na Vila Mariana, levando o melhor exemplar da coleção de brinquedos vintage que tinha: um submarino de metal movido a corda. O brinquedo inglês, dos anos 1940, era inspirado no Nautilus, de "20 Mil Léguas Submarinas". Numa visita a minha casa, Leonilson tinha amado o brinquedo.
    Submarino dado, lágrimas secas: tão rapidamente como afundava o mundo de Leo na depressão, se dava sua passagem para a alegria, súbita e impressionante. Fiquei feliz, com um sentido de dever cumprido. Quando, na saída, comentei sua boa mudança, ele disse, candidamente, com um tom entre a confissão e a dissimulação: "Na verdade, eu só estava triste porque queria tanto o submarino".
    Assim era a personalidade única de Leonilson. Sua alma arraigada na ancestralidade nordestina, sua lírica, sua poesia, seu afeto, seu talento e seu cosmopolitismo se combinavam a manifestações bíblicas de ira, falso moralismo, indignações e brigas ideológicas que não duravam 24 horas. Outros causos como este, oscilando sempre entre o divino e o ridículo, ainda geram comentários e risos incontidos quando lembrados pelo seu grande círculo de amigos.
    O indignado moral, defensor dos fracos e oprimidos, não importando se era fútil ou fundamental sua demanda, também era capaz de sugerir que restaurantes tivessem pelourinhos para açoitar os garçons, que ele constituía, quase todos, em seus inimigos mortais.
    Nos almoços semanais, aos quais compareciam Leda Catunda e Sérgio Romagnolo, Jan Field e Eduardo Brandão, Adriano Pedrosa, Fábio Cardoso, Daniel Senise, Caetano de Almeida e Edgard de Sousa, Isa Pini e Ana Tavares, apostávamos em segredo a que altura da refeição ele encrencaria com o garçom. Quase sempre acertava quem dizia que já na entrada.
    Leo rapidamente conseguiu visibilidade internacional e reconhecimento por parte dos colecionadores, um sucesso merecido. Sua arte sedutora, inesgotável, em muito se deveu ao seu caráter curioso de artista plástico profissional e intelectual amador.
    Ele era um rio de informações, sensibilidade e poesia. Sempre me indago como ele estaria, como seria hoje, como seria sua obra, que lugar teria no mercado; como seria sua vida amorosa, sua relação com seus marchands; o que ele acharia da internet, das redes sociais, da tecnologia, dos novos desafios do mundo, da ecologia, da política, da crise, da arte, de tudo.
    Se o HIV o tivesse atingido alguns anos mais tarde, o coquetel poderia ter feito dele um sobrevivente. Mas sobreviver talvez não bastasse para uma alma como a sua, maior do que a vida. Certa vez, no princípio de sua fama, eu lhe disse, brincando: "Você é o Volpi da nossa geração". Ao que ele respondeu, entre irritado e divertido: "Mas eu quero ser o Picasso!".

      A Pequena Vítima de Salve Jorge - MARTHA MEDEIROS



      ZERO HORA - 03/02/2013

      Criança só custa caro quando é educada por duas criaturas mais infantis do que ela

      Quando Salve Jorge começou, disse a mim mesma que não veria um único capítulo. Ainda estava meio surda por causa da gritaria de Avenida Brasil e queria minha paz de volta. E assim foi: não assisti aos primeiros capítulos. Mas aí, um dia, gostei de adiante lembrei que o ótimo Alexandre Nero estava no elenco, além do colírio do Domingos Montagner, e passei a simpatizar com a maquiavélica Wanda de Totia Meireles, e quando dei por mim, havia sido capturada para o dramalhão mais inverossímil da televisão brasileira – ou alguém consegue aguentar a moscona da Morena que, com a finada Jéssica, passava as tardes na casa da delegada sem conseguir denunciar que havia sido traficada?

      Me irrita a trouxice das personagens femininas da maioria das novelas. Acho louvável que a autora Gloria Perez procure usar o maior petardo da programação da Globo para trazer à tona assuntos pouco discutidos pela sociedade, como é o caso do tráfico de pessoas, mas a forma canastrona com que esses dramas costumam ser apresentados faz com que eles pareçam pouco reais.

      O que tem me deixado chocada nessa novela não é a seringa que o personagem de Claudia Raia leva na bolsa para algum imprevisto ou os tapas que o parrudo Russo distribui no cativeiro das beldades. O que me cala e me constrange é uma criança que está sendo manipulada pelo pai em meio a um divórcio litigioso. Aquilo ali, sim, é real, muitíssimo comum e igualmente criminoso.

      Não consigo imaginar nada mais brutal do que dizer para um filho: “Tua mãe não te ama”. O mesmo vale para mães que dizem isso aos filhos a respeito dos pais. Quem faz essa covardia com uma criança é quem verdadeiramente não a quer bem. Usar o sentimento de inocentes a fim de atingir um cônjuge que passamos a odiar é de uma agressividade tão letal quanto uma injeção no pescoço, tão dolorido quanto um soco de um brutamontes.

      Nem todos que agem assim o fazem por maldade. Muitos o fazem por ignorância. Mas até ignorantes deveriam possuir alguma sensibilidade para entender que uma criança necessita de segurança emocional e não de ser envolvida nas brigas de um casal que um dia resolveu se unir, e que mais adiante resolveu se separar. Casamento não precisa ser para sempre, mas a responsabilidade parental, sim.

      Crianças não conseguem processar direito o que vivenciam. Assumem culpas que não possuem, fantasiam abandonos, se responsabilizam pela infelicidade dos pais, e pior do que tudo, se sentem desprotegidas em um lar briguento. Crescem e se tornam homens e mulheres paranoicos, inseguros, acovardados diante da vida.

      É uma tecla insistentemente batida, mas pouco escutada: criança precisa ser amada. Não precisa de um iPhone aos nove anos, não precisa ir a Disney antes de ser alfabetizada, não precisa de um guarda-roupa de estrela de cinema. Precisa ser amada. Sai de graça.Só custa caro quando é educada por duas criaturas mais infantis do que ela. 

