domingo, 20 de janeiro de 2013

Minha voz masculina - Martha Medeiros

O globo - 20/01/2013


“Um dos prazeres de se escrever (e, imagino, de atuar,
compor, pintar) é ampliar a própria existência, encontrar
novos canais de comunicação consigo e com o mundo”



Desde que comecei a escrever, e lá se vão mais de 25 anos, sempre 
fui reconhecida como uma voz legitimamente feminina. Não raro 
me chamavam, com exagero, de porta-voz das mulheres. Ora, 
não sou porta-voz nem de mim mesma. As mulheres são distintas 
entre si, nossas porta-vozes precisam ser múltiplas — e são. E os 
homens também se identificam com o que escrevo, o que é ótimo, 
pois demonstra 
que temos as mesmas 
inquietações e retira do 
meu trabalho o tom 
cor-de-rosa que me enjoa. 
Na verdade, o que 
reconheço em mim é 
uma voz unissex.


No entanto, sou mulher, 
com existência sexual, 
maternal e comportamental 
feminina, 
e isso vaza para o que 
escrevo. De mim saiu a 
Mercedes, do “Divã”, e 
a Beatriz que Cissa 
Guimarães levou aos 
palcos na peça “Doidas 
e santas”. O único livro 
em que criei personagens 
masculinos mais 
delineados foi “Tudo 
que eu queria te dizer”, 
que contém 35 cartas 
que narram situaçõeslimite 
vividas por homens 
e mulheres — e 
as cartas assinadas pelas 
mulheres também 
ganharam adaptação 
teatral num lindo monólogo 
com Ana Beatriz 
Nogueira.


Ou seja, sempre que 
minhas palavras subiram 
ao palco, era a minha voz feminina que entrava em ação, reforçando 
a imagem de ser uma autora “só para garotas”.


Pois finalmente vivi uma experiência que ratificou que posso ir 
além dessa zona de conforto. As cartas masculinas do livro também 
foram para o teatro: estão em cartaz no Rio na peça “Também 
queria te dizer”, com Emilio Orciollo Netto, a que assisti semana 
passada. Saí do Centro Cultural Midrash emocionada: foi 
gratificante comprovar que os textos daqueles personagens masculinos 
poderiam realmente ter sido escritos por um homem. 
Emilio, dirigido por Victor Garcia Peralta, deu a virilidade justa a 
cada um dos seis papéis que interpreta, e ajudou a reforçar meus 
argumentos quando me perguntam se a literatura feita por mulheres 
é diferente da feita por homens: não necessariamente. Não
quando se consegue imergir numa aventura fictícia e emergir dela 
sem deixar rastros do gênero a que se pertence.


Um dos prazeres 
de se escrever (e, 
imagino, de atuar, 
compor, pintar) é 
ampliar a própria 
existência, encontrar 
novos canais de comunicação 
consigo e 
com o mundo. Meu 
exercício literário 
sempre orbitou em

torno de um território 
conhecido, aquele 
que abriga meus 
sentimentos, pensamentos 
e vivências.

As cartas que escrevi 
para esse livro foram 
minha primeira tentativa 
de dar um novo 
passo, de me colocar 
no lugar de um 
ser humano distante 
da minha realidade. 
Porém, quando o escritor 
realiza seu ofício, 
solitariamente, 
ainda é sua voz interna 
que escuta. No 
momento que essa 
voz sai da sua mente 
e torna-se audível na 
boca de outra pessoa, 
e essa outra pessoa 
é um homem, o 
texto se universaliza e a magia da criação se confirma.


Muitos autores já experimentaram essa sensação que, para 
mim, foi inédita, por isso meu entusiasmo e agradecimento à trupe 
do “Também queria te dizer”. Mais do que nunca, seguirei em

busca dessa completude que só nos enriquece, tanto na arte 
quanto na vida.

Nos porões do esporte - Dorrit Harazim


O Globo - 20/01/2013

Assim como José Dirceu e outros
mensaleiros condenados
pelo Supremo Tribunal
Federal, o americano Lance
Armstrong, maior ciclista de todos os
tempos movido a doping, também
tem sua empedernida legião de fiéis.
Essa tropa de choque renitente é movida
a saudosismo, lealdade, manipulação
e, sobretudo, interesses. Sempre
que provas ou indícios, denúncias
ou acusações adquirem volume avassalador
ou irrefutável, ela encontra
refúgio na afirmação de que se trata
do linchamento público de um herói.
Ou, à falta de outro argumento, de
que “todo mundo faz a mesma coisa”.

A dimensão da idolatria ao atleta
nascido no Texas, mesmo fora da esfera
do esporte, explica a facilidade
com que essa tropa de fiéis sempre
desqualificou qualquer denúncia.
“Trata-se de uma caça às bruxas com
financiamento do governo”, era uma
das linhas de defesa mais frequentes
de sua equipe de advogados. “Passei
por mais de 500 testes antidoping e
nenhum jamais resultou positivo”, defendia-
se o próprio atleta, omitindo o
fato de que à época em que foi colhido
o material não existiam exames
capazes de detectar EPO ou doping
sanguíneo. Não fosse o congelamento
de seis amostras em 1999, retestadas
oito anos atrás, seus primeiros resultados
positivos teriam se perdido.
“Ele é muito forte, está bem para
quem teve a carreira e seu sustento
arrancados”, diz hoje outro de seus
advogados, atualizando o discurso
para a atual campanha de empatia
com um caído.

A própria doença de Armstrong solidificou
o seu status de herói nacional:
interrupção da carreira aos 25
anos por um câncer de testículos grau
4, quase letal, a história da superação
narrada em livro, a construção de
uma obra caritativa de grande visibilidade
e apelo popular, turbinada pelas
famosas pulseirinhas amarelas Livestrong
que arrecadaram US$ 26 milhões
só no primeiro ano de vendas.
Isso tudo, antes de seu retorno triunfal
às pistas. “Lance deixou de ser
apenas um ciclista”, declarou em 1977
seu agente Bill Stapleton. “Devido à
superação do câncer, a sua marca
agora adquire outra envergadura. Ele
está na iminência de fazer a transição
para outro patamar de celebridade.”

A partir daí, Lance Armstrong foi o
roteirista de sua meteórica carreira,
centrada, como declarou, no lema
“vencer a qualquer custo”. Em tom
monocórdio, esclareceu: “Decidi fazer
qualquer coisa para ganhar — e
isso é bom.” Para isso, engolia pílulas
a 50km da chegada, outras a 30km da
chegada, controlava o estoque de doping
da equipe, ensinava como tomar
EPO (apelidou-a de “Edgar Poe”) a
cada 3 ou 4 dias, embarcava em jato
privado para a retirada de 500cc de
sangue e camuflava eventuais hematomas
usando camisas de manga
comprida, denunciavam ex-colegas.
Seu apartamento em Gerone, na Espanha,
tornou-se o quartel-general
da operação.

