sábado, 23 de fevereiro de 2013

'Escrevi em inglês para ser lida', diz autora

folha de são paulo

Após ter livros infantis recusados no Brasil, Lilian Carmine angariou fãs publicando obra juvenil em site canadense
Editora da Random House não notou que escritora não era inglesa; tradução sairá no Brasil pela LeYa
RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHAA inglesa Gillian Green ouviu a dica de um colega: "Dá uma olhada nesta história".
Diretora de ficção de um selo comercial na Random House britânica, com a meta de lançar 35 potenciais sucessos ao ano, ela tende a receber mais dicas do que pode administrar -o site da editora, a maior do mundo, diz que menos de 1% dos originais não solicitados são publicados.
Aquela foi uma ocasião em que se sentiu impelida a ir atrás. As circunstâncias favoreciam. A tal história, "The Lost Boys", era a mais lida do Wattpad, misto de rede social e site de autopublicação que ainda não emplacou no Brasil, mas que no exterior é chamado de "YouTube do texto".
Iniciada no começo de 2010, a trama, escrita em inglês e assinada por Lilian Carmine, logo se destacou entre os 10 milhões de narrativas em série do site canadense, postadas e/ou lidas por 14 milhões de usuários.
No fim de 2012, quando Gillian leu "The Lost Boys", o Wattpad sinalizava 32 milhões de visualizações para os 49 capítulos do livro, postados cada um em uma página, ou uma média de 650 mil leituras da história inteira.
Por bem menos que isso -15 milhões de visualizações-, a americana Brittany Geragotelis tivera seu "Life's a Witch" contratado pela Simon & Schuster, outra das maiores editoras do mundo.
Lilian Carmine narrava a história de Joe, garota que conhece um rapaz, Tristan -na verdade, um fantasma, algo de que ela não desconfia, embora ele nunca saia do cemitério. Esse era só o início, e Gillian Green ficou, segundo lembra, "apaixonada".
PSEUDÔNIMO
Quando pensou em assinar como Lilian Carmine, a paulistana Bruna Brito, 35, tinha duas coisas em mente.
A primeira era que o pseudônimo a deixaria à vontade, sem que conhecidos soubessem que ela escrevia romances juvenis na internet. Formada em artes visuais, ela já tinha certo nome como ilustradora e trabalhava para editoras como a Saraiva.
A outra era que não haveria nativo de língua inglesa capaz de driblar os bês e erres de seu nome. Já que escreveria em inglês, sem nunca ter morado fora nem estudado mais que o "to be" na Cultura Inglesa, era bom evitar o trava-língua entre leitores.
Lilian aprendeu o idioma por conta própria, diz, vendo séries e lendo -a obra completa de Terry Pratchett, todo o "Harry Potter", muito Neil Gaiman. Em "The Lost Boys", usa gírias e faz gracinhas, sem a dureza de quem escreve numa segunda língua.
Joe e o fantasma Tristan são só uma ponta da trama, que inclui romance, fantasia e uma banda de rock. "Vou jogando estereótipos e desmontando-os. As meninas estão acostumadas com certos arquétipos e se surpreendem", diz Lilian, no prédio onde mora com o marido, na zona oeste de São Paulo.
Ela conta que começou a escrever em inglês porque "queria ser lida". No Brasil, apesar de já trabalhar para editoras, cansou de esbarrar em negativas. Tem uma gaveta cheia de infantis inéditos.
'MEU DEUS!'
Em novembro, Gillian escreveu para Lilian: "Adorei seu livro. Pode passar aqui na editora para conversarmos?".
Lilian, incrédula, respondeu: "Fico felicíssima, mas vai ser meio difícil passar aí: eu moro no Brasil".
A editora acha graça em não ter notado detalhes "estrangeiros" que agora reconhece no texto: "Estava tão envolvida que não notei. Em sites assim, são naturais probleminhas de texto. Quando ela falou que era do Brasil, pensei: 'Meu Deus!'".
O contrato para uma trilogia foi assinado em novembro passado -o segundo livro, postado a partir de 2011, chegou a ter 1,4 milhão de visualizações antes de ser retirado do ar a pedido da editora.
Do primeiro, ficou no ar um aperitivo de seis capítulos. Para não frustrar quem aguardava o terceiro livro, iniciou no site uma história paralela com os mesmos personagens.
"The Lost Boys 1" sairá em setembro pela Ebury Press, que, na intrincada rede que abarca 19 países, é o maior selo de uma das cinco divisões do Random House Group, o braço britânico da americana Random House Inc.
O gênero é "new adult", invenção recente do mercado editorial. Visa um público entre os 15 e os 30 e poucos anos, com a exclusão da denominação "juvenil". "É mais maduro e provocativo que 'Crepúsculo', que é 'young adult'", explica a editora.
Antes mesmo de ter o livro pronto e de definir sua tiragem no Reino Unido, a Random House já vendeu direitos para Itália, Portugal e Brasil.
Quem levou aqui foi a LeYa. "Comprei assim que soube, antes que entrasse em leilão", diz a publisher Maria João Costa. A versão nacional, também prevista para setembro, não será traduzida pela autora, que estará escrevendo o fim da trilogia.
Lilian diz não ter recebido nenhuma proposta milionária, mas, com os adiantamentos e uma limpa na poupança, pretende passar um ano com o marido no exterior a partir de maio. Embora escreva bem, sente-se travada para falar em inglês. Quer estar afiada para poder dar entrevistas quando chegar a hora.