      Por dentro (e por fora) da festa de Cartagena

      FOLHA DE SÃO PAULO

      DIÁRIO DE CARTAGENA
      o mapa da cultura
      Lado A (e B)
      Por dentro (e por fora) da festa de Cartagena
      CASSIANO ELEK MACHADOCartagena vive uma contradição, a da difícil convivência dos chapéus com o forte vento caribenho. Jovens e idosos, turistas e cartageneros, andam pelas ruas da enorme Paraty colombiana, segurando seus "sombreros", como já o fizeram Bill Clinton e João Paulo 2º (há provas).
      Não espanta, pois, que na saída do teatro Adolfo Mejía haja um plantão de vendedores de chapéus, prontos para encaçaparem um panamá no turista incauto. Mas, nos quatro dias do Hay Festival Cartagena, na semana restrasada, outro grupo disputava com eles a cabeça dos passantes: os cambistas. "Olha a entrada pro Julian Barnes", anuncia um bigodudo. "Herta Müller, Herta Müller", acena outro rapaz, tão magro que faz lembrar a frase da estrela do Hay 2013, Mario Vargas Llosa: "Era tão magro que parecia viver de perfil".
      LITERATURA AMBULANTE
      Martín Murillo Gómez era vendedor ambulante há alguns anos. Nem chapéus nem ingressos: atuava no ramo de águas e refrigerantes. Um dia, o jornalista Jaime Abello Banfi, diretor da Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo (FNPI), notou o ambulante mergulhado na leitura de um Saramago. Ficaram amigos, e Jaime começou a lhe dar livros e apresentá-lo a uma porção de escritores, incluindo Gabo.
      Em 2007, Martín mudou da água pros livros: criou o "La Carreta Literaria ¡Leamos!", espécie de carrinho de sorveteiro que circula pela cidade emprestando livros -e tem até patrocinadores. Martín alimenta um blog e um Twitter (@La
      CarretaesLeer), já escreveu suas memórias e foi convidado a importantes eventos literários na Venezuela, México e Argentina. Aguarda ansioso um convite do Brasil.
      SAPOS E FAISÕES
      Depois de sua comovente fala no festival, sobre sua relação com as plantas na infância, Herta Müller foi vista rastejando no jardim do Hotel Santa Clara. Estava seguindo um sapo. Sobre outro animal, que aparece no título de uma novela que sai no Brasil, "O Homem É um Grande Faisão no Mundo" (Companhia das Letras), a Nobel 2009 deu esclarecedor depoimento. "Para os alemães, o faisão é arrogante. É símbolo de exibicionismo. Para os romenos, o faisão é símbolo de humildade. Pobrezinho, é uma ave que não pode voar", disse a teuto-romena.
      AFUERAS
      Único brasileiro no Hay colombiano, o carioca JP Cuenca pôde conhecer o lado B de Cartagena (bem maior do que o A, diga-se). Além das palestras da programação central, no centro histórico, ele falou para 80 alunos de uma escola técnica na periferia da cidade de quase 1 milhão de habitantes. Antes, ouviu um discurso em língua indígena. "Na Colômbia há 66 idiomas indígenas vivos", espantou-se ele, que conversou com o público (em espanhol) por mais de uma hora e meia.
      MELHOR BAR DO MUNDO
      Todos os caminhos levam à salsa. Com efeito, o último debate foi sobre o requebrante ritmo caribenho. Um dos debatedores foi o Mario Jursich, diretor da ótima revista colombiana "El Malpensante", tradutor de Rubem Fonseca e organizador de "¡Fuera Zapato Viejo!", compêndio sobre a salsa em Bogotá a sair nos próximos meses.
      Da teoria, Jursich passou à prática. Conduziu uma boa caravana de escritores ao Quiebra-Canto, lendário bar "salsero" em frente à muralha que cerca a parte histórica de Cartagena. "Este é o melhor bar do mundo", diz o jornalista colombiano Ricardo Corredor Cure.

        Baco é do balacobaco

        folha de são paulo

        Em 2013, a Vai-Vai celebra o vinho
        ANDRÉ CZARNOBAIRESUMO A histórica agremiação carnavalesca nascida em 1930, 14 vezes campeã em São Paulo, homenageia a produção vinícola do país em seu enredo de 2013. A Vai-Vai esquenta os tamborins pela última vez em sua quadra na Bela Vista com samba e iguarias de rua que vão do tradicional churrasquinho à batida de dropes Halls.
        Sempre que fevereiro vem chegando e surge a oportunidade rara de ouvir o lamento de uma cuíca eu me dou conta de que não sei absolutamente nada sobre Carnaval. Em busca de, quem sabe, aprender alguma coisa, fui numa noite de terça-feira até a Bela Vista prestigiar um ensaio do Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Vai-Vai, maior campeã do Grupo Especial da capital, dona de nada menos que 14 títulos.
        Dissidência mais arruaceira de um time de futebol e grupo carnavalesco tradicional do Bixiga chamado Cai-Cai, a agremiação nasceu em 1930, na forma de duas manifestações paralelas: o Bloco dos Esfarrapados e o Cordão Carnavalesco e Esportivo Vae-Vae.
        Reza a lenda que eram chamados assim ("Vae-Vae") em tom jocoso e adotaram as cores preto e branco como chumbo trocado, já que, por algum motivo esotérico, elas representariam "as cores do Cai-Cai invertidas".
        São pouco mais de 19h e, apesar de ainda ser dia claro e estarmos a duas semanas do Carnaval, faz um pouco de frio quando chego à sede da escola, na rua São Vicente. Me dirijo até a bilheteria, mas não há ninguém lá. Um homem grande, coberto de correntes e segurando ingressos e cédulas surradas na porta, diz que é com ele mesmo. Encontro R$ 20 no bolso do casaco, preço exato do ingresso, e consigo entrar.
        Curiosamente, nesse caso específico, entrar quer dizer sair. Os ensaios da Vai-Vai acontecem todas as terças, quintas e domingos em plena rua, que fica fechada para os carros durante cerca de três horas. Infelizmente, essa peculiaridade da escola está com os dias contados: o espaço é uma concessão da prefeitura, que pretende usar o terreno em suas obras de construção da linha 6 do metrô. Este é o último Carnaval da escola no endereço.
        Ao descer as escadas que me conduzem de volta à rua, sinto a leve intimidação que sempre nos acompanha quando chegamos desacompanhados a um território desconhecido e me encosto na parede. Ainda é cedo e há pouca gente por ali.
        À minha frente, na outra calçada, há um bar, tomado por integrantes da comunidade. À minha direita, uma senhorinha a que todos se referem como "Tia", confere os ingredientes do seu bufê self-service de hot dog e tosta uma linguiça na chapa enquanto sua habilidosa ajudante destrincha um pernil. As barracas de bebida e comida começam a ser montadas.
        VINHO Neste ano, além dos tradicionais churrasquinho com cerveja e o dog self-service ultrabombado da "Tia", há também uma curiosa barraca Vinhos do Brasil, servindo suco de uva e vinho em taça de plástico a preços populares (R$ 2). A iniciativa é bancada pelo Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), não por acaso patrocinador do enredo da escola em 2013, "Sangue da terra, videira da vida: Um brinde de amor em plena avenida -vinhos do Brasil!".
        Há inclusive a frase "beba com moderação" no samba. O movimento na barraca do Ibravin é bem significativo, levando em conta a estranha combinação. Talvez o clima esteja ajudando.
        Na barraca de churrasquinho, os espetos de coração, linguiça, frango, carne e queijo de coalho custavam invariáveis R$ 3 -o mesmo preço de uma série de batidas, que atiçaram meu paladar aventureiro. Além dos sabores mais domésticos (coco, maracujá) havia os ousados (amendoim, vinho, milho) e os psicodélicos (Halls sabor Extra-Forte Lypthus).
        Para a tristeza de minha alma (e possível felicidade de minhas entranhas), a de Halls estava em falta. Acabei pegando uma de coco. Veio num pote plástico, branco e geladinho. Rompi o lacre da tampa e senti aquele buquê característico: traços de metanol, notas de gasolina. Mesmo assim, pelo espírito da noite, dei um gole moderado. Havia pedaços na mistura, supostamente (tomara) de coco.
        Nutrido por dois espetinhos de carne e dando bicadinhas cautelosas na batida, fui em direção à bateria, que começava a tocar. Logo aprendi que a lateral da bateria é, por excelência, a zona dos gringos. Ficam todos ali, tirando fotos, fascinados. Lá estava o quintessencial argentino bronzeado de bermuda, moletom e Nike sem meia.
        Também um trio de loirinhas, todas de coque, usando roupas muito soltas, caminhando de um jeito muito mole, querendo emular algum tipo de ginga local. Mas a peça de resistência era o tiozão de boina, bigode, mochila e tênis amarelo fosforescente, mexendo pernas e braços de forma inexplicável ao som da batucada enquanto puxava assunto com todo mundo que se aproximava.
        Pouco antes das 21h todos os puxadores finalmente assumem seus postos e o ensaio começa. Os espectadores liberam a rua e, durante cerca de meia hora, pouco mais de uma centena de integrantes canta o samba-enredo em "loop" a todo vapor, enquanto desfila pela rua uma dúzia de vezes.
        Além da bateria, estavam presentes a ala das crianças, a ala dos compositores, a velha guarda, boa parte das baianas (senão todas), uma ala coreografada, dois casais de mestre-sala e porta-bandeira e um sem-número de passistas absolutamente impressionantes -com destaque para Cláudia Furacão, do alto de seus 17 anos, pouco recomendável para cardíacos.
        Ninguém enverga sua fantasia, mas ninguém parece se importar. Exceto por mim. Esperava ver adereços aludindo a Baco, tapa-sexos de folhas de parreira, uma profusão de cachos de uva e a inevitável ala do colono italiano, com o famoso pé rachado (que vem a ser, por sinal, a alcunha do primeiro presidente da Vai-Vai).
        Mas Carnaval é coisa séria por aqui, e nada seria revelado antes da hora. As fantasias dos destaques e os carros alegóricos (que ficam escondidos no barracão, a quilômetros dali, no Sambódromo do Anhembi) são mantidos em sigilo total até o dia do desfile. A prática não é exclusiva da Vai-Vai, e respeitá-la faz parte do código de honra da Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo.
        NARGUILÉ Ao fim da primeira parte do ensaio, os integrantes da escola se dispersam. Um ritmista tira um narguilé da mochila e o fica segurando pela parte de vidro, enquanto outros dois tentam acender o carvão com um maçarico. Depois de breve intervalo, começa a segunda parte, a tradicional volta pelas ruas do bairro.
        O locutor então anuncia Beyoncé como atração para o aniversário de 84 anos da escola, no ano que vem. Em seguida, se corrige, dizendo que a vinda da cantora americana ainda está sendo negociada. O ensaio vai se aproximando do fim e, apesar de reunir álcool e samba, combinação que muitos tomam erroneamente por explosiva, o clima é absolutamente familiar.
        Talvez seja esse o grande aprendizado dessa noite: Carnaval é família. É comunidade. Poucas vezes na vida me senti tão acolhido no meio de perfeitos estranhos. Impossível ir a um evento desses e não voltar minimamente impactado, sobretudo pelo amor que todas aquelas pessoas demonstram umas pelas outras e por algo tão etéreo e abstrato quanto uma escola de samba.
        Se é isso o que essa escola ensina, já me sinto no lucro -até porque a receita da batida de Halls ninguém quis me dar.
        EM TEMPO: Você, caro leitor, que quiser curtir um ensaio da Vai-Vai no seu último ano na rua São Vicente tem até quinta (7), a partir das 19h. Na madrugada de sábado, a escola será a quarta a desfilar no Sambódromo pelo grupo especial, com horário previsto para as 2h30.