Na entrevista em duas partes concedida
esta semana à apresentadora
Oprah Winfrey, Armstrong correu o
risco calculado de romper com seus
súditos mais leais. Admitiu ter recorrido
a doping durante 13 anos, dos
primórdios de sua carreira até chegar
ao apogeu, em 2005, como o “Homem
de Aço”.

Fez sua confissão pública no mesmo
tom impessoal e controlado com
que mentiu por tantos anos. Tampouco
mudou o olhar gélido com que
brindava seus adversários depois de
vencer uma prova.

Na entrevista, manteve-se blindado:
confessou mas não explicou, reconheceu
“falha de caráter” mas não
pediu desculpas por ter perseguido,
ameaçado e questionado a honra de
colegas. Teve a chance de esclarecer
os cantos mais sombrios do porão do
esporte, mas não quis acelerar o roteiro
para sua eventual reabilitação.

O uso generalizado de testosterona,
cortisona, hormônio de crescimento,
autotransfusão de sangue e EPO (o
hormônio sintético que aumenta a
produção de glóbulos vermelhos) por
Armstrong e sua equipe, embora conhecido,
jamais fora admitido. Um
mapeamento minucioso feito pela
Agência Antidoping dos Estados Unidos
(Usada) ao longo de dois anos resultara
num relatório de mais de mil
páginas, divulgado três meses atrás. E
este, por sua vez, acarretou a perda de
todos os títulos mundiais conquistados
pelo atleta e seu banimento da
prática de qualquer esporte olímpico
para o resto da vida.


Mas a Usada e o governo americano,
que mantém aberta uma investigação
federal paralela, querem ir
mais fundo. E para isso uma colaboração
de Armstrong, apelidado de
“Bernie Madoff do esporte” por ter
conseguido manter a fraude tanto
tempo, seria crucial. A velocista Marion
Jones, estrelíssima dos Jogos de
Atlanta, em 2000, com cinco medalhas
olímpicas no pescoço, também
passou anos negando seu envolvimento
em outro vasto esquema de
doping. Acabou por fazer confissão
chorosa, cumpriu pena de seis meses
por perjúrio e jamais retornou às pistas.
No caso de Armstrong, contudo, a
acusação é bem maior: a de ter liderado
o programa de doping mais sofisticado,
profissional e exitoso da história
do esporte.

A intenção da Usada é conseguir
montar uma Comissão da Verdade e
de Reconciliação capaz de pegar todos
os tentáculos do programa de doping
— a começar pelo papel da própria
União Internacional de Ciclismo,
dos grandes patrocinadores e das
equipes. A U. S. Postal de Armstrong,
por exemplo, investiu US$ 32,2 milhões
na equipe entre 2004 e 2011 e
faturou mais de US$ 103 milhões em
marketing — 320% de retorno, portanto.

Caberá, então, a pergunta se a Nike,
a Oakley ou a Anheuser-Bush de nada
sabiam ou nada suspeitavam contra
seu atleta de ouro. Alguma vez quiseram
saber? “Sempre que um ciclista é
flagrado, o sistema se proclama chocado
e se declara completamente
contrário à prática do doping. Tacha o
culpado de ovelha negra e tudo continua
igual”, constata o alemão Jörg
Jaksche, já aposentado.

Talvez nem tudo. Para os crédulos
inveterados, a vitória do britânico
Bradley Wiggins no Tour de France
2012, seguida de sua conquista do ouro
nos Jogos de Londres, é um alento.
Wiggins demonstrou que é possível
vencer fazendo apenas o que deve:
pedalar.

Minha História - Maurício Almeida,18

folha de são paulo

Empreendedor visionário
(...)Cego de nascença, brasileiro cresce lutando por autonomia, vai estudar nos EUA, monta empresa e divide experiências pela web
FILIPE OLIVEIRADE SÃO PAULORESUMO
Sem nunca ter enxergado por causa de uma complicação do nascimento prematuro, adolescente brasileiro se apaixonou por computadores por influência do pai, estudou em escolas regulares e conquistou autonomia. Hoje mora nos EUA, onde tem empresa de hospedagem de sites e estuda ciências da computação na Universidade Estadual de Michigan. Ativista, também traduz audiogames e mantém um blog.
Nasci prematuro, com pouco mais de 1 kg. Meus olhos eram tão sensíveis que o ar da incubadora descolou minha retina. Graças ao meu pai, aprendi que teria de ir atrás do que eu quisesse ter.
Como muitos nunca lidaram com um cego, não conhecem. Quem não enxerga tem de provar que está apto para conversar de igual para igual antes de obter o que quer.
Minha família diz que, desde pequeno, sempre falei que queria estudar nos Estados Unidos e percebi que precisava fazer algo para que isso se tornasse realidade.
Tive uma professora de inglês que me deu aula desde os 3 anos e me preparou para estudar em uma escola bilíngue, onde fiz o ensino médio. Consegui um diploma que vale para os EUA.
Aprendi criança a ler em braille e sempre estudei em escolas regulares, como o colégio Arquidiocesano, em São Paulo. Apesar de eu ter sido o primeiro aluno cego nas escolas em que estudei, sempre procuraram a melhor forma de me ensinar.
Comecei a gostar de informática por causa do meu pai. Um dia ele colocou um computador na minha frente e falou 'digita'. Explicou que as gavetas eram as pastas, e as folhas eram os arquivos. Eu tinha uns 11 anos.
Fiquei maravilhado! Por muito tempo, tive dificuldade com captchas de texto na internet [imagens com texto embaralhado, que precisa ser digitado para dar acesso a outra página]. O cego não tem como saber o que está neles.
Quando tem algo que não consigo fazer porque não vejo, geralmente já sei o porquê do problema e dou um jeito.
Com o tempo, fui substituindo o braille por notebooks na sala de aula. Comecei a criar sites e a comprar hospedagem de empresas, como brincadeira. Em 2011, pensei por que não pegar o que não gostei em serviços de hospedagem e abrir o meu.
Assim comecei no Brasil minha primeira empresa de hospedagem de sites, a Webmegaspace LLC, e me tornei microempreendedor.
A ideia é que meu cliente se torne independente, use uma vez o suporte técnico e já saiba ensinar por aí. Já tenho dez clientes hospedados, fora as consultorias que faço.
O esforço deu resultado. Passei na Universidade Estadual de Michigan para o curso de ciências da computação. Eles avaliaram meu histórico escolar e outras atividades que fazia. Já ter minha empresa contou muito.
SONHO AMERICANO
Passei meu primeiro semestre sozinho no campus da universidade. Foi ótimo. Querendo ou não, os pais de alguém com deficiência fazem tudo para ajudar. Fui obrigado a aprender a me virar por minha conta própria.
Na universidade, todos os computadores têm leitor de tela instalado, posso sentar e usar o que eu quiser. O mais difícil foi usar a lavanderia do prédio universitário.
Resolvi levar minha empresa para os EUA. Agora tenho um sócio americano. Fiquei com 60%, e ele, com 40%.
Tenho um hobby, que são os audiogames [jogos de sons]. Junto com amigos, comecei a traduzir jogos estrangeiros. Pedimos autorização à empresa que produziu, traduzimos o jogo e o manual, escolhemos locutores e gravamos as vozes. Nos EUA, faço a parte de relacionamento com as produtoras dos jogos para pedir a autorização.
Muitos querem saber como estão as coisas comigo na viagem. Então, comecei a pôr minhas experiências e pensamentos num blog, o www.mauricioalmeida.com.br.
O cego chama a atenção, desperta curiosidade. Aprendi a usar essa atração para fazer amigos. Gosto de ensinar como eu faço as coisas, minhas singularidades.

