domingo, 24 de fevereiro de 2013

Um país na tela - João Paulo


Estado de Minas: 23/02/2013 04:00
Cinema e Estados Unidos sempre formaram um par produtivo. O país tem sido inspiração para a arte e, por sua vez, nenhuma expressão estética traduz tão bem uma nação quanto o cinema faz com os EUA. Há muitos motivos para essa afinidade eletiva: ambos têm natureza democrática; colocam a emoção à frente da razão (embora sejam pragmáticos quando necessário); apostam na capacidade de compreensão de todas as pessoas; vêm o sucesso como conquista, não como concessão; são ambos fruto da confiança na técnica e no progresso da indústria.

Por isso, a cada temporada, a premiação do Oscar traz elementos importantes para entender tanto os rumos do cinema quanto a forma como o país se vê a partir da leitura de seus artistas. O cinema, ano a ano, faz uma espécie de psicanálise dos EUA, oferece um espelho de seus méritos e pecados. Pelos filmes, os americanos reafirmam seus valores e buscam a redenção de seus defeitos. Que façam isso publicamente é um elemento a mais do destino de ser uma nação que valoriza a liberdade, ainda quando não a exerça tanto quanto pensa. Até nessas horas o cinema dá pistas das culpas e estimula a busca de superação.

Amanhã, durante a cerimônia do Oscar, nove produções disputam o prêmio de melhor filme. Desses, cinco são assumidamente leituras históricas dos destinos do país: Argo, A hora mais escura, Django livre, Lincoln e Indomável sonhadora. Um deles, O lado bom da vida, é um retrato da família americana em estágio de recuperação. Dois deles trazem realidades exteriores, da França e da Índia – Os miseráveis  e Aventuras de Pi –, mas com determinações de ordem técnica que se adequam à visão própria da arte industrial: o musical e o uso da fantasia ilusionista. Apenas Amor, com sua densidade outonal, parece indicar um movimento centrífugo em direção a outra realidade.

Cada um dos filmes parece dar conta de um estágio da atual composição da alma do americano e, em consequência, de parte importante do mundo ocidental siderado pela influência da cultura dos EUA, em suas vertente mercadológica e expansionista. A começar por Lincoln, que carrega o maior número de indicações. O filme de Steven Spielberg recua na história para ser atual em política. Trata-se de uma narrativa sobre o impasse, sobre a impossibilidade da unanimidade, sobre a necessidade de se construir o consenso por meio das diferenças.

O livro sobre o qual se baseou o roteirista Tony Kushner, a biografia de Lincoln escrita por Doris Keams Goodwin , tem como subtítulo Time de rivais. A historiadora defende que para conseguir a síntese que permitiu dar fim à guerra de secessão e abolir a escravidão no país, Lincoln precisou contar com os adversários. Seu gabinete e principais assessores foram recrutados entre inimigos no processo eleitoral que o elegeu. A obra de união não pode ser patrimônio de uma visão parcelar da realidade. O melhor dos mundos possíveis só pode ser erigido com a participação de todos, mesmo que para isso cada um tenha que ceder um pouco.

Numa guerra entre irmãos, todos perdem. É sempre melhor aceitar fracassos que contar os mortos. Essa lição parece soprar de uma região ainda inconsciente dos EUA. Talvez o mais belicoso dos Estados modernos esteja se cansando de tanta matança, ainda que em nome da liberdade. Lincoln, por isso, não é um filme de ação, mas de palavras. Não há nada mais pacífico que um monte de gente falando, falando, falando. Há uma crença civilizadora no poder da palavra. Lincoln  consagra essa forma civil de fé.

Na ponta inversa, Django livre parte de contexto semelhante, as décadas que precedem o fim da escravidão, para reforçar, no presente, o quanto o país deve à violência que estimulou por tanto tempo. Tarantino, com o virtuosismo de sempre (há uma erudição da subcultura), escancara as contradições do país por meio de violência, submissão, arrogância, ganância e estupidez. Sua história vai na contramão do palavrório de Lincoln. Em vez de falar, manda bala.

O espírito americano vem, de uns tempos para cá, sofrendo com os prejuízos apontados por Tarantino: excesso de armas, violência como afirmação da virilidade, sobranceria, racialismo e arrogância. O fato de todas as relações serem mediadas ainda por dinheiro é um elemento a mais no país deitado no divã do cineasta. Django livre reúne todos os estereótipos para tentar construir ao menos um personagem real, que surja como alternativa para um mundo que precisa urgentemente ser transformado. Seu Django precisa vencer o ódio com o ódio. O que veio depois parece não ter conseguido se afastar do modelo. Tarantino não tem orgulho do que mostra: um país a caminho.

Outro lado

Dois filmes, Argo e A hora mais escura, tratam de limites dos EUA em sua relação com o mundo. A guerra ao terror, do qual Argo parece ser devedor, e A hora mais escura seu quase documentário assumido, perpassa a crise de valores do país. Nos dois filmes, hábeis histórias de suspense e thriller político, a construção cinematográfica parece jogar para segundo plano a ideologia. No entanto, não há como escapar do clima de maniqueísmo, com o Oriente expressando o lado errado da civilização.

Argo transforma os iranianos (da época da Revolução Iraniana) em fanáticos, sem qualquer mediação. A honra mais escura, com o projeto de narrar a transformação de um país no rosto de uma mulher, corre o risco de naturalizar a tortura e outros procedimentos, com o argumento de que trata-se de contar uma história feia, em que coisas feias acontecem. Os dois filmes podem ser julgados por seus exageros patrióticos, ainda que se defendam no fato de seguirem o script da história.

A personagem de Jessica Chastain em A hora mais escura inicia sua jornada em meio ao estranhamento, como os próprios EUA, que não sabiam o que fazer para romper com o sentimento de derrota decorrente do 11 de Setembro. Com o passar dos anos, assim como seu país, sua face perde a expressão, seus objetivos se dissolvem na realização de uma tarefa prática, a eliminação de Osama bin Laden. O que permeia os dois momentos é um interregno que afetou o moral do americano comum. Quando Obama, no filme, diz que os EUA não lança mão de tortura, ele fala uma mentira que soa tão anódina quanto banal. A hora mais escura é a crônica dessa banalidade.

Quando começar o Oscar, amanhã à noite, a América vai ter motivos para pensar em seus limites. Talvez aprenda com Lincoln o valor da humildade, com Django a herança de violência da qual precisa se despregar, com A hora mais escura que os fins não são soberanos e entorpecem a ética e com Argo que há gente capaz de pensar diferente sem ser pior por isso.

No entanto, o mais americano dos filmes é mesmo Indomável sonhadora. Retrato da miséria do país mais rico do mundo, tem como salvação a fantasia e aposta de que, daqui a milhões de anos, alguém vai se importar com uma menina linda que perdeu tudo, menos a ligação com a vida. Há uma esperança no desprendimento de pessoas que amam seu lugar, que preferem a festa ao trabalho, a imaginação à realidade. Indomável sonhadora é a nova face do sonho americano: quanto menos, melhor.

Nenhuma arte industrial é tão poderosa. Mas pensar em tudo isso, ter acesso ao prazer estético e ainda se divertir é uma das boas coisas da vida. Mesmo que seja preciso, uma vez por ano, ouvir piadinhas infames dos apresentadores.


jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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