          Cai o pano - Sobre Walmor, Cacilda, "Amor" e morte a dois

          folha de são paulo

          HELOISA PONTESRESUMO Nos mais de 40 anos que separam a morte de Walmor Chagas da de sua companheira de vida e palco, Cacilda Becker, em 1969, cumpriu-se um ciclo no teatro brasileiro. O suicídio do ator ecoa o tema da dignidade ao sair de cena, evocada também na morte do casal Gorz, em 2007, e no filme "Amor", de Michael Haneke.
          A hipótese de suicídio foi confirmada: o ator Walmor Chagas matou-se com um tiro na cabeça em 18/1. Os resíduos de pólvora na mão direita são da arma calibre 38 com a qual deu fim à vida. Sentado e com o revólver no colo, ele foi encontrado pelo caseiro do sítio em que residia havia mais de 20 anos.
          Grande nome do teatro brasileiro, com presença destacada na televisão, Walmor andava sumido nos últimos tempos. Ao contrário de algumas atrizes extraordinárias de sua geração -Fernanda Montenegro e Cleyde Yáconis, entre outras-, ativíssimas nos palcos e na televisão, Walmor se afastara deles. Mas continuou a atuar, de maneira esporádica, no cinema.
          Seu último trabalho, na pele de um general conservador, em "Cara ou Coroa", de Ugo Giorgetti, exibido no ano passado, não nos deixa esquecer sua força interpretativa. No papel de um anticomunista convicto, porém contrário à utilização da tortura, Walmor constrói o personagem com o recurso expressivo do olhar e do silêncio. Misturados na dose certa, eles exprimem, em registro cênico, a ideia, tão bem formulada pelo filósofo Merleau-Ponty, de que "a linguagem diz peremptoriamente quando renuncia a dizer a própria coisa".
          A interpretação reservada de Walmor no filme, com frases lacônicas, ajuda a desvelar recessos sombrios da ditadura. E resume sua maneira de atuar, "bastante discreta, porém intensa, um trabalho contido com a emoção que se traduz em gestos e olhares", segundo Luiz Zanin Oricchio no jornal "O Estado de S. Paulo". Cinema, reitera o crítico, "pede discrição e delicadeza" dos intérpretes. Walmor sabia disso.
          Sem legenda foi seu último gesto. Em meio à comoção causada pela morte do ator, as pessoas que lhe eram mais próximas (os familiares, o caseiro, a cozinheira, a advogada, o amigo e dono do restaurante onde almoçava quando ia a Guaratinguetá, a terapeuta que cuidava de seu corpo nos últimos anos) buscam explicações. A cegueira progressiva, a debilidade corporal, a fragilidade incontornável do envelhecimento, o isolamento, tudo isso, somado, explicaria o suicídio de Walmor.
          A tentativa de conferir inteligibilidade a um gesto tão radical convive com a tristeza partilhada pelas pessoas que o amavam e aguça a perplexidade de todos nós. Seu suicídio nos interpela. O último ato de Walmor ecoa o do casal Dorine e André Gorz, cujos corpos foram encontrados lado a lado, na cama em que dormiam. O duplo suicídio, em 2007, esclarece-se pela leitura de "Carta a D.: História de um Amor" (Cosac Naify), o último livro de Gorz.
          Pacto de vida inteira, o amor de um pelo outro permitiu que se tornassem o que foram: "Um pelo outro, um para o outro". A lucidez terrível envolvida no sentimento de Gorz, de que somente o calor do corpo de sua mulher, com 82 anos e às voltas com uma doença irreversível, poderia preencher o vazio devastador que o habitava, aclara a decisão extrema de ambos.
          É também da vida, do amor, da doença, da velhice e do desespero contido que trata "Amor", o recém-lançado filme de Michael
          Haneke. A arte imita a vida, sabemos bem. Mas quando a vida replica a arte é sinal incontornável do desarranjo dos nossos filtros. Há uma conversa dramática e inesperada entre os últimos gestos de Walmor Chagas, do filósofo e sua mulher, e do personagem do filme, George, magistralmente interpretado por Jean-Louis Trintignant.
          O casal -um professor de música aposentado- e sua mulher -professora aposentada e octogenária como ele- enfrenta com dignidade a irreversível derrocada produzida pela doença e acentuada pelo envelhecimento. Sozinhos e rodeados pelos livros, pela música, pelos quadros do apartamento, eles sabem que de fato só têm um ao outro para se apoiarem.
          Os derrames que vão minando a esposa -na interpretação estupenda da atriz Emmanuelle Riva-, o cuidado com que o marido lida com ela e com seu corpo que definha, a solução final para estancar o sofrimento de ambos condensam o andamento do filme.
          E mostram, sem meias verdades e sem eufemismo, aquilo que nos esforçamos por não admitir: o desmonte inexorável que nos ronda, ampliado pela ambivalência amorosa. Com imensa compaixão, o filme dá a ver aquilo que Henry James perseguiu na literatura: enquadrar com a força restritiva da linguagem a matéria caótica da vida de que se nutre a obra artística.
          Cheia de som e fúria, a vida, alerta-nos Shakespeare, é "apenas uma sombra ambulante, um pobre ator que se exibe e se agita no palco por um tempo". Mas sem o palco e seus intérpretes, a vida seria uma fábula sem sentido. André Gorz e Dorine, Jean-Louis Trintignant, Emanuelle Riva e Walmor Chagas sabiam disso. Todos eles com mais de oitenta anos, embaralhando a vida e a morte.
          DESLOCADO Se Walmor não registrou as razões que o levaram ao suicídio, foi pródigo, no entanto, na exposição de seus indícios. Em 2011, na entrevista que concedeu a Bianca Ramoneda para a série "Grandes Atores", do canal Globo News, ao ser perguntado por onde andava, ele foi enfático. "Ando com 80 anos de idade, principalmente." Mais do que uma marca cronológica, a resposta vinha acompanhada da constatação, esta sim essencial, de que ele não se reconhecia na geração "que está com o teatro nas mãos".
          Nas palavras de Walmor, "o teatro que eu fazia não se faz mais. Então eu comecei a me sentir deslocado dentro da vida artística teatral brasileira. [...] O meu repertório artístico sempre foi de altíssima qualidade e não é todo ator que pode fazer isso. Este repertório de qualidade me obrigava a fazer um tipo de teatro maravilhoso, que hoje não se faz mais. Hoje se faz outro teatro, maravilhoso, fantástico, da época de agora, que não é mais a minha época".
          Ciente de que "o importante é o aqui e o agora; o teatro presente no Brasil no momento", Walmor expôs o seu dilaceramento, mas não se deixou aprisionar na visão edulcorada do passado. Ele não tinha dúvidas sobre a qualidade do teatro que fizera antes -"era maravilhoso, mas é o teatro de agora que interessa". E este não o interpelava mais. Não porque fosse pior do que o teatro de antes, e sim porque o presente se tornara uma terra estrangeira. "Eu não pertenço mais a esta época", insistiu Walmor no decorrer da entrevista.
          O período de maior envolvimento de Walmor com o teatro coincide com a época em que esteve ligado a Cacilda Becker. A primeira vez que a viu, ela estava no palco e ele na plateia, assistindo-a representar "Pega-Fogo". O ano era 1950 e ele acabara de se mudar para São Paulo, vindo de Porto Alegre, para tentar a carreira de ator.
          Deixara inconcluso um curso de filosofia e se integrara à companhia de Nicete Bruno. Cinco anos depois ingressaria no Teatro Brasileiro de Comédia. Mas ficaria ali por pouco tempo; o suficiente para transformar o namoro com Cacilda em casamento e para fundarem a companhia.
          O Teatro Cacilda Becker (TCB) estreou em 1958, com "O Santo e a Porca", de Ariano Suassuna. A escolha da peça estava em sintonia com as transformações em curso na cena teatral, cujo termômetro era o sucesso estrondoso do espetáculo "Eles Não Usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri, montado em 1958 pelo Teatro de Arena.
          No final do decênio de 1950, a dramaturgia brasileira entrara em cena para valer, politizando o debate e emitindo sinais de que viera para ficar. Não aleatoriamente, todas as companhias importantes encenaram textos de autores brasileiros. Partidária de um teatro de repertório, basicamente estrangeiro, Cacilda teve que se dobrar ao clima da época e aos conselhos de Ziembinski e, em especial, de Walmor.
          Naquele momento, era ele quem, segundo ela, decidia os "destinos de seu teatro" e a "socorria sempre". Sem ele, o Teatro Cacilda Becker não teria existido. Atuando como empresário e ator -e, após a saída de Ziembinski, como diretor-, Walmor foi fundamental no palco e fora dele para a sustentação da companhia, premida entre fracassos expressivos e sucessos retumbantes.
          Ela chegou ao fim em 1968, junto com o casamento de Cacilda e Walmor. Um ano depois, separados e sem companhia, eles montariam ainda "Esperando Godot", de Beckett, na direção de Flávio Rangel. Cacilda interpretou Estragon; Walmor fez Vladimir, concebidos como a face e a contraface de uma mesma personagem.
          Seria a última vez que ocupariam o mesmo palco. Em uma das apresentações da peça, Cacilda foi retirada às pressas do teatro, com as roupas de sua personagem, para ser conduzida ao hospital onde morreu cerca de um mês depois. No artigo de despedida da atriz, o crítico Décio de Almeida Prado usou uma imagem precisa para definir o alcance de sua arte. Em seus melhores momentos, Cacilda "era uma pura chama ardendo diante de nós".
          Três décadas depois, Walmor afirmou que ela foi "a maior atriz dramática que o Brasil conheceu". Entre outras razões, porque, segundo ele, Cacilda tinha "o sentido trágico da vida e o poder do teatro. Do ator junto ao público, que alguns chamam de carisma. Esta capacidade que o ator tem de chegar no coração, no inconsciente do espectador".
          Cacilda saiu de cena, aos 48 anos, fulminada por um aneurisma cerebral. Walmor saiu da vida aos 82, por vontade própria. O tempo transcorrido entre a vida e a morte de um e de outro selou o destino de ambos e iluminou o teatro brasileiro.

            AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Ah, as bermudas!‏


            ESTADO DE MINAS: 03/02/2013 
            Há muito venho observando as bermudas. Vivemos não apenas num triângulo, mas num círculo vicioso de bermudas. Tenho várias. Isso me compromete. Estou envolvido no crime. No Natal (ou aniversário), as filhas insistem em me presentear com bermudas. Na última vez em que isso aconteceu, troquei-as (as bermudas, não as filhas) por camisas, aproveitando o pretexto de que eram pequenas (as bermudas, claro).

            Contra as bermudas, em geral, não tenho nada. Mas me pergunto: será que todo mundo deve usar bermudas? Pesquisei a respeito. Sei que se difundiram nos anos 1990, que os surfistas as popularizaram. Dizem que essa roupa vem das Ilhas Bermudas, onde significava uma forma mais informal e arejada de se vestir e enfrentar o calor.

            Até aí, nada demais.

            Mas, como dizia meu pai, “tudo que é demais é sobra”. E as bermudas invadiram nossa praia, nossas ruas, shoppings, cinemas e aeroportos. Estou nesta fila de banco, horrorizado com o festival de bermudas à minha frente. Brancos, pretos, pardos, aposentados, porteiros, donas de casa, num festival espantoso de mau gosto. E começo a ver aí uma questão sociológica, econômica e irremissivelmente estética. Possivelmente, a questão estética me levou às outras.

            Por onde começar?

            Sendo também (parcialmente) réu ou refém dessa moda, tenho um certo conhecimento de causa (ou calça?). Me parece que conseguiram nos iludir: vendem-nos bermudas que têm um ou dois terços de pano de uma calça pelo preço da própria calça. Nisso a moda nos impingiu um paradoxo: compramos roupas remendadas e furadas por preços altíssimos, porque o lixo virou luxo.

            Mas o ilusionismo que o modismo provoca é ainda mais sedutor: a gente vê o garotão de praia usando aquelas espantosas bermudas. Eles são sarados, têm dorso olímpico, tatuagens rocambolescas nos músculos. São corpos padronizados, Neles, pele, roupa e corpo se completam. Os anúncios, você sabe, botam os manequins em situação paradisíaca, ideal. Como na arte conceitual, a gente compra o conceito.

            Como diria a Bíblia, a bermuda foi feita para o homem, mas nem todo homem foi feito para a bermuda. Reparem na rua, na praia, nos aeroportos, cinemas, mercados etc. Sobretudo no “etc”. Tem gente que não nasceu para usar bermuda. Por exemplo: os que têm aquela barriginha de bebedor de cerveja. E se o dono daquela barriga é pequeno, a situação se agrava, porque a lei áurea das proporções praticada por Leonardo da Vinci não funciona. Aquela barriguinha (ou barrigona avantajada) briga com o resto da estrutura. E surge esta questão física e metafísica: o que fazer das canelas finas? As bermudas colocaram à vista o ridículo das canelas finas, que durante séculos escondemos. A questão das canelas piora com o tipo de tênis que usamos.

            Os tênis merecem também uma tese universitária. Aí se estudaria a importação desse hábito dos EUA e teríamos que retomar aquela frase de ex-ministro Juracy Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Será? E depois esta coisa assombrosa: cobram pelos tênis o mesmo preço dos sapatos. Quer dizer: a sociedade consumista faz da gente gato e sapato, quer dizer, gato e tênis. Estamos levando gato por lebre. 

