sábado, 26 de janeiro de 2013

O pequeno Bandeira - José Castello


O Globo - 26/01/2013

Vivemos no século da técnica. Embora
nos preste serviços inestimáveis,
ela também obscurece nossa
relação com o mundo. A técnica é
uma armadura, ela nos protege,
nos permite avançar, aumenta
nossa potência, mas também nos engole. Nosso
embate com a técnica se acirrou ao longo do século
XX e se espalha por todas as áreas do pensamento.
Na literatura, um dos registros mais
preciosos dessa luta é o “Itinerário de Pasárgada”,
autobiografia poética que o poeta Manuel
Bandeira (1886-1968) lançou no ano de 1954, e
que está sendo relançado pela Global Editora.

A autobiografia, nos avisa o próprio Bandeira,
percorre um período que começa em 1904, ano
em que o poeta adoeceu de tuberculose, e termina
em 1917, quando publica seu primeiro livro,
“A cinza das horas”. Trata, portanto, dos antecedentes
do nascimento de sua poesia, e ainda
de sua primeira fase, que abarca não só “A cinza
das horas”, mas “Carnaval” e “O ritmo dissoluto”,
seus dois livros seguintes, ambos publicados em
1924. Fase em que Bandeira viveu sob o fascínio
da técnica e que, segundo ele mesmo nos diz, só
se encerra em 1921, quando chega ao “verso livre
pleno”.

Sua guinada rumo à liberdade e a si mesmo só
se materializa em 1930, com a publicação de seu
quarto livro, “Libertinagem”. Se Vinicius de Moraes,
na juventude, atravessou sua “fase metafísica”,
também Bandeira quando jovem teve que
experimentar uma estranha e áspera “metafísica
da técnica”, e, do mesmo modo, superá-la para,
enfim, chegar a sua própria voz. Tal virada já se
evidencia a partir de 1925, quando começa a escrever
para o “Mês Modernista”.

Observando essa fase inicial, o próprio Bandeira
o define: “Os três livros ainda estão contaminados
pela lucidez”. É só quando afrouxa os
grilhões da razão com o vento da poesia livre
que ele, enfim, realiza o sonho antigo de se tornar
não um “grande poeta” — manto que pesa e
sufoca —, mas, sim e apenas, um “poeta menor”.
Um pequeno, mas fabuloso, Bandeira.

Para isso, é preciso que o poeta fixe seus próprios
limites e desista — como ensina o grande sonho
tecnológico — de tudo possuir. Ele mesmo assim
descreve essa descoberta: “Foi nesses 13 anos
que tomei consciência de minhas limitações, nesses
13 anos que formei a minha técnica”.

A ênfase, aqui, está no possessivo “minha”. Não
se trata de abdicar, ou desistir, da técnica que, afinal,
está no fundamento do humano.
Para sugar o seio da mãe,
já o bebê indefeso necessita de
alguma “técnica”, ainda que ela
venha temperada pelo instinto;
tornamo-nos humanos porque
a desenvolvemos. Trata-se de
outra coisa: chegar a uma técnica
pessoal (um “estilo”), o que
justamente nos protege de sermos
engolidos pela grande técnica
desumana.

É com grande esforço que Manuel
Bandeira escreve suas memórias poéticas.
Não são anos fáceis de relembrar. Severo consigo,
comenta: “O meu arrependimento vem do nenhum
prazer que encontro nessas evocações, da
mediocridade que elas respiram”. Começou a trabalhar
nessas memórias estimulados pelos amigos
Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. “O
compromisso que assinei com eles nada tinha de
irrevogável, porque um e outro são criaturas humanas,
compreensivas”. Fernando e Paulo tinham,
na época, um projeto de revista, que não
vingou. Foi então que Bandeira e seu projeto caíram
nas mãos crespas do amigo João Condé, que
editava o “Jornal de Letras”. Ele passou a cobrar a
encomenda com insistência. Bandeira não conseguiu
escapar e fez o que não queria fazer. Ainda
bem que aconteceu assim.

Quando fala do “grande poeta”
que desistiu de ser, Bandeira
se lembra do francês Paul Valéry,
para quem o grande poeta
era aquele “o mais consciente
possível”. Recorda Bandeira que
Valéry chegou a dizer, um dia,
que “preferia compor uma obra
medíocre em total lucidez do
que uma obra-prima no estado
de transe”. Desde então, sob o
peso das influências francesas,
o poeta passou a perseguir a mais absoluta disciplina.
Mas isso o desgostava. “Na minha experiência
pessoal fui verificando que o meu esforço
consciente só resultava em insatisfação, ao passo
que o que me saía do subconsciente, numa espécie
de transe ou alumbramento, tinha ao menos a
virtude de me deixar aliviado de minhas angústias”.
Em outras palavras: era mais verdadeiro.

Não foi outro o motivo que levou Bandeira,
seis anos depois de publicar suas memórias poéticas,
a entregar a seus leitores um livro de poemas
chamado justamente “Alumbramento”. Poderia,
também, se chamar “Transe”. O título, seja
como for, registrava esse laço difícil, mas essencial
da poesia com o arcaico e o inconsciente.

Não é, no entanto, um acesso fácil, e por isso
alguma técnica é sempre necessária. Ao mesmo
tempo em que celebra sua reconciliação com o
“subconsciente”, Bandeira admite que, antes
ainda de conhecer a obra de Stephane Mallarmé
— o grande mestre dos poetas cerebrais — já
começava, sem saber, a se aproximar de suas
ideias. “Compreendi, antes de conhecer a lição
de Mallarmé, que a literatura está nas palavras,
se faz com palavras (técnica, eu acrescento), e
não com ideias e sentimentos”. Contudo, imediatamente
depois, o poeta faz uma importante
ressalva: “Muito embora, bem entendido, seja
pela força do sentimento ou pela tensão do espírito
que acodem ao poeta as combinações de
palavras onde há carga de poesia”.

Entende Bandeira que, sem a técnica (a linguagem
elaborada) não se faz poesia, mas “só
pelo calor do sentimento das emoções morais se
transformam em emoções estéticas”. Resume,
assim, sua descoberta: “o metal precioso eu teria
que sacá-lo a duas penas, ou melhor, a duas
esperas, do pobre minério das minhas pequenas
dores e ainda menores alegrias”.

A sombra desses segredos mais profundos se
esconde, talvez, no Sanatório de Cladavel, na
Suíça, para onde Bandeira partiu no ano de
1913, para tratar uma grave tuberculose. Nos
nove anos seguintes, o poeta perderia, seguidamente,
a mãe (em 1916), a irmã que lhe servia
de enfermeira (1918), o pai (1920) e o irmão
(1922). Graves lacunas dificultavam seu caminho.
O pressentimento dessa dor profunda ficou
perdido em “Poemetos melancólicos”, na
verdade seu primeiro livro de poemas, escrito
durante a temporada em Cladavel e esquecido
(de propósito?) no sanatório no dia de sua volta
para o Brasil.

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