terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Sentimental demais

FOLHA DE SÃO PAULO

Para filósofo britânico, é preciso rever os conceitos sobre o amor romântico, hoje tão valorizado que chega a ocupar o lugar da religião no mundo ocidental
Fotos Danilo Verpa/Folhapress
Arte sobre foto de pichação em muro no bairro de Perdizes, em SP
Arte sobre foto de pichação em muro no bairro de Perdizes, em SP
JULIANA CUNHACOLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O amor está longe de ser a solução para o fim do sofrimento humano. Pelo menos aquele amor romântico de filmes e novelas.
Quem defende essa ideia é o filósofo Simon May, professor do King's College, em Londres, e autor de "Amor - Uma História", lançado aqui no fim do ano passado.
Para ele, o sentimento está supervalorizado: ocupou o espaço deixado pela religião e se tornou o novo deus do Ocidente.
"Somos todos fanáticos. Exigimos que nosso sentimento seja eterno e incondicional e camuflamos sua natureza condicional e efêmera. É a mais nova tentativa humana de roubar um poder divino", disse, em entrevista à Folha.
De acordo com o filósofo, a religião do amor incondicional é reforçada pela cultura. Ele cita filmes em que um dos personagens não quer saber de namorar e só pensa na carreira. No final, ele sempre descobre que sem uma paixão sua vida não será completa.
Tanta pressão em cima de um sentimento frágil e humano, para o autor, termina em frustração coletiva. "Nada humano é verdadeiramente incondicional, eterno e completamente bom. Essa é uma forma de amor que só Deus pode ter. Esse entendimento gera expectativas altas, que relacionamentos cotidianos não são capazes de suprir."
O mesmo defende o filósofo alemão Richard David Precht, autor de "Amor - Um Sentimento Desordenado". "O papel de nos aceitar por inteiro, com todos os nossos defeitos e limitações, cabia a Deus. Hoje buscamos alguém que possa cumprir essa função e ainda dormir conosco. É realmente pedir demais", diz.
ROMANTISMO
No livro, Simon May traça um histórico das diferentes concepções de amor ao longo da história e atribui ao romantismo do século 19 a culpa pela supervalorização do sentimento.
Segundo ele, desde então, enquanto a sociedade mudou, a idealização do sentimento continua como no passado. Inovações como a liberação sexual, a pílula e a luta pelos direitos dos gays só possibilitaram que mais pessoas passassem a perseguir o amor ideal ao incluir homossexuais e divorciados no jogo.
A psicanalista Regina Navarro Lins também pesquisou a história do sentimento, mas chegou a uma conclusão diferente. "O amor romântico está com os dias contados. Domina filmes e novelas, mas está saindo de cena na vida real", afirma ela, que em 2012 publicou "O Livro do Amor", obra em dois volumes.
Para a psicanalista, o futuro aponta para o "poliamor" e para formas menos convencionais que o casamento. "As pessoas estão mais individualistas, buscam sua própria satisfação. Isso irrita os conservadores, mas aumenta as chances de cada um ser feliz", diz.
Navarro Lins, no entanto, concorda com Simon May ao considerar o amor romântico irreal. "Você conhece uma pessoa, atribui a ela características que ela não possui e passa a vida infernizando a criatura, querendo que ela seja como você imaginou", diz a psicanalista.
A troca de exigências gera um "rancor matrimonial", uma sensação de que o parceiro nos enganou ao não cumprir nossas expectativas.
Simon May não acredita que a solução seja dar menos importância ao sentimento, mas rever os conceitos. "Precisamos mudar nossas expectativas, não reduzi-las. É preciso abandonar a ideia de que amor implica em intimidade incondicional, benevolência e altruísmo. Para mim, amor é algo completamente condicional. Ele só existe enquanto a outra pessoa parece dar sentido à nossa existência."