            Mas há ainda dois elementos que me chamam a atenção: a semelhança entre certas bermudas e a roupa dos palhaços. Espero não estar ofendendo ninguém, isso é apenas uma constatação semiótica, também uso bermudas. Na teoria da carnavalização, estuda-se a introdução da ideia de transgressão na vestimenta ordinária. A roupa do palhaço é assim. As roupas carnavalescas são assim: uma inversão do cotidiano. E a moda, nos liberando de amarras, fez isto com a gente: saímos fantasiados, a fantasia virou rotina. As bermudas levaram isso ao máximo: listradas, cada perna de uma cor, enfim, um carnaval do baixo ventre para as canelas finas.

            Houve um tempo (deprezível) em que cada classe social usava um tipo de roupa. Aí veio a democracia. Ótimo. Tudo ao alcance de todos. E aí instaurou-se a confusão. Eles continuam escolhendo por nós e nós achamos que estamos escolhendo.

            A busca de Turing pela máquina de computar

            FOLHA DE SÃO PAULO

            Apenas um cérebro mundano
            JAMES GLEICKTRADUÇÃO AUGUSTO PACHECO CALIL
            RESUMO A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos do ano traz trecho do capítulo 7 de "A Informação: Uma História, uma Teoria, um Transbordamento", sobre o desenvolvimento da transmissão de dados, dos tambores tribais na África aos "memes". O livro sai em maio, pela Companhia das Letras.
            Talvez a tarefa de conceber uma teoria da informação e de seu processamento seja um pouco como tentar construir uma ferrovia transcontinental. Podemos começar no leste, tentando compreender como os agentes são capazes de processar algo, e rumar para o oeste. Ou podemos começar no oeste, tentando compreender o que é a informação, e então rumar para o leste. Nossa expectativa é que os trilhos acabem se encontrando.
            Jon Barwise (1986)1

            NO AUGE da Segunda Guerra Mundial, no início de 1943, dois pensadores de mentalidade parecida, Claude Shannon e Alan Turing, reuniam-se diariamente na hora do chá no refeitório dos Laboratórios Bell sem nada dizer um ao outro a respeito do próprio trabalho, pois se tratava de algo secreto. Ambos tinham se tornado analistas criptográficos.
            Até a presença de Turing nos Laboratórios Bell era uma espécie de segredo. Ele tinha vindo a bordo do Queen Elizabeth, percorrendo um zigue-zague para despistar os submarinos alemães, após um triunfo clandestino em Bletchley Park ao decifrar o Enigma, código usado pelas Forças Armadas alemãs em suas comunicações de maior importância (como as instruções enviadas aos submarinos).
            Shannon estava trabalhando no Sistema X, usado na encriptação das conversas de voz entre Franklin D. Roosevelt no Pentágono e Winston Churchill em suas respectivas salas de guerra. Seu funcionamento consistia em coletar amostras do sinal analógico da voz ao ritmo de 50 vezes por segundo -"quantificando-o" ou "digitalizando-o"- e então mascará-las por meio da aplicação de uma chave aleatória, que por acaso se parecia muito com o ruído nos circuitos com o qual os engenheiros já estavam tão familiarizados.
            Shannon não projetou o sistema -ele fora designado para analisá-lo do ponto de vista teórico e, esperava-se, provar sua qualidade indecifrável. E foi o que ele fez. Posteriormente, tornou-se claro que esses dois homens, cada um em seu respectivo lado do Atlântico, fizeram mais do que qualquer outra pessoa no sentido de transformar a arte da criptografia numa ciência, mas, naquele momento, os criadores e decifradores de códigos não se falavam.
            Diante da impossibilidade de conversar sobre o assunto, Turing mostrou a Shannon um estudo que havia preparado sete anos antes, intitulado "Sobre os Números Computáveis", a respeito dos poderes e das limitações de uma máquina idealizada de computação. Falavam, portanto, sobre outro tema que se revelou do interesse de ambos -a possibilidade de as máquinas aprenderem a pensar.

            CÉREBRO Shannon propôs que um cérebro eletrônico fosse alimentado com "elementos culturais", como a música, e eles iam se superando mutuamente na ousadia, a ponto de Turing certa vez exclamar: "Não, não estou interessado em desenvolver um cérebro poderoso. Busco apenas um cérebro mundano, algo parecido com o do presidente da Companhia Americana de Telégrafos e Telefones". A ousadia de ambos ao falar em máquinas pensantes em 1943, quando o transistor e o computador eletrônico ainda não tinham nascido, beirava o absurdo. A visão que Shannon e Turing partilharam nada tinha a ver com a eletrônica: tratava-se de algo no domínio da lógica.
            Serão as máquinas capazes de pensar? era uma pergunta que tinha uma tradição breve e levemente incomum -incomum porque as máquinas eram, em si, extremamente ligadas a tarefas físicas. Charles Babbage e Ada Lovelace estavam entre os pioneiros dessa tradição, por mais que tivessem sido praticamente esquecidos, e agora suas pegadas levavam a Alan Turing, que fez algo de fato bizarro: imaginou uma máquina dotada de poderes ideais no domínio mental e mostrou aquilo que ela não poderia fazer. A máquina dele jamais existiu (exceto pelo fato de hoje existir por toda parte). Tratava-se apenas de um experimento da imaginação.
            Paralelamente à questão do que uma máquina poderia fazer havia outra: quais operações seriam mecânicas (palavra antiga que ganhava novo significado). Agora que as máquinas eram capazes de tocar música, capturar imagens, apontar canhões antiaéreos, conectar chamadas telefônicas, controlar linhas de montagem e realizar cálculos matemáticos, a palavra não parecia mais ser tão pejorativa. Mas apenas os temerosos e os supersticiosos imaginaram que as máquinas poderiam ser criativas, originais ou espontâneas -tais qualidades estavam em oposição com a qualidade mecânica, que significava automática, determinada e rotineira. Esse conceito tornou-se então útil aos filósofos.
            Um exemplo de objeto intelectual que poderia ser chamado de mecânico era o algoritmo: outro termo novo para algo que sempre havia existido (uma receita, um conjunto de instruções, um procedimento passo a passo), mas que agora exigia reconhecimento formal. Babbage e Lovelace lidaram com os algoritmos sem nomeá-los. O século 20 conferiu aos algoritmos um papel central -a partir daquele momento.

            TOQUE ALEMÃO Turing era bolsista do King's College, em Cambridge, onde tinha acabado de se formar quando apresentou seu estudo dos números computáveis a seu professor, em 1936. O título completo se encerrava com um toque de elegante alemão: era "Sobre os Números Computáveis, com sua Aplicação ao 'Entscheidungsproblem'".
            O "problema da decisão" era um desafio apresentado por David Hilbert no Congresso Internacional de Matemática de 1928. Talvez o matemático mais importante de sua época, Hilbert, assim como Bertrand Russell e Alfred North Whitehead, acreditava ardentemente na missão de atrelar toda a matemática a uma base lógica sólida -"In der Mathematik gibt es kein Ignorabimus", declarou ele. ("Na matemática não existe o não saberemos.")
            É claro que havia muitos problemas sem solução na matemática, alguns dos quais eram bastante famosos, como o Último Teorema de Fermat e a Conjectura de Goldbach -afirmações que pareciam verdadeiras, mas nunca tinham sido demonstradas. Ainda não tinham sido demonstradas, pensavam muitos. Havia a suposição, quase uma fé, segundo a qual todas as verdades matemáticas seriam um dia demonstráveis.
            O "Entscheidungsproblem" consistia em encontrar um rigoroso procedimento passo a passo por meio do qual, dada uma linguagem formal de raciocínio dedutivo, seria possível realizar automaticamente uma demonstração. Era o sonho do filósofo e matemático alemão Leibniz (1646-1716) mais uma vez reanimado: a expressão de todo raciocínio válido por meio de regras mecânicas.
            Hilbert apresentou isso sob a forma de uma pergunta, mas ele era um otimista. Imaginou saber a resposta, ou tinha a esperança de conhecê-la. Foi somente então, nesse ponto marcante para a matemática e a lógica, que o filósofo e matemático naturalizado americano Kurt Gödel interferiu na engrenagem com seu teorema da incompletude. Ao menos em seu teor, o resultado de Gödel pareceu ser um antídoto perfeito para o otimismo de Hilbert, assim como para o de Russell. Mas, na verdade, Gödel deixou o Entscheidungsproblem sem solução. Hilbert tinha estabelecido a distinção entre três perguntas:
            Será a matemática completa?
            Será a matemática consistente?
            Será a matemática decidível?
            Gödel mostrou que a matemática não poderia ser ao mesmo tempo completa e consistente, mas não conseguiu dar uma resposta definitiva à última pergunta, ao menos não de maneira a englobar toda a matemática.
            Por mais que um determinado sistema de lógica formal contenha necessariamente afirmações que não possam ser provadas nem negadas dentro do próprio sistema, podemos conceber que tais questões sejam decididas, por assim dizer, por um árbitro externo -por uma lógica externa ou por regras exteriores ao sistema.2