    Vinicius Torres Freire

    FOLHA DE SÃO PAULO

    Maquiado e descabelado
    Dilma promete crescimento 3S, "sério, sustentável e sistemático", mas dedica-se a maquiagens
    DILMA ROUSSEFF construiu uns puxadinhos no primeiro ano de governo. Feios, mas talvez apenas uns improvisos provisórios de política econômica. Daí passou a erguer barracos e ora se muda para umas caixas de papelão na calçada.
    Barraco de papelão, ou simplesmente papelão, é o que parecem os remendos nas contas do governo, maquiadas no final do ano passado com uns artifícios que não enganariam ninguém nem resolveriam problema concreto algum.
    Em seguida, Dilma mendigou uns adiamentos de reajustes de ônibus e metrô com governos de São Paulo e Rio. Queria evitar a impressão de descontrole, uma alta de preços que estourasse a meta nos próximos meses, o que deixaria o governo ainda mais mal falado. Mas, para usar uma frase original, a emenda piorou o soneto.
    Dilma ameaça desmoralizar a ideia de que existem políticas econômicas alternativas àquelas pregadas por economistas-padrão, mercadistas e viúvas do governo FHC. Remendos e puxadinhos não são alternativas.
    Toma atitudes que não fazem lé com cré. Talhar a indecente taxa de juros básica a machadadas poderia ser boa coisa. Mas não funciona se o governo gastar mais, seja diretamente ou por meio de endividamento com o objetivo de turbinar os bancos públicos. Não funciona porque alimenta a inflação, que o governo quer disfarçar. Mais um pouco (de inflação) e os juros vão subir, sem que o país tenha saído do lugar.
    O governo gasta mais e mal, de resto, vitaminando o consumo, sem investir mais.
    De certo modo, ainda tênue, as medidas econômicas de Dilma lembram bobagens dos governos de esquerda, "populares", da América Latina da segunda metade do século 20, ruins não porque "populares", mas porque destrambelhados e ingênuos. Queriam distribuir renda rapidamente, por vias tortas, o que dava em inflação, a qual tentavam domar com tabelamentos e coisas do gênero, o que dava em escassez.
    Somadas, carestias e carências davam em tumulto e, assim, serviam de desculpa para a direita dar golpes.
    Estamos, claro, muitíssimo longe disso. Mas Dilma também tenta controlar lucros e preços, fazer "política de rendas" (na Petrobras, em tarifas públicas, com bancos etc.). Mexe em efeitos em vez de tratar das causas. Continuou a aumentar demais o mínimo, para o que ainda houve alguma folga no governo Lula, mas não mais agora. A alta do mínimo ora ajuda a estourar as contas do governo e aduba a inflação.
    Dilma não tem ministros capazes; não delega, pois, e se ocupa de muita coisa ao mesmo tempo, em geral de muita coisinha. Se presta a megalomanias (trens-bala) quando seu governo não consegue nem construir postes para transmitir eletricidade de usina que está pronta (quando falta energia no país); o investimento federal caiu desde que assumiu. Acha que pode "destravar" o investimento no país pedindo dicas a uns empresários e dando safanões noutros.
    Tem escassa noção de macroeconomia, mas se acredita guia genial da política econômica; não tem planos de médio prazo. Achou que perderia tempo se dedicando a reformas grandes e agora se perde em miudezas. Seu governo parece não ter tempo senão para maquiagens, mas parece descabelado.
    vinit@uol.com.br

      Quadrinhos

      FOLHA DE SÃO PAULO

      CHICLETE COM BANANA      ANGELI

      ANGELI
      PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE

      LAERTE
      DAIQUIRI      CACO GALHARDO

      CACO GALHARDO
      NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
      FERNANDO GONSALES
      MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
      ADÃO ITURRUSGARAI
      PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER

      ALLAN SIEBER
      GARFIELD      JIM DAVIS
      JIM DAVIS
      HAGAR      DIK BROWNE

      DIK BROWNE

      HORA DO CAFÉ      ALVES

      Alves

      A tradução de Pierre Menard - Paulo Coelho

      FOLHA DE SÃO PAULO

      IMAGINAÇÃO
      PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
      PAULO COELHOEm frente ao número 900 da rua Maipú existe um hotel. No fundo do saguão está um café, onde costumava encontrar meus amigos. Estou a mais de 10 mil quilômetros de distância e jamais tornarei a cruzar suas portas e dizer "boa tarde" a Juan -o garçom que nasceu na Argentina e sonhou sua vida inteira em ter pai e mãe britânicos.
      Em frente ao número 16 da Grand Rue não há nenhum hotel, mas também existe um café. Estou a alguns passos de distância e ele me espera. Costumava cruzar esta rua em 1914, ainda adolescente, indo para o restaurante Les Armures com meus pais. Nunca gravei sua fachada, porque não me interessava.
      Não posso vê-lo porque há décadas enxergo apenas uma mistura de sombras e luzes, que não se traduzem nem em letras nem em imagens. Voltei para esta cidade para morrer. E morrerei como todos os seres humanos -sempre levando alguma dúvida para o túmulo, sempre esquecendo algo, sempre querendo viver um minuto a mais, sempre achando que não valeu a pena ou a dor de ter passado tantos anos em busca de respostas que os caprichosos deuses ocultaram em lugares visíveis e inatingíveis.
      Como o livro, por exemplo. Não qualquer livro, já que a literatura não passa de um sonho dirigido pelo autor. Mas um único livro, aquele que ousou rebelar-se e ganhar vida própria.
      Devia ter uns 12 anos quando o li. Escolhi-o pela capa: ilustrada por Ascensio Rodríguez, que era pródigo em cores duras e traços suaves. Fora traduzido tendo como base outra tradução, feita pelo francês Pierre Menard. Um poema sobre o tempo e o espaço, lembrando que as palavras existem apenas porque algum ouvido ousou registrá-las. Um poema sobre as substâncias imaginárias das quais somos feitos, onde o autor falava de outro autor e do absurdo que é a existência.
      Senti vontade de abandoná-lo, mas o fascínio pela tragédia me empurrou até o final de suas páginas, onde encontrei aquilo que esperava: a Redenção. Fui consumido pelo fogo e me transformei em fogo. Fui devorado por um tigre e despertei como tigre. Fui levado para longe por um rio e voltei à sua nascente. Aquele livro -e a salvação que prometia- iriam me ajudar a crescer e a compreender o mundo.
      Conta a história que fora resgatado do esquecimento em janeiro de 1417 pelo secretário papal Poggio Bracciolini, então desempregado. Seu patrão, o Sumo Pontífice João 23 (nascido Baldassarre Cossa) fora destituído de seu cargo pelo Concílio de Constanza e agora aguardava seu destino em um cárcere.
      Seu autor era um grego, que quase caíra no esquecimento por causa da maneira como respondia à pergunta clássica da esfinge. Titus Lucretius Carus eliminava a magia do universo revelando que as estrelas eram feitas da mesma matéria que os homens, e que não havia nenhum sentido em nada. Mais tarde outros filósofos tratariam do mesmo tema, entre eles Kant -em "Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels"- um livro árido, que me derrotou antes que chegasse ao meio.
      Lucretius escolhera o poema como forma e como sentido. Seus leitores, ao contrário dos de Kant, saíam vitoriosos. Depois de cruzados os círculos do inferno e vencidos os rios do purgatório, o céu aguardava em todo seu esplendor e glória. Mesmo sem acreditar em uma vida eterna, mesmo sem dar-nos a possibilidade de aplacar a ira divina, mesmo sem permitir que nos refugiássemos no conforto e na segurança de nossos pensamentos mais infantis, a existência é justificada pela ordem eterna, algo que mais tarde seria conhecido como Ética. Heidegger traduziria para seus contemporâneos esse conceito, chamando-o de "antropologia filosófica", onde nos abre a porta de diversas possibilidades de ação.
      "De Rerum Natura" foi ao mesmo tempo o final de minha inocência e o primeiro combate -inútil- contra a morte. E a explicação no final me satisfazia plenamente, já que fui educado em uma família agnóstica, onde justificar tudo pela presença de um Ser Superior não apenas parecia superficial mas também de mau gosto estético.
      Muitos anos depois, já de volta a Buenos Aires, fui trabalhar na Biblioteca Municipal de Minguel Cané, localizada em um bairro operário. Os livros se encontravam em completa desordem, e uma das minhas tarefas era classificá-los e catalogá-los. Certa tarde, quando fazia o que a prefeitura me tinha incumbido, tornei a encontrar outro exemplar de "De Rerum Natura", só que desta vez com capa diferente.
      O dia anterior fora difícil, e resolvi reler seu final em busca de ânimo. Para minha surpresa, a edição estava incompleta -não havia mais redenção para a raça humana. Por ter um laço afetivo com o texto de Lucretius, escrevi um memorando pedindo que tal cópia fosse substituída. Depois de aguardar duas ou três semanas, entendendo que jamais obteria resposta, resolvi comprar um novo exemplar. Se algum dos operários da vizinhança algum dia resolvesse se aventurar no mundo dos clássicos gregos -eu duvidava muito- pelo menos encontraria uma resposta honesta ao enigma de sua vida mesquinha e repetitiva.
      Um dos grandes orgulhos de minha cidade natal é ter mais livrarias que nosso vizinho Brasil. Embora minha visão já começasse a me conduzir para o vale das sombras, durante quase uma semana peregrinei por todas elas, sem conseguir nem sequer um simples "está esgotado" ou "vendemos nossa última cópia há pouco." Ninguém havia escutado falar do livro.
      Revirei inutilmente a biblioteca de meu falecido pai. Recorri a alguns amigos, que contataram outros amigos, e logo versões estrangeiras começaram a chegar: "On the Nature of Things", "Sobre la Naturaleza de las Cosas", "Sulla Natura delle Cose", "Om Tingens Natur", e até mesmo a improvável edição finlandesa "Maailmankaikkeudesta". A última a ser recebida, entregue em mãos por Leopoldo Lugones, foi "De La Nature des Choses", publicada em 1888, traduzida por François-Gilles Tanni.
      A todas faltava o capítulo final.
      A tarefa de encontrar a tradução de Pierre Menard se tornou uma de minhas poucas razões de viver. Descobri mais tarde que este tipo de obsessão é conhecido pelos árabes como "zahir", um zona nebulosa entre o limite do conhecimento e o crepúsculo da razão.
      Em conversas, os amigos sugeriam que Menard havia deturpado o original, acrescentando algo que não existia. Eu respondia que não: havia completado "De Rerum Natura" com páginas imaginadas por Lucretius. De todos os instrumentos do homem, o mais assombroso é o livro. O arado, a espada, o microscópio, o telefone são apenas extensões de suas habilidades. Mas o livro é a revolução da memória e da imaginação.
      Quem procura sentido em livros está sendo apenas supersticioso -é o mesmo que buscar um significado para os sonhos ou para as caóticas linhas das mãos.
      Não quero acreditar que Lucretius tenha sido infiel a Menard. Prefiro morrer com a certeza de que em algum lugar existem bibliotecas com exemplares da obra com capa de Ascensio Rodríguez. Algumas pessoas os estão folheando neste momento, preparando-se para a vida onde a falta de sentido termina sendo resgatada pela salvação no final.
      Procuro imaginar o café que está em frente à minha casa na Grand Rue. Muitas vezes passei diante dele e jamais procurei descobrir como era. A imagem do café e a imagem do livro são a mesma. Ambos não existem. E ambos existem.

        Martha Medeiros - Frustração

        Zero Hora - 20/01/2013

        A história resumida: uma amiga estava há dois meses saindo com um homem bacana. Ele, perdulário em declarações de amor, a convidou para ir a Paris. Ulalá. Ela vibrou. Dez dias antes do embarque, ele mandou um e-mail dizendo que havia voltado para a ex-mulher.Sacanagem, pensamos. Mas sacanagem talvez seja um diagnóstico simplista.

        Ele estava tentando dar um novo rumo à sua vida, porém não contava com o assédio da ex-esposa, seu verdadeiro grande amor. Fez sua opção, e quem morreu um pouco foi minha amiga. Alguém sempre paga o pato. O assunto de hoje é uma velha conhecida de todos nós: a frustração. Jogue a primeira pedra quem já não caiu do cavalo (foi frustrado) ou roeu a
        corda (frustrou alguém). Somos todos experts em sonhos desfeitos.

        Existe coisa pior na vida, claro que existe, mas considero a frustração uma das sensações mais indigestas. O emprego é seu! Chegando ao escritório para entregar seus documentos, descobre que o posto já foi preenchido. Você quase passou no vestibular! Por uma vaga, umazinha só, ficou de fora do listão. A bolsa para estudar na Inglaterra saiu!

        Pena que o governo decretou um depósito compulsório de última hora e você não tem como pagá-lo. A garota que você está a fim chamou para a festa! Chegando lá, encontra a bisca agarrada no seu melhor amigo. Me veio à cabeça mais uns 456 exemplos de frustrações, algumas baseadas em experiências pessoais. Mas você tem sua própria lista para recordar, não serei tão cruel. O fato é: durma-se com esse embrulho no estômago.