NA TEORIA
O Livro do Amor - vols. 1 e 2
Regina Navarro Lins
EDITORA BestSeller
QUANTO R$ 30 cada volume (362 págs. cada)
Em um panorama do amor da pré-história à atualidade, a autora destrincha temas como o papel da mulher, fidelidade, monogamia e homossexualidade.
Amor - Uma História
Simon May
EDITORA Zahar
QUANTO R$ 60 (376 págs.)
O livro traça um histórico do amor baseado na visão de pensadores como Spinoza, Ovídio e Rousseau. Para o autor, buscamos um modelo de amor que não corresponde à realidade atual.
Amor - Um Sentimento Desordenado
Richard David Precht
EDITORA Casa da Palavra
QUANTO R$ 45 (319 págs.)
Escrito por um filósofo e jornalista alemão, explica o amor segundo a ciência, a história e a filosofia. Para Precht, o amor passou a substituir a religião.

    'Falta de amor não é o maior problema das grandes cidades'
    Viver dignamente traz mais alegria que a busca pelo par ideal, diz filósofo
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHADepois de publicar "Amor - Uma História", o filósofo Simon May, professor do King's College, em Londres, prepara seu próximo livro: "Love - A Phenomenology" (amor, uma fenomenologia). May é conhecido fora do Brasil pela obra "Thinking Aloud" (pensando em voz alta, 2009), que, na época, foi escolhida como um dos livros do ano pelo jornal "Financial Times". Em entrevista à Folha, ele fala como a filosofia pode dar respostas sobre o amor.
    Folha - São Paulo está cheia de cartazes pedindo "mais amor". Essas manifestações tem a ver com a sua tese sobre o amor enquanto religião?
    Simon May - Sim, isso tem a ver com enxergar o amor como a solução para todos os problemas. Uma cidade como São Paulo deve ter problemas bem maiores que a falta de amor, mas hoje as pessoas subestimam o poder das questões sociais como componentes da felicidade. Viver em paz, com emprego e dignidade, provavelmente traz mais alegria duradoura que o amor.
    Se o amor é uma religião, como você explica o troca-troca de parceiros? Crentes não trocam de igreja muitas vezes.
    Trocar muito de parceiro não contradiz a tese de que o amor é uma religião. Um dos motivos para tanta troca é que estamos tentando encontrar o par perfeito, a pessoa que irá preencher a ânsia por um amor incondicional, eterno. Como a ideia toda é impossível, trocamos de par a vida inteira. Quando os relacionamentos terminam, em vez de culpar o modelo, culpamos a outra pessoa.
    Você escreve que tudo mudou no último século, menos a visão sobre o amor. O sentimento não é mais valorizado hoje?
    O amor fica cada vez mais valorizado à medida que a sociedade se torna mais individualista e outras formas de pertencimento no mundo declinam. O que não mudou é a tentativa de comparar o amor humano ao amor divino. Isso gera pensamentos do tipo "se você me amasse incondicionalmente, não faria x e y".
    Existe um modelo de amor mais saudável?
    O amor é a paixão que sentimos por aqueles que suscitam em nós a esperança de uma fundamentação indestrutível para a nossa vida. É uma necessidade de raízes, de encontrar um sentido para nossa própria existência. Poucas pessoas podem nos dar essa segurança, e é por isso que o amor é tão raro.
    A solução é compreender o sentimento do modo correto e, assim, não ficar tão arrasado quando o amor se mostrar destrutivo ou não correspondido. Também é preciso buscar o amor em outros lugares, não só em um parceiro sexual.
    Hoje, amor é tema de livros de autoajuda: as pessoas querem resolver seus problemas. É papel da filosofia dar respostas?
    Faz tempo que o amor não é um tema central para a filosofia. Até o século 17 era importante para os grandes filósofos: Platão, Aristóteles, Agostinho e outros trabalharam em definições detalhadas sobre a natureza do amor. Hoje, só questionamos qual seria a melhor forma de alcançá-lo ou de mantê-lo.
    Acho que é papel da filosofia sugerir alguns caminhos, sim. O mais importante é: certifique-se de que você e seu parceiro têm um profundo sentimento de enraizamento um no outro. Esse sentimento é inconfundível, é como se os dois fossem maçãs da mesma cesta, mesmo que cada um tenha vindo de uma origem muito diferente.