            ISOLADO Alan Turing, com apenas 22 anos, mal conhecendo boa parte da literatura relevante, tão isolado em seus métodos de trabalho que seu professor se preocupava com a possibilidade de ele se tornar "um solitário convicto", fez uma pergunta completamente diferente (ao menos foi o que pareceu): serão os números computáveis? Tratava-se antes de mais nada de uma questão inesperada, porque quase ninguém tinha pensado na ideia de um número incomputável.
            A maioria dos números com os quais as pessoas trabalham, ou com os quais raciocinam, são computáveis por definição. Os números racionais são computáveis porque podem ser exprimidos como o quociente de dois inteiros, a/b. Os números algébricos são computáveis porque são soluções de equações polinomiais. Números famosos como Π e e são computáveis; as pessoas os computam o tempo todo. Ainda assim, Turing fez a afirmação aparentemente simples segundo a qual poderia haver números que seriam de alguma forma nomeáveis, definíveis e não computáveis.
            O que significava aquilo? Turing definiu como computável todo número cuja expressão decimal pudesse ser calculada por meios finitos. "A justificativa", disse ele, "jaz no fato de a memória humana ser necessariamente limitada." Ele também definiu o cálculo como procedimento mecânico, um algoritmo. Os humanos solucionam os problemas com a intuição, a imaginação, lampejos de criatividade -um cálculo que dificilmente poderíamos definir como mecânico, ou quem sabe uma computação cujos passos são ocultos.
            Turing precisava eliminar o inefável. De maneira bastante literal, perguntou: o que uma máquina faria? "De acordo com minha definição, um número é computável se seu decimal pode ser registrado por uma máquina."
            Nenhuma máquina existente oferecia ele um modelo relevante. Os "computadores" eram, como sempre, as pessoas. Praticamente toda a computação do mundo ainda era realizada por meio do ato de registrar marcações no papel. Mas Turing tinha uma máquina de informação que poderia usar como ponto de partida: a máquina de escrever. Aos 11 anos, enviado para o internato, ele imaginou a invenção de algo do tipo. "Vejam só", escreveu ele aos pais, "os pequenos círculos engraçados são letras cortadas e montadas lateralmente num encaixe deslizante ligado ao A, que deslizam paralelamente a um tinteiro que, quando pressionado por elas, faz com que estas marquem a letra no papel, mas isso está longe de ser tudo."

            FERRAMENTA A máquina de escrever, é claro, não é automática -trata-se de algo mais semelhante a uma ferramenta do que a uma máquina. Ela não despeja sobre a página uma torrente de linguagem. Em vez disso, a página avança espaço por espaço sob o martelo, que imprime um caractere depois do outro. Com esse modelo em mente, Turing imaginou outro tipo de máquina, da maior pureza e simplicidade. Por ser imaginária, não era limitada pelos detalhes do mundo real que seriam necessários para um desenho técnico, uma especificação de engenharia ou o registro de uma patente.
            Como Babbage, Turing concebeu sua máquina para computar números, mas não teve de se preocupar com as limitações do ferro e do latão. Turing jamais teve a intenção de construir um protótipo de sua máquina. Ele relacionou numa lista os pouquíssimos itens que sua máquina teria de apresentar: fita, símbolos e estados. Cada elemento exigia uma definição.
            Fita é para a máquina de Turing aquilo que o papel é para a máquina de escrever. Mas, enquanto a máquina de escrever usa duas dimensões de seu papel, essa máquina usaria apenas uma -uma fita, portanto, uma faixa longa dividida em quadrados. "Na aritmética elementar, a natureza bidimensional do papel é às vezes usada", escreveu ele. "Mas tal uso é sempre evitável, e creio que concordamos que a natureza bidimensional do papel não é um elemento essencial à computação." Devemos pensar na fita como infinita: sempre há mais quando necessário. Mas há apenas um quadrado "na máquina" a cada vez. A fita (ou a máquina) pode se deslocar para a esquerda ou a direita, passando ao quadrado seguinte.
            Símbolos podem ser registrados na fita, cada um deles num quadrado. Quantos símbolos poderiam ser usados? Isso exigia algum raciocínio, especialmente para garantir que os números fossem finitos. Turing observou que as palavras -ao menos nos idiomas europeus- se comportavam como símbolos individuais. Ele disse que o chinês "tenta contar com uma infinidade enumerável de símbolos". Os numerais arábicos também poderiam ser considerados infinitos, se 17 e 999.999.999.999.999 forem tratados como símbolos únicos, mas ele preferiu tratá-los como um composto: "É sempre possível usar sequências de símbolos no lugar de símbolos avulsos".
            Na verdade, condizente com o espírito minimalista da máquina, ele favoreceu o mínimo absoluto de dois símbolos: a notação binária, zeros e uns. Além de serem registrados na fita, os símbolos deveriam também ser lidos a partir dela -a palavra que ele usou foi "escaneados". É claro que, na realidade, nenhuma tecnologia da época era capaz de escanear símbolos escritos num papel e inseri-los na máquina, mas havia equivalentes: os cartões perfurados, por exemplo, hoje usados nas máquinas de tabulação. Turing especificou outra limitação: a máquina tem "consciência" (somente a palavra antropomórfica serviria) de apenas um símbolo por vez -aquele contido no quadrado inserido na máquina.
            Estados exigiam uma explicação mais aprofundada. Turing usou a palavra "configurações" e indicou que se assemelhavam a "estados de espírito". A máquina tem alguns destes -algum número finito. Num dado estado, a máquina assume um ou mais determinados comportamentos, dependendo do símbolo em questão.
            No estado A, por exemplo, a máquina pode deslocar a fita para o quadrado adjacente à direita se o símbolo em questão for 1, ou deslocar a fita para o quadrado adjacente à esquerda se o símbolo em questão for 0, ou imprimir 1 se o quadrado em questão estiver em branco. No estado B, a máquina pode apagar o símbolo em questão. No estado C, se o símbolo for 0 ou 1, a máquina pode deslocar a fita para a direita ou, caso contrário, parar.
            Depois de cada ação, a máquina termina num novo estado, que pode ser o mesmo ou diferente. Os vários estados usados para um dado cálculo eram armazenados numa tabela -a forma de administrar esse processo fisicamente não era relevante. Na prática, a tabela de estados era o conjunto de instruções da máquina.
            E isso era tudo.
            Turing estava programando sua máquina, apesar de ainda não empregar tal palavra. A partir das ações mais primitivas -mover, imprimir, apagar, mudar de estado e parar-, processos maiores foram construídos e foram usados, de novo e de novo: "Copiar sequências de símbolos, comparar sequências, apagar todos os símbolos de um determinado formato etc.". A máquina só pode ver um símbolo por vez, mas na prática pode usar partes da fita para armazenar informações de forma temporária.

