sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Reiners Terron e a fragilidade da vida nua - Rodrigo Petronio


 Rodrigo Petronio | De São Paulo

Karime Xavier/FolhapressTerron: escrita bastante atenta ao andamento e ao faro ferino de uma prosa seca realista
Um delegado do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, rumina lembranças. Narra como vivera em um kibutz na adolescência. Confessa sua paixão pelos contos sobre os peles-vermelhas comanches de Oklahoma. Recapitula como o pai, judeu fugido da Rússia, migrou até chegar àquele sobrado decadente da rua Prates, onde vive em agonia.
Mesclados a essas memórias, os elementos tão cotidianos quanto insólitos se emaranham em uma investigação policial: viciados em crack; bolivianos escravizados; um entregador do mercado coreano adepto da igreja de São Kim Degum; um zoológico chamado Nocturama que funciona durante a noite; um taxista apaixonado por música erudita e por rottweilers.
A Sra. X, enfermeira com especialização em Manchester, cuida de uma paciente terminal, o corpo coberto de feridas em um casarão abandonado. Ela é a criatura, como diz o narrador-delegado. Para passar o tempo, a criatura passeia no Nocturama e narra por meio de desenhos as aventuras de um singular leopardo descrito na "Enciclopédia do Mundo Animal".
O leitor deve estar se perguntando: como é possível amarrar toda essa fauna? Qual efeito uma narrativa dessa geraria? Foi exatamente isso que fez Joca Reiners Terron em seu novo romance, "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves", uma das mais marcantes narrativas ficcionais da literatura brasileira recente.
Em termos ficcionais, um dos achados de Terron é um uso muito eficaz da primeira pessoa. Em seu tom de navalha legista, o delegado às vezes parece uma voz em off. Isso cria uma primeira adesão do leitor. E essa, por sua vez, fornece a verossimilhança necessária aos personagens e seres que se embaralham ao longo do livro, por mais insólitas que sejam essas combinações.
Ainda que à primeira vista possamos associar o romance àquilo que se convencionou chamar de pós-moderno, de hipermoderno ou de modernidade avançada, a prosa de Terron tem a virtude de manter-se bastante atenta ao andamento e ao faro ferino de uma prosa seca realista. Desse modo, os elementos são aparentemente aleatórios, mas estão longe de se relacionar por meio de uma suspensão da lógica natural.
Isso poderia produzir o fantástico, na acepção de Tzvetan Todorov, ou o mágico e o maravilhoso, seja nas vertentes específicas da literatura latino-americana ou em um sentido mais amplo. O efeito que se tem, ao contrário, é o de um constante estranhamento hiper-realista. Avesso à sobrenaturalização da realidade, essa estratégia narrativa consegue contornar as fragilidades imagéticas da livre associação e da literatura de inspiração onírica, preservando entretanto um alto grau de liberdade imaginária.
No nível temático e de composição, a metáfora zoológica atravessa todo o texto, oscilando entre duas matrizes: o Mundo Animal e O Escrivão. Esse também é o seu movimento pendular: entre a consciência agônica do escritor-delegado e a animalização da vida humana apreendida em sua fisionomia mais imediata.
Nesse sentido, Terron propõe um dilema ao leitor. A questão não é fazer um romance realista sobre um bairro de São Paulo. Tampouco uma obra pós-moderna que consiga articular bisontes, comanches, judeus russos, escravos bolivianos, uma governanta perversa, rottweilers, um taxista e quantos mais personagens sejam necessários para fazer a crítica ou a apologia do multiculturalismo. A questão levantada pelo escritor é mais aguda. Diz respeito à fragilidade da vida nua, capturada pelas armadilhas de poder e de linguagem e transformada em exceção.
Para pensar com Giorgio Agamben, a alteridade não consiste em uma espessura espiritual que nos uniria enquanto seres humanos. Mas na autoapreensão da condição "matável" que chancela toda vida. Nesses termos, o romance de Terron aponta mais para uma análise dos mecanismos sutis de clivagem racial, étnica e política do bipoder contemporâneo do que para hipotéticas soluções ou críticas exteriores à própria fabricação sistemática de humanos matáveis. A metáfora do zoológico se expande. Abre-se sob o céu vazio.
Mas, nesse caso, qual seria a redenção? Talvez o reconhecimento de nossa frágil condição animal. Como os salmões, o leopardo-das-neves retorna ao seu lugar de origem para morrer. É esse o mesmo caminho que o delegado-narrador percorre até se identificar com o mais miserável dos seres. Contudo, não morre. Ao contrário, sente-se feliz por tê-lo descoberto. E por poder amá-lo. Esse reconhecimento é o começo da música humana.

"A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves"

Joca Reiners Terron. Companhia das Letras, 176 págs., R$ 36,00 / AA+
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