      LINHA DO TEMPO
      Pré-história
      Desconhecia-se o vínculo entre sexo e procriação e a noção de casal. O matrimônio funcionava por grupos: dentro de uma mesma tribo todos pertenciam a todos. As crianças tinham vários pais e várias mães
      Grécia
      A figura feminina era desvalorizada, só o homem podia ser amado. Surge a efebia, relação entre um homem mais velho e um adolescente. O cidadão grego tinha à sua disposição a mulher, a concubina e os efebos
      Roma
      Surge a ideia de que o homem deve ser prudente e controlado. O romano evitava sentimentos apaixonados. Homens não podiam fazer sexo oral em mulheres, afinal, um soldado não deveria servir a uma mulher
      Antiguidade tardia
      A mulher passa a ser vista como má. Acredita-se que a ela seja sexualmente insaciável por isso precise de muitos homens. O cristianismo começa a valorizar a castidade e a considerar o ato sexual imundo
      Idade Média
      Berço do amor cortês, pai do amor romântico. O homem devia servir à dama, suplicar por sua atenção. O amor é calcado na idealização da pessoa amada, que deve ser perfeita e inacessível. Não se pode casar por amor
      Renascença
      A mulher ainda só tem duas opções: ou é santa ou é feiticeira, objeto de adoração ou depósito de uma luxúria abominável, mas surgem precursoras do feminismo, como a poeta francesa Louise Labé
      Iluminismo
      O amor sai de moda entre as pessoas mais instruídas. É preciso deixar que a razão guie todas as decisões. Surge a galanteria, uma rotina socialmente exigida e cheia de rituais que envolviam sedução e adultério
      Romantismo
      A sociedade burguesa passa a valorizar a sensibilidade, um estado de espírito hiperemocional. Era bonito estar pálido, sofrer de insônia ou de melancolia. Havia manuais que ensinavam as mulheres a desmaiar
      Primeira metade do século 20
      O carro e o telefone mudaram a forma como os casais se relacionavam. Finalmente, é possível marcar um encontro e ter um pouco de privacidade, longe dos portões das casas e dos olhares das famílias
      Pós-guerra
      O casamento por amor vira regra. A busca, agora, é por um par ideal. Inconscientemente, predetermina-se como deve ser o relacionamento, o que cada pessoa deve sentir e como reagir
      Anos 60
      É a década da evolução sexual: surge a pílula, popularizam-se os movimentos gay e feminista. A busca pelo prazer compete com a busca pelo amor. Surgem novos tipos de relacionamento como o casamento aberto

        FOCO
        Projeto virtual reúne fotos de casais anônimos
        COLABORAÇÃO PARA A FOLHAA jornalista e empresária Daniela Arrais, 28, é responsável pela série "Amores Anônimos", uma seleção colaborativa de fotos de casais apaixonados na rua, registrados em fotos tiradas com celular. Antes disso ela produziu uma série de entrevistas em seu site, "Don't Touch My Moleskine", chamada "O Que é o Amor para Você Hoje?", na qual coletou depoimentos de anônimos e celebridades.
        Daniela é uma seguidora assumida da religião do amor. "Quando terminei um relacionamento complicado, cheio de idas e vindas, comecei a me focar muito nesse assunto. Acho curioso como está todo mundo buscando o amor e tão pouca gente encontra", afirma.
        Junto com a publicitária Luiza Voll, 28, ela mantém o perfil "Autoajuda do Dia" na rede social Instagram, pelo qual compartilham dicas. O tema principal, claro, é o amor. "A felicidade em outras áreas, no trabalho, na família, é importante. Mas o amor é uma coisa tão forte que, quando as coisas estão bem com ele, tudo bem se o resto da vida está meio torto", diz.

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