    TRECHO
    Eu estava perdida.
    Eu era realmente uma garota perdida.
    Estive andando nesse velho cemitério, completamente perdida, por cerca de 20 minutos agora, tentando encontrar a saída, mas cada vez que pensava estar chegando perto, me encontrava mais longe e fundo nesse velho cemitério.
    Quanto mais longe ia, mais envelhecido tudo se parecia. Estátuas se tornavam mais decadentes e caindo aos pedaços, grama acinzentada e ressecada tomava conta de rachaduras no chão, túmulos com cada vez mais musgo e mais descuidados. Um pouco de neve caíra perto das lápides, mas as alamedas estavam limpas e livres para andar. Eu estava seriamente tentada a começar a gritar a qualquer momento agora, como uma criança patética que se perdeu da mãe. Eu podia sentir o constrangimento esquentando minhas bochechas só de pensar.
    E tudo isso começou comigo e com minhas boas intenções.
    Extraído de "The Lost Boys"
    (tradução não oficial)

    Idioma tende a ser barreira para brasileiros
    DA COLUNISTA DA FOLHAUma dificuldade para a publicação de brasileiros no exterior é o idioma: pouquíssimos editores leem português. No mercado de língua inglesa, é comum editores só lerem mesmo no próprio idioma.
    Nos últimos anos, tem se tornado comum editores, agentes e até autores brasileiros mandarem traduzir trechos de obras para apresentá-las ao mercado estrangeiro.
    Mais difícil que isso é um autor escrever uma obra literária num idioma que não é aquele em que foi criado -há casos clássicos, como o do tcheco Franz Kafka, que escrevia em alemão, e o russo Vladimir Nabokov, mestre da literatura em língua inglesa.
    Eram outros tempos. Hoje, a cultura pop é um caminho de familiarização com o inglês. Assim como Lilian Carmine, o recifense Jacques Barcia, 34, que há alguns anos publica em inglês, credita a facilidade ao contato com livros, quadrinhos, músicas e games.
    "É mais difícil, é claro. Não sou nativo nem morei em país anglófono. É possível que meu texto tenha sotaque, porque não tenho a dinâmica natural. Isso gera mais tempo de elaboração, de pesquisa pela palavra certa", diz ele, que teve contos editados por independentes como a Solaris e a Immersion Press.
    A Prumo lança em breve um best-seller americano assinado por uma carioca: "Never Sky: Sob o Céu do Nunca", de Veronica Rossi. É possível que a naturalidade da autora tenha animado livrarias: com tiragem inicial de 10 mil cópias, o livro já está em reimpressão.
    Mas Verônica morou só até os quatro anos no Brasil. Hoje, vive na Califórnia. "Meus pais sempre falaram português, então entendo, mas não falo tão bem. Só coisas como 'oi, primos'", disse à Folha.

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