        É sabido que uma das regras de bem educar uma criança é ensiná-la a lidar com frustrações. Seu bebê amado não será alto o suficiente para ser um campeão de basquete, nem sua lindinha terá as melenas loiras necessárias para ser a princesa do teatrinho da escola. Ou você mente e desvirtua a situação para aplacar a dor dos seus rebentos, ou permite que eles enfrentem essa dolorosa seleção natural e explica: não é isso que mede a importância de alguém.

        Papai e mamãe te amam de qualquer jeito. Grande prêmio de consolação, pensam os baixotes.Porém, baixotes, é isso mesmo. “Papai e mamãe te amam” é tudo o que vocês precisam saber para se lixar para as coisas que não dão certo. E acreditem: um bilhão de coisas não darão certo, dos cinco aos 105 anos.

        Só tendo sido suficientemente amado e protegido dentro do lar para entender que o que não deu certo é uma contingência da vida e que, dependendo do nosso grau de autoconfiança, poderá causar apenas cinco dias de mau humor em vez de uma dor existencial infinita.

        Acredite: os cinco dias de frustração não farão mal nenhum a seu crescimento, pelo contrário, será parte fundamental dele. A dor existencial é que nos engessa e paralisa para sempre. Lido razoavelmente bem com frustrações.
        Sofro os cinco dias protocolares, e depois retiro delas alguma lição que me torne mais aderente a decepções futuras – ambiciono chegar ao dia em que a frustração não doerá nem mais cinco minutos. Conseguirei?

        Na verdade, não pretendo colecionar frustrações para quebrar meu recorde de resistência. Se pudesse, não sofreria mais nenhuma. Mas isso equivaleria a não estar mais disposta a viver. Então, que venham as danadas. Uma de cada vez, que sou forte, mas não sou duas.

        Uma visita ao samurai ferido [Nagisa Oshima]

        FOLHA DE SÃO PAULO

        aRQUIVO ABERTO
        MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
        Uma visita ao samurai ferido
        Tóquio, 1995
        AMIR LABAKINagisa Oshima já era um samurai ferido quando o encontrei em Tóquio, no fim de setembro de 1995. Aos 63 anos, ele ainda não sofrera a série de AVCs que decretaria precocemente o fim de sua carreira após o homoerótico "Tabu" (1999), mas já amargava havia quase uma década uma semiaposentadoria, sem emplacar a realização de um longa-metragem desde o francês "Max Mon Amour" (1986). Para os produtores japoneses, era "persona non grata" mesmo antes do escândalo nacional e planetário com "O Império dos Sentidos" (1976), feito com financiamento internacional.
        Eu visitava Tóquio pela primeira vez, a convite da Fundação Japão, dentro de um grupo de personalidades do cinema brasileiro que fariam um tour de duas semanas, motivado por um duplo centenário: o do cinema e o do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e o Japão.
        O primeiro dos dois encontros que teria com Oshima foi inesperado. Em meio às esculturas de gelo que zelavam pela mais assombrosa mesa de sushis e sashimis que eu jamais veria, na recepção de abertura do 8º Festival Internacional de Cinema de Tóquio, surgiu uma figura trajando um vistoso quimono. Acompanhado de uma assistente, Oshima se destacava ainda mais pelo contraste com o figurino dos demais convidados: aquele que se autodefinira como "muito antijaponês" era o único vestido à moda oriental no salão.
        Parte do grupo o reconheceu, e nos aproximamos para que, seguindo a tradição, fossem feitas as apresentações formais. Não quis perder a oportunidade, mesmo sabendo que quebraria a agenda fixada para a viagem, e perguntei se poderia entrevistá-lo ainda durante minha breve estadia em Tóquio. Ele respondeu que talvez fosse possível e, após confabular com a assistente e com Jo Takahashi, coordenador cultural da Fundação Japão no Brasil e responsável por ciceronear nosso grupo, foi marcado um encontro para dois dias mais tarde em sua produtora.
        Sem falar uma palavra em japonês, empunhando firmemente o cartão de visitas que recebera durante as apresentações, tomei um táxi do hotel até o endereço da Oshima Productions Ltd. No centro do diminuto escritório encontrei o cineasta, sorridente, de chinelos como se usa no Japão, mas com impecáveis terno e gravata.
        A memória já me trai, e não lembro se a entrevista de cerca de uma hora e meia foi conduzida em inglês ou mediada pela assistente -infelizmente, não consegui localizar as fitas cassete com o registro do encontro. Mas lembro que me chamou a atenção a forma serena com que falou mesmo das adversidades o eterno "enfant terrible" do cinema japonês, um dos mais radicais líderes da ultrapolitizada e sensual "nuberu bagu", a "nouvelle vague" japonesa.
        O texto publicado na Folha de 30 de setembro daquele ano atesta: Nagisa Oshima não acreditava que houvesse, já àquela altura, algo chamado "cinema japonês".
        Já preparando aquela que seria, no ano seguinte, a primeira edição do É Tudo Verdade, não pude deixar de perguntar sobre sua intensa atividade como documentarista. O cineasta frisou que sempre se interessara muito por documentários e afirmou não ver "diferenças essenciais" entre ficção e cinema documental. Disse que gostava de passar de um registro para o outro e que o que sempre quisera fora "fazer filmes muito subjetivos."
        A informação que não saiu no jornal naquela ocasião surgiu na conversa quando ela já chegava ao fim: perto da despedida, Oshima me confidenciou ter esboçado um projeto ficcional sobre a imigração japonesa na Amazônia para a lavoura de pimenta-do-reino e juta, entre o final dos anos 1920 e o começo dos anos 1930.
        Era um projeto subjetivo: ele visitara a região quando viera ao Brasil por ocasião de uma retrospectiva de seus filmes no Masp, em 1984, ao lado de sua mulher, a atriz Akiko Koyama, que ainda tinha familiares na Amazônia. Um dia, disse-me sorrindo, pretendiam voltar.
        Infelizmente nada disso se concretizou. O projeto que então escrevia -o visceral "Tabu"- marcaria sua despedida das telas e, na última terça, aos 80, o samurai deixou as armas para sempre.