            RASCUNHO Nas palavras de Turing: "Alguns dos símbolos registrados [...] são apenas anotações de rascunho 'para auxiliar a memória'". A fita, desenrolando-se até o horizonte e além, serve como registro ilimitado. Dessa forma, toda a aritmética jaz ao alcance da máquina. Turing mostrou como fazer para somar um par de números -ou seja, escreveu a tabela de estados necessária para a operação. Mostrou como fazer a máquina imprimir (interminavelmente) a representação binária de Π. Gastou um tempo considerável tentando desvendar tudo aquilo que a máquina era capaz de fazer e como poderia desempenhar tarefas específicas. Demonstrou que essa breve lista cobre tudo aquilo que uma pessoa faz ao computar um número. Não era necessário nenhum outro conhecimento ou intuição. Tudo aquilo que é computável poderia ser computado por aquela máquina.3

              Tereza Cruvinel - Renan e as profecias

              Desde os primórdios da República, as eleições para dirigentes do Congresso não passam de arranjos de poder entre os partidos dominantes e os ocupantes do Executivo 

              ESTADO DE MINAS: 03/02/2013 
              Contados os votos e confirmada a eleição de Renan Calheiros (PMDB-AL) para presidente do Senado, a pergunta óbvia perpassou o plenário lotado na sexta-feira, verbalizada ou só pensada: e agora, ele aguentará o tranco? Conseguirá impor respeito e garantir a estabilidade política na Casa, ou voltará a ser troféu de caça? Neste caso, agora terá mais força para resistir do que em 2007? Daquela feita, açoitado por denúncias, trocou o anel pelos dedos. Renunciando à Presidência da Casa, evitou a cassação do mandato.

              É certo que raramente um político tão alvejado, depois de descer aos infernos, conseguiu emergir e reconquistar a posição perdida. Essa façanha de Renan, um político que combina frieza, cálculo e habilidade, é agora seu bem e seu mal. Dá-lhe força com os aliados, atiça o ódio dos adversários. Mas, não fosse por seus antecedentes, sua vitória não acrescentaria nada de novo à história das eleições internas no parlamento brasileiro. Desde os primórdios da República, elas não passam de arranjos de poder entre as forças dominantes no Legislativo e os ocupantes do Poder Executivo. Por isso, a regra da proporcionalidade entre as bancadas. Aos maiores partidos, os melhores postos nas Mesas. Nunca foram ditadas por qualquer principismo, como inocentemente pensam os signatários de abaixo-assinados contra Renan. Como em outras disputas pelo mesmo cargo, em que a oposição sempre perdeu, não se tratou também agora da escolha entre um nome imaculado e outro manchado por denúncias. Tratou-se apenas da preservação do comando do Congresso nas mãos do grupo que compartilha o poder no governo Dilma. Por isso, Renan estará novamente com o cargo e a cabeça na linha de tiro dos adversários.

              Adversários que não são apenas seus, mas do bloco de poder como um todo. Se não há denúncias contra Dilma, o fato de ela ter um aliado perseguido por elas ajudará a enfraquecê-la na disputa que se avizinha, a de 2014. Se contra o PT o chicote do mensalão vai perdendo força, depois de ter abatido quadros da vanguarda do partido, o surgimento de aliados vulneráveis do PMDB, maior partido aliado, vem a calhar.

              Contra as profecias de que a eleição de Renan abrirá a caixa de Pandora para o Senado (e para o governo Dilma, embora a associação seja omitida), os governistas invocam a diferença entre a conjuntura de hoje e a de 2007. Lá, o ex-presidente Lula fora reeleito, mas seu governo e o PT lambiam as feridas do mensalão. Seu mandato caminhava para o fim. Agora, há um governo forte com perspectiva de um novo mandato, no qual a aliança PT-PMDB é mais sólida do que antes. Por isso mesmo, o novo presidente do Senado e também o da Câmara, que deve ser eleito amanhã, estarão no pelourinho e devem enfrentar novas denúncias. O que não quer dizer que a profecia do caos se cumprirá necessariamente.

              Ela surgiu como retórica de campanha e ganhou densidade quando o procurador-geral Roberto Gurgel, na semana anterior ao pleito, apresentou denúncia ao STF contra Renan, derivada de inquérito aberto nos idos de 2007. A poucas horas do pleito, o inteiro teor da denúncia, pedindo o enquadramento do ainda candidato nos crimes de peculato, falsidade ideológica e uso de documentos falsos, foi publicado por uma revista. O vazamento elevou a tensão, mas não tirou votos de Renan, que obteve 56, para o concorrente Pedro Taques, do PT, também procurador. Suas relações com Gurgel são amplamente conhecidas no Senado. É certo que a existência de uma denuncia no STF contra o presidente do Congresso acirrará a tensão já existente. Se ela for acolhida pelo Supremo, a oposição apresentará nova representação contra Renan no Conselho de Ética, conforme Tanques antecipou. O julgamento da ação penal seria o fim da linha.

              Mas o relator, ministro Ricardo Lewandowski, avisou que examinará o assunto na ordem cronológica. E ele tem dezenas de processos a examinar. Em breve, a composição do STF será bastante alterada, com a nomeação de dois novos ministros. Em agosto, Gurgel deixará o cargo sem apresentar as alegações finais. Se nada acontecer em dois anos, Renan pode ter cumprido o mandato. Pode ter implementado parte da agenda que propôs ao tomar posse, composta de quatro eixos: modernização, transparência, autonomia em relação ao Executivo e ajustes legais para melhorar o ambiente econômico. Falou rapidamente sobre ética. “A ética não é um objetivo em si mesmo. A ética é meio para se atingir o bem comum, é obrigação de todos.” Em 1998, numa aula inaugural no Hospital Sarah Kubitschek, o ex-presidente Fernando Henrique apresentou-nos esse pensamento. Recorrendo a Weber, falou da diferença entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção. Foi muito aplaudido.

              Legado de Sarney
              Vastas emoções acompanharam o senador José Sarney nas horas finais de seu quarto mandato como presidente do Senado, após 50 anos de vida parlamentar. Seu papel na transição, suprindo a ausência de Tancredo e honrando seus compromissos, como o de convocar a Constituinte, tem sido tisnado pelas lutas políticas do presente. Os historiadores tratarão dele. A última presidência machucou-o mais. Enfrentou denúncias, perdeu popularidade. Ao seu redor todos dizem: foi o preço por ter apoiado Lula.

              Aécio e Serra
              A troca de Cássio Cunha Lima por Aloysio Nunes Ferreira no posto de líder do PSDB no Senado foi um gesto de Aécio Neves para o PSDB paulista, em sinal de que sua candidatura será de unidade. Tratou do assunto com Serra e Alckmin na visita da semana passada, mas faltava conversar com Cássio. Que, bom aliado, aceitou na hora o papel de primeiro vice-líder.

              Afroreggae completa 20 anos - Ailton Magioli‏

              Afroreggae completa 20 anos como um dos mais importantes projetos sociais do país baseados na cultura. Ligação com Minas está na origem da ONG e gerou ações na área da segurança pública 

              Ailton Magioli
              ESTADO DE MINAS: 03/02/2013 
              O Afroreggae ainda era uma banda cover do Olodum, segundo Santone Lobato, do Tambolelê, quando seus integrantes conheceram a rapaziada no Sesc Venda Nova, de Belo Horizonte. Convidado a morar em Vigário Geral, uma das mais temidas favelas do Rio de então, o percussionista mineiro teve a chance de participar da repaginação do grupo carioca, que, depois de ganhar identidade própria e embrenhar-se na área social, acabaria se tornando a organização não governamental cultural mais influente do país.

