domingo, 24 de fevereiro de 2013

A Casa de Rui Barbosa está viva entre os que se foram - Flora Süssekind

folha de são paulo

Do lugar do morto
A Casa de Rui Barbosa está viva entre os que se foram
FLORA SÜSSEKINDRESUMO Declarações recentes do ex-presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa reavivam temores sobre o futuro da instituição, que quase foi extinta no governo Collor (1990-92). Pesquisadora da fundação faz balanço dos méritos da Casa Rui e das dificuldades enfrentadas para mantê-la como polo ativo de produção de conhecimento.
Uma relação de intimidade mesmo relativa com a vida cultural brasileira moderna e contemporânea já evidenciaria o potencial crítico de que, nela, se revestiu, em momentos significativos, a adoção de perspectiva póstuma.
Seria desse lugar narrativo irônico-tumular que Machado de Assis redefiniria como forma livre, dialógica, ziguezagueante, a prosa de ficção oitocentista em "Memorias Póstumas de Brás Cubas". Seria, igualmente, um diálogo (em constante refiguração) entre o presente e a força das coisas mortas, a presença ativa dessas mortes, que orientaria boa parte da poesia de Drummond. Seria, também, como um misto de cerimonia fúnebre e de lugar impositivo, violento, de rememoração que se apresentaria uma das mais incisivas realizações contemporâneas, no campo das artes visuais, a exposição "111", de Nuno Ramos, sobre a invasão da Casa de Detenção de São Paulo pela PM em 1992 e a morte de 111 presidiários que dela resultaria.
Seria possível multiplicar a serie mortuária com os cemitérios de João Cabral, os usos do autorretrato como vampiro por Torquato Neto, os esqueletos e ossadas de Ângelo Venosa, o enterro da classe média de Sebastião Nunes ou os epitáfios e autoepitáfios com que se divertiam Sebastião Uchoa Leite, Valêncio Xavier e José Paulo Paes. É deste ultimo, por sinal, um implicante epitáfio de Rui Barbosa, no qual ele funcionaria como antagonista retorico da poética elíptica de Paes.
Nas últimas semanas, não mais o patrono, mas a Fundação Casa de Rui Barbosa como um todo receberia atestado de óbito que, se em direção inversa à dessa série, e sem a sua força crítica, talvez possa ser exposto, por contraste, aqui. Com ênfase em algumas imagens-guia (cemitério, favela) empregadas, sucessivamente, por Emir Sader e Wanderley Guilherme dos Santos.
Não foi a primeira vez. No começo do governo de Fernando Collor de Melo (1990-92), a Casa Rui estava na lista das instituições extintas. A maior parte dos funcionários ouviu, aliás, a notícia da extinção pelo rádio, a caminho do trabalho. Organizou-se uma ocupação da instituição dia e noite, como forma de protesto, contando-se, nesse momento, com a adesão de artistas, músicos, intelectuais, frequentadores dos jardins, mães empurrando carrinhos de bebês, usuários da biblioteca e dos acervos. Houve até, salvo engano, um encantador de cobras que se dispôs a se apresentar, em solidariedade aos funcionários, no auditório da instituição.
Dessa extinção, a fundação escaparia. E ganharia força suficiente para, graças à interlocução do antropólogo Gilberto Velho (1945-2012) e com o apoio dos funcionários, fazer voltar à função de gestor Mário Machado, responsável por um novo concurso para pesquisadores e pela criação de um novo setor, o do estudo das políticas culturais no país, que vem sendo muito bem conduzido, desde então, pela historiadora Lia Calabre.
A segunda morte foi decretada recentemente por Emir Sader em declaração ao jornal "O Globo", no final do mês passado: "Aquilo é um cemitério. Estão há dez anos sem concurso. A última geração está lá sem fazer nada, esperando a aposentadoria". Lembre-se que Sader -que agora nega interesse no posto deixado vago por Wanderley Guilherme dos Santos em janeiro- chegou a ser indicado para a presidência da fundação no começo do governo Dilma e, depois de uma sucessão de manifestações na imprensa, seria retirado do cargo antes mesmo de assumi-lo de fato.
Há dois anos, revelando total desconhecimento do acervo documental, das bibliotecas e do trabalho realizado na Casa Rui, Sader sugerira a sua transformação num instituto de pesquisas aplicadas (de temática difusa e sem considerar o acervo disponível -e em expansão- da própria FCRB). Sugestões que receberam críticas duras de todo o conjunto de pesquisadores em atividade então na instituição.