          O mapa da cultura - Sylvia Colombo

          FOLHA DE SÃO PAULO

          DIÁRIO DE MONTEVIDÉU
          O MAPA DA CULTURA
          Prata da casa
          Um museu para cada grande artista uruguaio
          SYLVIA COLOMBOPoucas cidades latino-americanas homenageiam de forma tão intensa os seus artistas -ou os estrangeiros que por lá passaram seus anos mais criativos- como Montevidéu. Os museus dedicados a Pedro Figari (1861-1938), Torres-García (1874-1949), José Gurvich (1927-74) e Juan Manuel Blanes (1830-1901) contam, cada um sob sua perspectiva, a história da cidade e do país.
          Nas telas de Figari, a influência da arte acadêmica italiana se mistura aos elementos de arte naïf para retratar cenas do cotidiano local, como bailes de candombe e festas populares com grande presença negra.
          Já as do construtivista Torres-García, artista uruguaio mais importante do século 20, trazem os experimentos que realizou misturando sua passagem pela Europa com um profundo interesse pela vida urbana de Montevidéu. Até o fim de fevereiro, seu museu dedica dois andares a uma retrospectiva do escultor Eduardo Yepes, nascido em Madri, mas radicado na capital uruguaia depois de casar-se com Olimpia, a filha mais velha de Torres-García.
          O museu dedicado à obra de seu discípulo Gurvich, de ascendência lituana, é o mais moderno do centro montevideano, e reúne suas esculturas e pinturas. Mas o verdadeiro mergulho no Uruguai histórico, porém, só é possível com a visita ao casarão no bairro do Prado que reúne os trabalhos de Blanes. Seus quadros mostram o processo de consolidação da nação, o estabelecimento das fronteiras e a definição da identidade "gaucha". Estão aí telas clássicas como "El Juramento de los Treinta y Tres" e "Artigas en la Ciudadela".
          RUA DOS LIVROS
          Desde 1909, a rua Tristán Narvaja abriga, aos domingos, um histórico mercado de pulgas no estilo do Rastro madrilenho. Durante os dias da semana, é frequentada por compradores de livros antigos.
          As sete quadras da rua, que começa na avenida 18 de Julio, abrigam mais de dez pequenos e médios sebos. É o caso de El Inmortal, um imenso corredor com prateleiras cheias que desemboca no átrio de uma antiga casona típica de Montevidéu.
          Proprietário do local há 13 anos, Roberto Gomensoro contou à Folha que o público é composto principalmente por uruguaios, argentinos e europeus. "Nosso forte são livros de ficção e história. Uruguaio adora história e biografias."
          Na El Inmortal, comprei uma biografia do libertador José Artigas por US$ 10 (R$ 22), e uma primeira edição do romance "Tierra de Memória", do célebre escritor uruguaio Felisberto Hernández (1902-64), por US$ 50 (R$ 110).
          CINEMA
          A média de produção cinematográfica do Uruguai subiu, na última década, de três filmes ao ano para sete, em 2012. O maior sucesso foi o de "3", de Pablo Stoll (trailer em bit.ly/pablostoll), também codiretor de "25 Watts" (2001) e "Whisky" (2004), ambos exibidos no Brasil.
          A produção conta as histórias entrelaçadas de três membros de uma família disfuncional de classe média de Montevidéu. Ana, a filha adolescente que busca no sexo casual a solução de suas angústias; Graciela, a mãe, que começa um romance com um homem que conhece ao acompanhar uma parente em estado terminal; e Roberto, que quer resgatar o amor perdido de ambos.
          "Assim como em 'Whisky' [sobre a história de um homem que finge estar casado com uma de suas funcionárias], quis explorar a maneira complexa como as famílias podem se formar e encontrar uma maneira de conviver", disse o diretor à Folha. Stoll finalizou a produção do longa sozinho depois do suicídio de seu parceiro, Juan Pablo Rebella, em 2006.
          CAETANO VELOSO URUGUAIO
          Um violão do qual arranca poucas notas, às vezes uma gaita ou uma caixinha de fósforo para uma percussão minimalista: é o que basta para que Fernando Cabrera, 56, arme seu universo musical, que define como "platense" -e que evoca as tradições da milonga e do candombe.
          O músico, espécie de Caetano Veloso uruguaio, cuja forma de cantar busca uma irregularidade que beira a estranheza, acaba de lançar "Intro", coletânea de 65 poemas inéditos e um DVD com um show gravado em Buenos Aires (ouça "Viveza", música de Fernando Cabrera em bit.ly/cabreraviveza).
          O disco é da gravadora Ayuí, especializada em música uruguaia, e tem a participação do argentino Kevin Johansen e regravações de outros clássicos da música do rio da Prata, como os de autoria de Eduardo Mateo (1940-90) e de Luis Alberto Spinetta (1950-2012).

