domingo, 3 de março de 2013

Helio Schwartsman

folha de são paulo

Genealogia da moral
O debate sobre a tortura mostra quão pouco sabemos de nós mesmos
HÉLIO SCHWARTSMAN
RESUMO Debate entre colunistas desta Folha reacendeu a discussão sobre as questões éticas da utilização da tortura. Sob o ponto de vista de duas matrizes de sistemas éticos -deontológica e consequencialista-, as ponderações de cada um dos autores denota quão paradoxal é a construção de nossas convicções morais.
É DIFÍCIL A vida do ser humano. Levamos centenas de milhares de anos para aprimorar a ética e, quando procuramos sistematizá-la, quebramos a cara, já que as tentativas de fazê-lo invariavelmente levam a paradoxos. Faço essa consideração a propósito da controvérsia sobre a justificação moral da tortura em que se meteram alguns de meus colegas colunistas da Folha e me junto a eles na balbúrdia.
Foi Contardo Calligaris quem deu início à celeuma, lançando, em sua coluna na "Ilustrada" de 21 de fevereiro, de forma meio provocativa, uma variante do dilema conhecido como "problema da bomba-relógio": "Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?".
Vladimir Safatle e Marcelo Coelho aceitaram a provocação e responderam a Calligaris com artigos bastante interessantes. Na terça passada, o professor da USP criticou, em seu texto semanal na página 2, o que chamou de "paradoxos morais de laboratório" aos quais acusou de não informar nada e esconder interesses nem sempre confessáveis.
No dia seguinte, Coelho, na "Ilustrada", foi mais ou menos na mesma linha, afirmando que esse gênero de experimento mental combina muito mais com a ficção do que com a realidade, na qual não devemos admitir nenhum tipo de tortura.
Paradoxalmente, eu concordo com todos eles e também discordo, em proporções parecidas.
Receio que, para entender melhor o que está em jogo, tenhamos de traduzir a polêmica para o chamado filosofês.
SISTEMAS ÉTICOS Fazendo uma simplificação exagerada da história da filosofia, existem duas matrizes de sistemas éticos. A primeira, que se pode chamar de deontológica, têm como expoentes Platão (429-347 a.C.) e Immanuel Kant (1724-1804).
Para os dois autores, são os princípios que importam. Valem incondicionalmente regras como "não matarás" ou "não mentirás", porque estão amparadas pela ideia de justiça, por Deus, pelo imperativo categórico ou por alguma outra entidade meio metafísica.
No outro extremo dos sistemas éticos está o consequencialismo, defendido por intelectuais comoJeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).
Em resumo, eles dizem que não existem princípios externos abstratos como a ideia de justiça que possam validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é por meio das consequências que acarretam. É preciso dizer que são boas as ações que engendram bons resultados. No caso de Bentham (conhecido como o pai do utilitarismo), o que interessa é o princípio de utilidade, que pode ser traduzido na fórmula "o maior bem para o maior número de pessoas".
O argumento da bomba-relógio pode nos deixar em dúvida porque apela a nossas intuições consequencialistas. Se torturar um indivíduo nos faz salvar cem pessoas, ficamos com um saldo líquido de 99 vidas, mesmo que o suposto terrorista morra no processo.
O problema tanto com as éticas deontológicas como com as consequencialistas é que, se tomadas muito ao pé da letra, levam a situações que desafiam nosso senso de justiça. O dever de ser honesto para com todos, por exemplo, me obrigaria a revelar a um assassino o lugar onde sua presa se esconde.
O próprio Kant foi vítima desse paradoxo de laboratório. E caiu na esparrela. Após ter sido provocado por Benjamin Constant (1767-1830), o filósofo de Königsberg publicou "Sobre um Pretenso Direito de Mentir por Amor aos Homens", um dos mais estranhos textos da história da filosofia, no qual confirmou que não temos o direito de mentir para ninguém, nem para assassinos e outros celerados que nos ameacem a vida.
A situação dos consequencialistas não é muito mais confortável. Se só o que importa é produzir o maior bem possível para a maioria das pessoas, então o médico poderia matar o paciente saudável que entra em seu consultório para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pessoas que necessitavam de transplante. De forma análoga, o Estado estaria autorizado a torturar não apenas terroristas mas também seus familiares para demovê-lo de seus projetos funestos.
MECANISMOS É claro que filósofos são sujeitos espertos e, tendo percebido esses problemas, se puseram a elaborar mecanismos para contorná-los. Foi assim que surgiram propostas inventivas, como o consequencialismo de regras, o consequencialismo em dois níveis e as metaéticas contemporâneas, sem mencionar as éticas da virtude e as que pendem para o contratualismo.
O filósofo contemporâneo Derek Parfit, em seu monumental "On What Matters", chega mesmo a propor uma interpretação que torna Immanuel Kant um consequencialista. Mas, se filósofos são bons em imaginar soluções, são ainda melhores em levantar objeções. Até o momento, não existe (e provavelmente jamais existirá) uma teoria que satisfaça a todas as partes.
