quarta-feira, 20 de março de 2013

Em defesa de Dolores Duran - ANGELA DE ALMEIDA


O GLOBO - 20/03/2013

No último dia 12, Caetano Veloso dedica sua coluna dominical ao mais terno dos mitos da canção brasileira: Dolores Duran. Num comovente testemunho de abertura, discorre sobre o impacto que lhe causou a notícia da morte prematura desta “cantora e compositora excepcional”, e reputa a admiração e a simpatia que, na plena flor de seus 13 anos, já nutria por ela como apenas um prenúncio de que “a amaria tanto”.

Na contramão desse sentimento, entretanto, e com base numa biografia da artista que acabara de ler, um Caetano consagrado e maduro tece a seguinte assertiva: “a figura vital e engraçada que surge da pesquisa de Faour não me surpreende: a ‘fossa’ dos sambascanções era uma exigência, por assim, dizer natural”. Afirmação que, vinda de quem vem, soa como uma sentença. E que os 15 anos de debruçamento sobre a vida e a obra da autora de “A noite do meu bem” me conferem o direito e o dever de defendê-la.

Dolores Duran foi, sim, uma figura vital e engraçada. Mas foi também portadora de uma cardiopatia grave. E conviveu desde muito cedo com uma aguda consciência da própria finitude. Que, somente às vésperas de se despedir da vida, perpetuou em versos como “A vida acaba um pouco todo dia/ Eu sei e você finge não saber/ E pode ser que quando você volte/ Já seja um pouco tarde pra viver” ou “Dá-me Senhor uma noite sem pensar/ Dá-me Senhor uma noite bem comum / Uma só noite em que eu possa descansar/ Sem esperança e sem sonho nenhum”.

Num tempo em que a cardiologia engatinhava, o caráter inexorável do mal que pulsava no débil e hipertrófico coração de Dolores usurpou-lhe o que a vida tem de mais caro: o direito à esperança e ao sonho.

Não por acaso, em maio de 1955, dois meses após o colapso cardiogênico que quase lhe tira a vida, Dolores Duran dá à luz sua primeira canção (“Se é por falta de adeus”, uma entre três obras-primas em parceria com Tom Jobim), faz desabrochar um talento excepcional como compositora, e, com ou sem a ajuda de parceiros, constrói, nos últimos quatro anos de sua curta existência, uma obra que se incorpora de maneira definitiva à memória afetiva do país.

Nesse momento preciso em que vê decretada sua contagem regressiva passa também a viver, com sofreguidão, cada dia como se fosse o último (“a vida acaba um pouco todo dia”). Sabe, mas “finge não saber” da gravidade de seu quadro. E a oculta de familiares e amigos, por mais diletos.

Sob a externalidade alegre, esconde uma angústia brutal. Para a qual sinaliza com rastros tão sutis quanto inequívocos. Como o pseudônimo que inaugura em 1958 com “Noite de paz”: Durando — um anagrama de seu nome artístico que forma o gerúndio do verbo durar. Um eufemismo para a mais dura das certezas que guarda no momento em que atinge a plenitude de seu potencial artístico e de seu impulso criador: o prazo de validade de suas ‘dolores’ está inapelavelmente vencido.

Nada mais legítimo, portanto, que a ternura e a melancolia que emanam da obra autoral de Dolores Duran. Cuja excelência e atemporalidade não permitem que seja circunscrita a uma tendência do samba-canção nos anos 1950 que, somente na década seguinte, viria atender pelo nauseabundo epíteto de “fossa”.

E sua perenidade é a prova mais contundente disto. Dolores Duran funda a escritura poética feminina na canção brasileira. Quem, antes ou depois, foi capaz de traduzir com tamanha força e simplicidade sentimentos do gênero como os que trazem os versos “Eu quero paz de criança dormindo/ E abandono de flores se abrindo/ Para enfeitar a noite do meu bem”? Quem, além dela, tendo cursado apenas o primário, poderia merecer a honraria de se tornar o primeiro compositor popular a receber uma homenagem da Academia Brasileira de Letras?

Quanto à aparente irresponsabilidade de Dolores na entrevista em que torna públicas suas impressões sobre a União Soviética, sempre me calou fundo a impressão de que se trata, sim, de declarações legítimas. Mas feitas em off. Mas esta é outra história, para ser contada em outra ocasião...


Angela de Almeida é jornalista e prepara uma biografia sobre Dolores Duran.

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