            Nova York quer sua mordida da maçã

            FOLHA DE SÃO PAULO

            TECNOLOGIA
            Nova York quer sua mordida da maçã
            Cidade cria universidade de ponta para se tornar polo tecnológico
            RAUL JUSTE LORESRESUMO
            Iniciativa do prefeito Michael Bloomberg pretende transformar Nova York em polo de alta tecnologia focado em medicina, mídia, arquitetura e planejamento urbano. Consórcio entre a universidade americana Cornell e o israelense Technion deve inaugurar campus de nova instituição de ensino para 2.500 alunos em 2017.
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            EM NOVA YORK,o setor financeiro perdeu mais de 40 mil empregos desde a crise de 2008. Outras indústrias fundamentais para a cidade, como a editorial e a fonográfica, a de mídia e o varejo, enfrentam um momento ruim, graças à concorrência da internet.
            Enquanto isso, o Vale do Silício, vizinho a São Francisco, e a região de Boston-Cambridge, que abriga o prestigiado MIT (Massachusetts Institute of Technology), vivem um boom econômico produzido por milhares de start-ups -nome dado às empresas iniciantes-, sem mencionar o auge de gigantes da tecnologia, como a Apple, o Google e o Facebook.
            Nova York percebeu então que precisava se tornar um polo tecnológico.
            Em parte para se reinventar mas também para salvar suas indústrias tradicionais, a cidade decidiu que o primeiro grande passo para competir com o Vale do Silício seria criar sua própria versão do MIT: uma universidade que se direcionasse para a tecnologia, habilitada a formar os pesquisadores e a mão de obra para indústrias que talvez ainda não existam hoje.
            A gestação do MIT nova-iorquino começou com um concurso promovido pelo prefeito
            Michael Bloomberg: à universidade que apresentasse o melhor projeto, a prefeitura cederia um terreno de 45 mil metros quadrados na Roosevelt Island, vizinha a Manhattan, além de oferecer um aporte de US$ 100 milhões para gastos com infraestrutura.
            Houve candidaturas de 18 propostas de quase 30 universidades de 9 países. Com a recusa do MIT de Boston em participar, Stanford se transformou na favorita -foi das salas de aula da universidade californiana que saíram os fundadores de Google, Yahoo, HP, Sun e PayPal, além de boa parte das diretorias da Apple, do Facebook e da Microsoft.
            Mas o consórcio entre a tradicional Universidade Cornell, de Ithaca, no Estado de Nova York, e o instituto tecnológico israelense Technion, de Haifa, ofereceu rapidez -as aulas começariam um ano antes do que previam os demais concorrentes- e garantiu financiamento imediato para começar o novo campus, além dos US$ 100 milhões da prefeitura.
            A vantagem se definiu uma semana antes da data em que Bloomberg anunciaria o vencedor, em dezembro de 2011, quando um ex-aluno de Cornell, o bilionário Charles Feeney, criador da rede Duty Free Shops, doou US$ 350 milhões à instituição. A doação, uma das maiores já feitas por um indivíduo a uma universidade no mundo, foi integralmente para o projeto.
            A primeira fase do campus desenhado pelo arquiteto Thom Mayne para o Cornell NYC Tech deve ser inaugurada na Roosevelt Island em 2017 -na próxima década, a nova instituição deve alcançar os números de 2.500 alunos e 300 professores. O investimento nos próximos 15 anos chegará a US$ 2 bilhões. Mas, como Nova York tem muita pressa, as aulas não vão esperar. A prefeitura e o consórcio vencedor assinaram uma parceria com o Google para criar uma sede provisória do campus em Manhattan.
            A instalação temporária funcionará num edifício que ocupa um quarteirão inteiro nas proximidades do parque High Line, no bairro do Chelsea. O gigante dos mecanismos de buscas comprou o imóvel dois anos atrás, por
            US$ 2 bilhões, e alugou 2.500 metros quadrados de um de seus 15 andares ao consórcio, por um período de cinco anos. Os alunos, todos pós-graduandos, começam a frequentar as aulas no final deste mês -certamente sob os olhos atentos de boa parte da comunidade acadêmica internacional.
            DO ZERO
            Caminhando pelo vasto andar do Google ainda vazio, com apenas dez funcionários, Dan Huttenlocher, 54, sonha alto. Ele foi nomeado em março passado reitor do novo campus. Professor de Ciência da Informação, Computação e Negócios em Cornell desde 1988, Huttenlocher tem como tarefas a criação do currículo e a seleção dos professores -em resumo, inventar praticamente do zero a tal universidade do futuro. As expectativas são altas.
            Há um ano, ao apresentar o consórcio Cornell-Technion como vencedor do concurso que originaria o Cornell NYC Tech, o prefeito Michael Bloomberg -ele mesmo um bilionário da tecnologia e da mídia- afirmou acreditar que a criação da nova universidade ajudaria Nova York a se tornar mais rapidamente "o centro do universo digital".
            Se, no momento, parece que cada jovem americano brilhante, da economia à engenharia, quer aprender a fazer códigos de software e criar a enésima rede social para tentar se tornar o novo Mark Zuckerberg, o que Huttenlocher pensa em lecionar no novo campus? Algo que não envelheça como, digamos, um Orkut?
            Ele diz que o programa se erguerá em torno grandes focos: vida mais saudável; ambiente construído -termo que designa não só arquitetura e planejamento, mas aspectos urbanos na escala mais reduzida do bairro, do quarteirão ou da rua-; e mídia conectiva -aquela que interage com redes sociais e na qual as fronteiras entre emissor e receptor se encontram em dissolução.
            "Iremos da pesquisa científica sobre corpo ao uso de sensores e radares para construções mais sustentáveis e às novas mídias -não só redes sociais, mas as formas de nos comunicar, consumir e compartilhar informação."
            Não à toa, os focos se relacionam a três das maiores indústrias da cidade: medicina, mídia e construção e planejamento urbano. O jovial Huttenlocher vai explicando outras singularidades do projeto: "Não teremos departamentos, haverá cada vez menos barreiras de comunicação, será um ambiente aberto".
            Ele contratou Greg Pass, ex-diretor de tecnologia do Twitter, para chefiar o escritório de empreendedorismo do campus -instância responsável pelas futuras empresas que nascerão com os estudantes. "Todo aluno terá um orientador e um mentor da indústria, que esteja no mercado de trabalho. Todos farão estágio como aprendizes. Quatro dias por semana serão de aulas técnicas, e um, só de prática", discorre.
            Empresas serão convidadas a ter centros de pesquisa e desenvolvimento dentro do campus. "Quero laços muito diretos entre empresas, professores e alunos. No passado, a pesquisa gerava interesse comercial entre as empresas. Hoje em dia, também acontece o caminho inverso; acadêmicos se debruçam sobre desafios empresariais -o interesse comercial gera pesquisa", diz.
            No Brasil, doações de empresas a universidades ainda podem ser mal recebidas por alunos e professores; mas essa parceria entre iniciativa privada e academia é bem-vista em Nova York. "Acadêmicos curiosos querem trabalhar com problemas reais, ter acesso a dados que as empresas possuem e que não estão ainda na universidade", afirma.
            Em sua carreira, o próprio Huttenlocher mistura esses dois mundos. Ao longo de mais de 20 anos lecionando em Cornell, tirou várias licenças para comandar pesquisa na Xerox, criar empresas de tecnologia e trabalhar em áreas que vão da análise de redes sociais a robótica avançada para veículos autônomos.
            Questionado sobre a concorrência -poderosa em biologia, química e engenharia elétrica do MIT, onde surgem alguns dos maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, e em softwares e redes sociais de Stanford- o reitor busca uma "terceira via".
            "Queremos desenvolver nossa própria marca de tecnologia. O Vale do Silício [onde fica Stanford] é uma potência, mas é cercado de empresas de uma mesma área. Nova York tem grandes redes de televisão, jornais e revistas, editoras, teatros, produtoras. É um polo de medicina, de finanças, de planejamento urbano. Todas essas indústrias estão sendo transformadas pela tecnologia", diz.
            Para Huttenlocher, o Cornell NYC Tech pode construir um "engajamento profundo com essas empresas, com os clientes, com quem usa" e ocasionar "um grande impacto na transformação dessas indústrias".
            Para tanto, os docentes da nova universidade devem preencher uma série de qualidades superlativas. "Quero gente do mais alto nível acadêmico, que busque a pesquisa mais inédita, que sonhe com sucesso comercial, mas que queira causar impacto social. Há um número crescente de professores que pensam na tecnologia sem fins lucrativos, que se comprometem com grandes causas, e seria ótimo tê-los aqui."
            na brigA Mesmo derrotadas por Cornell, as duas maiores universidades de Nova York, Columbia e New York University (NYU), não desistiram da briga para abreviar o atraso tecnológico da cidade. Columbia planeja a criação de um Instituto para Ciências de Dados e Engenharia, e a NYU anunciou a construção, no miolo do Brooklyn, do Centro para as Ciências Urbanas e o Progresso, voltado para urbanização, gerenciamento de energia, trânsito, segurança e sustentabilidade.
            Outra parceria público-privada, bancada por empresas de tecnologia, como a Accenture, e bancos, como JP Morgan, Credit Suisse e Bank of America, promove concursos para start-ups de tecnologia que inventem serviços financeiros. Além de verbas de pesquisa, elas têm direito a mentores e encontros com diretores dos grandes bancos.
            A vontade de replicar o Vale do Silício vai bem além das fronteiras dos EUA. Em Skolkovo, na Rússia, um projeto bilionário procura criar um polo tecnológico rigidamente controlado. Cingapura está tentando o mesmo. No Brasil, localidades de diferentes escalas, do Recife a Campinas, de Belo Horizonte ao gaúcho Vale dos Sinos, sonham em ser o berço de novas empresas de ponta. O exemplo de Nova York demonstra que a competição está apenas no começo. E, assumindo o tamanho ainda bem modesto de seu polo, a cidade se autoatribuiu a alcunha de Sillicon Alley -beco do silício".