Centremo-nos nas críticas ao consequencialismo, pois foi o que levantou o problema da tortura.
Um dos principais pontos fracos dessas éticas é o problema da falta de informação. Outro filósofo da atualidade, Daniel Dennett, exemplifica bem a questão com o que chamou de "efeito Three Mile Island". Em 1979, nessa localidade no Estado da Pensilvânia, ocorreu o pior desastre nuclear da história dos EUA, quando uma sucessão de eventos levou ao derretimento parcial do núcleo de um dos reatores. Houve vazamento de radiação, mas não se registraram mortes. A pergunta é: o incidente teve resultado positivo ou negativo?
À primeira análise, ninguém qualificaria um desastre nuclear como bom. Mas, considerando que não houve vítimas e que o ocorrido contribuiu para reformular os protocolos de segurança e tornar as usinas muito menos perigosas, essa ideia já não parece tão absurda. Um espírito de porco, porém, poderia afirmar que o incidente, ao nos empurrar para matrizes energéticas mais poluentes do que a nuclear, provavelmente foi responsável por alguns casos extras de câncer, o que reduziu o bem-estar da humanidade. O mundo é um lugar complexo demais para imaginarmos que seremos capazes de considerar todas as variáveis relevantes.
Outra dificuldade é que não é tão simples encontrar uma moeda corrente que permita intermediar as contas necessárias para fazer o consequencialismo funcionar.
Como observou a filósofa Patricia Churchland, "ninguém tem a menor ideia de como comparar a leve dor de cabeça de 5 milhões de pessoas com as pernas quebradas de duas pessoas, ou as necessidades de dois filhos contra as de cem crianças com paralisia cerebral das quais não somos parentes na Sérvia".
Nesse sentido, não dá para deixar de concordar com Vladimir Safatle e Marcelo Coelho quando afirmam que o paradoxo moral fora de contexto não pode servir de modelo para situações reais. Quantas vezes na história da humanidade o cenário da bomba-relógio de fato se materializou? Eu arriscaria dizer que nenhuma. E, mesmo que tivesse acontecido, que garantia teríamos de que todas as informações relevantes foram computadas? Será que entre as crianças que morreriam no atentado não estaria o próximo Hitler?
MORAL Sam Harris resume bem as coisas quando diz, em "The Moral Landscape", que o consequencialismo é muito mais uma afirmação sobre o status da moral do que um método para responder a problemas éticos específicos.
Daí não decorre que os paradoxos de laboratório sejam uma completa inutilidade. Eles oferecem uma janela perfeita para que perscrutemos nossas intuições morais, que podem ser bastante informativas, tanto do ponto de vista da filosofia como dos da psicologia evolutiva e da própria biologia.
O psicólogo Jonathan Haidt explora bem esse tipo de questão. Analisemos um dos paradoxos que ele propõe.
Julie e Mark são irmãos. Eles estão em férias da universidade, fazendo uma viagem pela França. Uma noite, sozinhos num bangalô à beira da praia, decidem que seria legal e divertido se fizessem amor. Julie já estava tomando pílulas anticoncepcionais, e Mark resolveu que usaria também uma camisinha, só para garantir. Os dois fazem sexo e gostam da experiência. Combinam de mantê-la em segredo e jamais repeti-la. O que você acha disso? O que eles fizeram é correto?
A esmagadora maioria das pessoas pensa que não. Muitos sentem até um mal-estar visceral ao ler a descrição. Ninguém, entretanto, é capaz de apontar o que há de objetivamente errado na experiência dos irmãos, já que ela não produziu nenhuma espécie de dano para ninguém.
Desse pequeno paradoxo e da forma como as pessoas reagem a ele já podemos extrair "insights" valiosos sobre a origem da moral -que carrega muito de emocional, como, aliás, já apontara David Hume (1711-1776)- e sobre o lugar do incesto em nossa psique (ao que parece, ele provoca mais repulsa do que desejo).
Jonathan Haidt, porém, vai mais longe e, valendo-se de várias famílias de investigações com base em paradoxos, propõe uma genealogia completa da moral, que seria composta por seis sentimentos básicos: proteção, justiça, liberdade, lealdade, autoridade e santidade (pureza). Eles constituiriam uma espécie de tabela periódica do instinto moral. O mapa ético de cada indivíduo seria uma combinação de diferentes proporções desses ingredientes.
Evidentemente, a teoria de Haidt está longe de ser um consenso. Ela recebeu muitas e variadas críticas, algumas bastante pertinentes. O objetivo, contudo, era apenas tentar demonstrar que os paradoxos podem ser produtivos -mesmo que não sejam capazes de nos oferecer um manual de conduta.
Aliás, o interessante nessa história toda é que, quanto mais nos embrenhamos nessas reflexões, mais precário parece o edifício lógico no qual sustentamos as convicções morais que expressamos com tanta veemência.

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