              Com cerca de 40 projetos – o foco hoje é TV e internet –, por meio dos quais o coordenador José (Pereira de Oliveira) Júnior, de 44 anos, administra orçamento anual de R$ 20 milhões, o Afroreggae comemora duas décadas de atuação de olho no futuro. 

              Além do desejo de retornar a BH, considerada a segunda pátria da ONG, está acertada a abertura de escritórios de representação em Minas e em São Paulo. Na capital paulista, o grupo também vai desenvolver trabalho social no entorno do Itaquerão, novo estádio do Corinthians. Paralelamente, a marca do time paulistano está sendo levada pelo Afroreggae para o Rio, onde será montado um centro de treinamento de MMA, no Complexo do Alemão.

              “Bebemos muito na fonte de Minas Gerais”, reconhece José Júnior, lembrando que, no início, o público não entendia a mistura que eles faziam de congado com funk e reggae. Por outro lado, a atuação do grupo crescia a ponto de os próprios integrantes se surpreenderem com a repercussão do trabalho artístico-social. Ainda dentro das comemorações de aniversário, depois do sucesso das séries Conexões urbanas e Papo de polícia, em parceria com o canal Multishow, a ONG carioca vai lançar em março, no GNT, a série Mulher de bandido.

              “Nós conseguimos tirar gente do narcotráfico, fazer mediação de conflitos e, por meio da música, quebrar paradigmas, conceitos e preconceitos”, afirma, orgulhoso, José Júnior. Além da atuação em diferentes regiões de risco social, nas Olimpíadas 2012, em Londres, o Afroreggae chegou à Inglaterra, onde também desenvolveu ações. “Se antes éramos vistos como bandidos pela própria polícia, acabamos tendo a oportunidade de transformá-los em multiplicadores culturais”, comemora o coordenador.

              “Toda e qualquer ação para melhoria e desenvolvimento humano e social é sempre bem-vinda”, apoia Santone Lobato. “Por mais que possa haver divergências em relação à atuação do Afroreggae hoje, enquanto projeto social ele salvou muitas vidas e, apesar de não ser uma igreja ou religião, continua salvando muitas almas”, acrescenta o percussionista mineiro. O rapper Flávio Renegado, do Negros da Unidade Consciente (NUC), que também firmou parceria com a ONG carioca no Alto Vera Cruz, lembra que a dobradinha ajudou a apontar caminhos na trajetória da organização mineira.

              “Na época, achei o Juventude e Polícia (projeto criado em 2004, numa parceria entre o Afroreggae e a Secretaria de Estado da Defesa Social) muito ousado, porque mudava a questão de o Estado simplesmente agir como órgão repressor, para começar a explorar outro parâmetro dessa relação, atuando como agente social”, recorda o rapper. Depois de levar artistas como Caetano Veloso e Regina Casé ao Vigário Geral, em pleno 1995, quando ninguém conseguia chegar à favela, dominada pelo narcotráfico, o Afroreggae assinava, em 2001, contrato com a multinacional do disco Universal Music, pelo qual lançou seus principais discos. Madonna e outras celebridades também visitaram o local.

              A história da ONG começa, na verdade, com o lançamento do jornal Afro Reggae Notícias, em 1993, na Lapa carioca. Em decorrência da chacina ocorrida no mesmo período na favela de Vigário Geral, foi criado o Grupo Cultural Afroreggae, que se desdobraria em ações e programas que mais tarde seriam imitados e adotados em outras regiões. 

              Para vencer preconceitos

              Belo Horizonte, 2004. De acordo com o então secretário-adjunto de estado de Defesa Social, Luiz Flávio Sapori, ele foi procurado pelo Afroreggae com a proposta de desenvolver trabalho nos batalhões da Polícia Militar. “Achei a ideia inovadora e instigante, fechando acordo com o comando da PM à época”, recorda o professor e sociólogo, que hoje é coordenador do Centro de Pesquisas em Segurança Pública da PUC Minas. 

              Sapori resolveu então implementar o projeto Juventude e Polícia, com o objetivo de aproximar os jovens da periferia e a Polícia Militar, em particular os chamados “praças”, visando superar preconceitos recíprocos. “Fizemos isso com oficinas de rap, dança, basquete de rua e grafitagem, que nos foram oferecidas pelo Afroreggae”, acrescenta Sapori, lembrando que o programa acabou concentrado no 22º Batalhão da Polícia Militar, com sede no Bairro Santa Lúcia, e no 34º BPM, no Caiçara.

              “Inicialmente, seriam apenas quatro meses, mas acabamos ficando quatro anos”, recorda José Júnior. De acordo com Luiz Flávio Sapori, cerca de 100 PMs de BH participaram das oficinas ministradas pela ONG carioca, consolidando a carreira de um grupo de percussão formado pelos praças, que acabou ganhando repercussão nacional. “Quando a gente vê a polícia pacificada aqui no Rio, não dá para esquecer o que vivemos em Minas”, diz o coordenador do Afroreggae. “Devemos muito a BH. Hoje a polícia do mundo inteiro procura a gente.”

              Resistência 


              A partir de 2007, no entanto, constata Luiz Flávio Sapori, o projeto foi perdendo força. “Houve aquele momento em que a iniciativa voluntária começa a enfrentar o desafio da institucionalização. Como a PM ia formalizar o projeto em sua estrutura organizacional? Como o governo, por meio da Secretaria de Estado de Defesa Social, ia arrumar recursos para dar sustentação a ele?”, interroga-se o ex-secretário adjunto, lembrando que nem uma coisa nem outra aconteceram, com o Juventude e Polícia praticamente deixando de existir.

              “Lamento, porque foi um dos projetos mais inovadores na área”, prossegue Sapori. Como faz questão de lembrar o sociólogo, a violência sempre foi a marca da relação conflituosa entre a juventude da periferia e a PM. “O projeto tinha um potencial enorme de expansão, além da capacidade de transformação de uma realidade existente. Principalmente na periferia. Mas teria de ser assumido de maneira mais intensa pela PM, mas alguns setores da corporação deixaram de vê-lo com bons olhos”, lembra.

              José Júnior anuncia que depois do carnaval vai se encontrar com o governador Antonio Anastasia, que, coincidentemente, era o secretário de Defesa Social à época do projeto. “A ideia é que nos 20 anos do Afroreggae a gente retorne para desenvolver novas ações em Minas Gerais. Queremos voltar para a nossa casa”, afirma. “Nunca fomos tão bem tratados. Da PM aos moradores de aglomerados, passando pela imprensa. Desde então, aprendi a amar Minas Gerais por tudo que fizeram pela gente”, conclui.

              Isto é afroreggae
              » R$ 20 milhões de orçamento anual

              » 3 mil pessoas, egressas do sistema penal e moradores de favelas, encaminhadas para o trabalho com carteira assinada

              » 300 funcionários contratados

              » 280 multiplicadores formados em Londres, de 2006 a 2012

              » 40 projetos em execução

              » 9 grupos artísticos (AR 21, Afro Circo, Afro Lata, Afro Samba, Párvati, Trupe de Teatro, Makala Música & Dança, Orquestra Afroreggae e Bloco Afroreggae)

              » 7 centros culturais multimídia, todos no Rio

              » 6 núcleos (Vigário Geral, Parada de Lucas, Nova Iguaçu, Complexo do Alemão, Cantagalo e Vila Cruzeiro)

              » 3 programas de TV (Conexões urbanas, já na sexta temporada, e Papo de polícia, na terceira, ambos no Multishow) além de Mulher de bandido, que estreia em março, no GNT)

              » 1 aplicativo sobre blocos do carnaval carioca, em parceria com a Catraca Livre, que acaba de ser lançado – Carnaval de Rua – Catraca Livre

              » 1 loja virtual

              » 1 portal

              » 1 produtora

              Informações: www.afroreggae.org