              O melhor da cultura em 8 indicações

              FOLHA DE SÃO PAULO

              ILUSTRÍSSIMA SEMANA
              BRASILEIRO
              *EXPOSIÇÃO E LIVRO | MENOS-VALIA [LEILÃO]*
              Na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, a artista mineira Rosângela Rennó reuniu 73 objetos adquiridos em mercados de pulgas -entre eles quadros, porta-retratos, máquinas fotográficas-, trabalhou os artigos e leiloou as peças. O valor arrecadado foi usado para financiar um livro que leva o nome da exposição. Quinze desses artigos leiloados na Bienal em 2010 estarão expostos na Galeria Vermelho, onde também será lançado o livro em 2 de fevereiro, a partir das 11h. de quinta (24) a 16/2 | grátis
              Cosac Naify | 336 págs. | R$ 75
              EVENTO E REVISTA | BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE
              A biblioteca celebra os 459 anos de São Paulo na sexta (25) com programação que inclui mostras de livros, concerto e a exposição "Um Cartaz para São Paulo", com pôsteres sobre a vida noturna da cidade criados por Rafic Farah, Marcelo Pliger (designer da Folha) e outros artistas gráficos. A revista da BMA, em sua 68ª edição publicada, traz dossiê sobre imigração, fac-símile de livro do artista Julio Plaza e texto de Augusto Massi sobre a extinta Livraria Duas Cidades.
              Programação: www.bma.sp.gov.br
              Revista: 224 págs. | R$ 40
              OLHAR ESTRANGEIRO
              Três perguntas a Sergio Burgi, coordenador fotográfico do Instituto Moreira Salles e curador da exposição "A São Paulo de Hildegard Rosenthal" (DOC Galeria, r. Aspicuelta, 662, de seg. a sex., das 11h às 19h, de 25/1 a 23/2; grátis)
              Folha - Por que Hildegard Rosenthal (1913-90) se destaca?
              Burgi - Primeiro, por ser mulher, fotojornalista, no fim dos anos 1930. Ela trouxe da Alemanha inovações em parte oriundas da escola Bauhaus, e também foi das primeiras a usar uma câmera pequena, uma Leica.
              O que é marcante em sua obra?
              Seu principal trabalho é sobre São Paulo, em que renovou a linguagem pelo estranhamento, pelos ângulos inusitados.
              Que critérios nortearam a escolha das fotos para a exposição?
              Deixamos de fora séries conhecidas, como os retratos de artistas, e preferimos o que guarda empatia com o espaço urbano, da calçada, feito sob um estímulo natural, que é o olhar estrangeiro, de quem está num novo espaço.
              ERUDITO
              LIVRO | A ORQUESTRA DO REICH
              Em profunda crise financeira durante os anos 1930, a Filarmônica de Berlim se rendeu a uma aproximação ao incipiente regime nazista proposta pelo ministro da Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. O canadense Misha Aster narra a relação entre a orquestra e o Estado alemão, que passou a cuidar das contas e da programação da instituição, entre 1933 e 1945.
              Trad. Rainer Patriota e Nelson Patriota Perspectiva/Editora UFPB 340 págs. | R$ 70
              LIVRO | O LUGAR SEM LIMITES
              Com este breve romance, José Donoso (1924-96) mostra por que Carlos Fuentes (1928-2012) o considerava um dos pais da narrativa moderna do Chile. Expoente, como o colega mexicano, da geração do "boom" na América Latina, Donoso costura de forma brilhante registro em terceira pessoa, diálogos e fluxo de consciência para narrar a história do travesti Manuela, sua filha, a Japonesita, e outras tristes personagens que habitam El Olivo, vilarejo perdido no interior chileno.
              Trad. Heloisa Jahn | Cosac Naify 160 págs. | R$ 29,90
              ESTRANGEIRO
              LIVRO | NÃO VIOLÊNCIA
              Abençoado por prefácio de "Sua Santidade o Dalai Lama", como estampa a capa do livro, o jornalista americano Mark Kurlansky escreve "a história de uma ideia perigosa": a "não violência", que, ao contrário do pacifismo, "é ativa" e não "passiva". Da Antiguidade de Cristo ao Vietnã de Nixon, o autor repassa a história da guerra -e das soluções não bélicas para conflitos internacionais- para denunciá-la como perpetuação do problema da violência.
              Trad. Otacílio Nunes | Objetiva
              240 págs. | R$ 34,90
              POP
              EXPOSIÇÕES | PAVILHÃO DAS CULTURAS BRASILEIRAS
              O centro de eventos no parque Ibirapuera promove duas mostras simultâneas. Design da Periferia, com curadoria de Adélia Borges, jornalista e professora de história do design, apresenta obras e fotografias de objetos como churrasqueiras feitas de calotas, barraquinhas de vendedores ambulantes, móveis e brinquedos estilizados. O Parque Tecido à Mão, organizado pelo designer e tecelão Renato Imbroisi, reproduz a flora do parque em 1.800 metros de tecidos feitos à mão.
              De sexta (25) a 29/7 | grátis
              CURSO | EDIÇÃO DE LIVROS
              Editor da Companhia das Letras e colunista da Folha, André Conti dá curso para pessoas que trabalham ou estão interessadas em atuar no mercado editorial. O funcionamento de uma editora, contato com autores nacionais e estrangeiros e edição de clássicos estão entre os temas abordados nos três dias de curso. Inscrições em bit.ly/cursoedicao.
              Espaço Revista Cult | segunda (28), terça (29) e quarta (30), das 20h às 22h | R$ 300

                ILUSTRÍSSIMOS DESTA EDIÇÃO
                AMIR LABAKI, 49, é articulista da Folha e fundador-diretor do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
                FERNANDO ANTONIO PINHEIRO, autor de "Lasar Segall - Arte em Sociedade" (Cosac Naify), é professor do Departamento de Sociologia da USP e pesquisador do CNPq.
                FRANCESCA ANGIOLILLO, 40, é editora-adjunta da "Ilustríssima".
                JUAN LUIS MARTÍNEZ (1942-93), chileno, foi poeta e artista plástico.
                LUIS PÉREZ-ORAMAS, 52, é curador de arte latino-americana do Museu de Arte Moderna de Nova York. Foi o curador da 30ª Bienal Internacional de São Paulo (2012).
                PAULO COELHO, 65, autor de "O Alquimista" e "O Diário de um Mago", ocupa a cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras.
                RAUL JUSTE LORES, 37, é correspondente da Folha em Nova York.
                SYLVIA COLOMBO, 40, é correspondente da Folha em Buenos Aires. Pág. 7
                VERIDIANA SCARPELLI, 34, é ilustradora e designer. Publicou o livro infantil "O Sonho de Vitório" (Cosac Naify).