EXERCÍCIO Nas suas declarações pré-Carnaval, mais do que à FCRB, ou ao seu corpo de funcionários (que, sem concurso há dez anos, multiplicam-se por três, por quatro, e exercem muitas vezes funções que não são absolutamente as suas, do contrário a instituição já estaria fechada), a analogia negativa com um cemitério parece apontar, mais uma vez, para o próprio Sader e para um tipo de intervenção intelectual editorializada, de divulgação -constrangedoramente pouco afeita à pesquisa de fontes primárias e à prática regular da investigação conceitual e ao trabalho material lento, obstinado, paciente, de decifração de manuscritos, de listagem de abonações, de escuta dos vestígios, do outro, dos desacordos e variantes, conjugado à necessidade de refiguração sistemática do próprio método arquivístico ao longo do processo de pesquisa.
Se voltado para a compreensão, intervenção e transformação do presente, o exercício historiográfico -como já observou, belamente, Arlete Farge no seu estudo sobre a experiência do arquivo- "é, antes de tudo, um encontro com a morte", uma tensão entre "o próximo (muito próximo) e o distante, o defunto", um cuidado reiterado de distinguir o novo no velho, as interferências entre tempos, ritmos, silêncios, delimitações, uma escrita em constante construção e revisão. Nesse sentido, a alusão ao cemitério não escandaliza pesquisadores de fato, afeitos a esse convívio, aos desmentidos e armadilhas que essa matéria velha, esses mortos lhes impõem. E aos exercícios de deslocamento e humildade que esse convívio, esse colocar-se no lugar do morto, necessariamente exigem.
Também parecendo colocar-se em perspectiva aérea, hierárquica ("Eu nunca saí da minha sala. Nunca fiz social"), o ex-presidente da instituição, Wanderley Guilherme dos Santos -em entrevista, já neste mês, também ao jornal "O Globo", que muitos funcionários hesitaram em considerar inteiramente fidedigna-, reiteraria em parte os comentários de Sader.
Não chega a reproduzir a analogia ao campo funéreo, optando, curiosamente, pela imagem da favela, como impressão inicial (negativa) provocada pelo Centro de Pesquisa. E evocando, desse modo, a desordem, a quantidade de papéis, livros, fichas, empilhados em cada mesa, em cada setor. Imagem de desordem e falta de assepsia e estranha repulsa pela geografia urbana das favelas, que entraria em contradição com outra observação, sobre o caráter acomodado, a execução rotineira de suas tarefas pelos funcionários.
"O problema é o conformismo que paira nos servidores", declararia na mesma entrevista. Talvez o que o tenha espantado tenha sido, ao contrário, não um conformismo, mas a capacidade de esses funcionários se manterem em suas funções mesmo nas condições mais adversas, de apresentarem projetos de edição, de seminários, de constituição de um instituto de estudos avançados (em convênio com instituições brasileiras e estrangeiras), ampliando para isso o programa de bolsas, extremamente eficaz, implementado ainda na gestão de Rachel Valença à frente do Centro de Pesquisa, e conduzido por Antônio Herculano Lopes.
TERRA ARRASADA Foi importante, no entanto, na gestão de Wanderley Guilherme, não se optar por uma política de terra arrasada e ter sido dada continuidade a projetos iniciados na gestão anterior, de José Almino Alencar, como o da compra das casas vizinhas que ampliarão o espaço para os acervos ou como a luta por um concurso para reposição de vagas na fundação.
O que é de estranhar, quando se observa o edital, é o pedido de uma vaga apenas para pesquisador, quando setores que abrigavam 12 pesquisadores regulares contam hoje às vezes com apenas 4, o que dificulta macroprojetos ambiciosos como o do português medieval, o de revisão do pré-modernismo, ou a edição crítica de Drummond, para mencionar apenas três. A indicação de que não se priorizou, num centro de pesquisa, a contratação de pesquisadores não deixa de assustar. E lembrar a possibilidade de a extinção do período Collor estar sendo reavivada talvez surdamente.
Talvez valha a pena sublinhar, nesse sentido, a importância de existirem (também no campo das ciências humanas) centros de pesquisa dotados de relativa autonomia, como tem sido a Casa Rui.
Foi essa autonomia que permitiu à instituição a discussão de questões, gêneros, períodos, autores esquecidos, priorizando o âmbito da historiografia literária num momento em que esse campo estava quase morto nas faculdades de letras. E que proporcionou a variedade e a qualidade de trabalhos sobre o Império e a Primeira República que vêm sendo realizados pelo setor de história, estudos de história da língua como os conduzidos atualmente por Ivana Bentes e Laura do Carmo, estudos críticos sobre o Supremo, sobre o direito dos refugiados, como os realizados pelo setor de direito, além das inserções entre a produção mais contemporânea e a perspectiva histórica, presentes em seminários, livros, apresentações e fóruns de debate diversos, que têm sido realizados ao longo das décadas de funcionamento da Fundação Casa de Rui Barbosa.

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